Construir Sítios

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o Chorão Ramalho, com o Nuno Teotónio Pereira, com o Rafael Botelho e conheci praticamente todos os outros com quem tive o privilégio de conviver – é evidente que sou uma geração de transição, uma geração que apanha tudo isto pelo entusiasmo, pelo acreditar genuíno desses arquitectos. Nesse livro e à medida que o tempo me vai tornando mais velho e com outras experiências também me permite ter um outro distanciamento das coisas e olhar para o documento como um documento histórico e não como um documento de bíblia e de bitola e cânone a seguir e a usar. Até porque tem que haver um tempo critico de afastamento sobre essas coisas para que ganhem a sua verdadeira importância, porque há a importância imediata e a importância histórica da continuidade. Ele tem um lugar na história incontornável, é um livro incontornável aqui e em qualquer lado do mundo. Eu tenho muitos livros de arquitectura popular como este, do mundo inteiro e todos feitos depois deste. Para mim a importância que teve é afectiva. Uma importância afectiva de olhar um País, que ao longo do tempo me fui desvinculando, porque é um livro tão belo, que é traiçoeiramente belo. Uma má leitura desse livro é perigosa, porque este livro relata duas coisas: um país belo e um país miserável. E a miséria não pode ser bela. E eu conheço muito bem a realidade antes do 25 de Abril, tinha 17 anos quando veio o 25 de Abril e posso dizer que conheci o país até ao 25 de Abril, e conheci todas a intensidade e as barbaridades que se fizeram no Pós 25 da Abril no sentido da democratização apressada, e que se calhar não se conseguia fazer de outra maneira, mas foi muito apressada e prolongou-se demasiado tempo na década de 70 e de 80, porque permitiu a continuidade de erros primários que não se deviam ter continuado a fazer, deviam ter morrido ali, nos primeiros anos da revolução. No entanto ninguém resistiu a fazer os mesmos disparates e a destruir coisas extraordinárias da arquitectura vernacular, tradicional, erudita, a nossa relação com a paisagem, a nossa relação com as aldeias e com as vilas, mas sobretudo destruiu-se o território, que já vinha sendo destruído desde os anos 60. Eu penso que há uma leitura complementar a fazer ao Inquérito, que é todos os artigos que saíram na revista Arquitectura, durante os anos 60, onde algumas das pessoas que escrevem são autoras do livro do Inquérito, outras trabalham nas obras públicas, e que foram muito lúcidas no alertar dos problemas que o país estava a ter com a emigração primeiro interna e depois para fora do país, e com a construção dos subúrbios e abandono dos campos. Isso é que é a destruição da arquitectura popular. Porque é a destruição não de uma estrutura construída mas de uma estrutura humana. E a esta distância todos nós somos capazes de falar assim mas na altura, talvez os geógrafos e os sociólogos tivessem uma visão mais acertada sobre o que estava a acontecer, nós tivemos uma visão, acho eu, bastante tardia sobre o que estava a acontecer, tirando essas excepções de que acabei de falar, que eram pessoas muito lúcidas e que amavam profundamente o seu país e perceberam, anteciparam, o que ia acontecer. Isto serve para dizer que o livro é sobretudo um momento profundo na reflexão teórica do panorama nacional que era muito pobre. Que conseguiu pela primeira vez levantar problemas de ordem social que estavam a ocorrer, e que vieram a dar naquilo que já referi, todas as “Brandoas”, os subúrbio… uns piores que outros, mas que eram emergentes na altura. E que depois foi a imigração em massa para fora do país. Portanto, o Inquérito para mim, neste momento e à distância que tem hoje em dia, 50 anos, tem muito a ver com o panorama social que era proibido falar nessa

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