Caderno de Educação Popular em Saúde - volume 2

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eles possam ampliar sua compreensão sobre fenômenos sociais, sobre política, arte, vida... Lembro de uma situação vivida no Instituto Leonardo Murialdo, instituição religiosa que realiza trabalhos de educação social no Morro da Cruz, em Porto Alegre, lugar onde se deu o forte de minha formação como educador popular: eu estava na sala dos educadores, trabalhando na escrita de um projeto, e tinha como companhia o CD “Livro”, de Caetano Veloso. Em um dado momento, um dos jovens que frequentavam a instituição postou-se à porta e ali ficou, silencioso. Olhei para o rapaz, perguntei-lhe se queria algo e ele apontou para o aparelho de som com o queixo, dizendo com voz baixa e grave: “hip hop”. Convidei o rapaz para dentro da sala. No aparelho de som, Caetano Veloso cantava os versos de “Navio Negreiro”, de Castro Alves, a partir de uma base rítmica e melódica própria do RAP. Enquanto meu jovem camarada tecia comentários sobre o maravilhoso arranjo de percussão construído pelo mestre Carlinhos Brown, eu falava um pouco sobre Castro Alves e sua luta contra o racismo, tendo a arte como arma. Não sei se outra linguagem que não o RAP poderia proporcionar uma conversa deste tipo! Há outra história, bem mais recente, vivida há poucos meses no CAPSad Primavera, serviço de Saúde Mental especializado no atendimento a usuários de álcool e outras drogas no qual eu trabalho, na cidade de Cabedelo, Paraíba. Desde novembro de 2009, eu tenho coordenado oficinas de mú-

sica no serviço, que por algum tempo não tiveram muito sucesso. No início, tentei trazer para as rodas de música algumas canções que pudessem operar como dispositivos disparadores de reflexões, fosse por seus conteúdos em termos de letras, fosse pelo tipo de memória afetiva a que tais canções pudessem estar ligadas. Mas, de um modo geral, a coisa não funcionava, e muito raramente tínhamos algo além de uma simples rodinha na qual se sucediam pedidos de canções. Por vezes, nem mesmo isto. A coisa seguiu neste compasso morno, até que dois eventos mudaram os caminhos da oficina. O primeiro foi a chegada do Isnaldo, contratado para ser educador físico e instrutor de capoeira no CAPSad, e que trouxe seu berimbau para as rodas de música, ampliando a qualidade musical dos nossos encontros, abrindo novas possibilidades em termos de experimentação, de invenção, de alegria. As ladainhas de capoeira passaram a fazer parte do nosso cotidiano e as rodas de música, antes despotencializadas, começaram a atrair mais pessoas, inclusive de outros serviços da rede. O segundo evento ocorreu no dia em que um dos usuários pediu que tocássemos alguma canção de Bezerra da Silva. Num primeiro momento, fiquei em dúvida: será que é correto tocar este tipo de música, em um serviço que congrega pessoas que têm problemas com o uso de drogas? Talvez seja o mesmo tipo de dúvida que interpele um educador que trabalha com jovens em conflito com a lei, quando pedem para ouvir ou cantar canções dos Racionais MC’s.


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