Psicologia Social para a América Latina: o resgaste da psicologia da libertação

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PREFÁCIO A realidade interpelante e o projeto de uma psicologia da libertação

As realidades em que vêm estando imersas as sociedades latinoamericanas por décadas – caracterizadas por exclusão, violência, crescente empobrecimento das grandes maiorias, violações aos mais básicos dos direitos humanos, progressivo distanciamento do Estado de suas responsabilidades sociais e, em geral, falta de interesse pelo bem-estar de grandes setores populacionais – insistentemente clamam pela atenção da psicologia e, especialmente, da psicologia social. A fascinação pelo positivismo e, mais tarde, pelo pós-modernismo acrítico foram posicionando a psicologia no âmbito do irrelevante e, com frequência, da cumplicidade com a manutenção dessas situações de injustiça. Com algumas notáveis exceções, a psicologia social abordava as temáticas que surgiam dos países do primeiro mundo, utilizando seus pressupostos teóricos e metodológicos gerando explicações que estavam de acordo com esse mundo, mas que estavam sistematicamente distantes da realidade latino-americana criando explicações dominantes, que pouco contribuíam para entender e explicar as experiências das e dos latinoamericanos que não gozam de privilégios e vivem nas margens da vida cultural, social, política e econômica em seus próprios países. Estas explicações dominantes têm como intenção: 1. Justificar estruturas de poder que, com demasiada frequência, ao serem ameaçadas, tornam-se opressoras, violentas e abusam dos mais elementares direitos das pessoas; 2. Reproduzir no interior da consciência das maiorias uma cosmovisão estranha, anestesiante e distante da realidade dura que a vida cotidiana lhes apresenta.


Desta forma, encontram-se em oposição – algumas vezes com poucos pontos coincidentes de reconciliação – as explicações hegemônicas e as explicações feitas a partir da exclusão. As primeiras são, usualmente, elaboradas e lideradas por pensadores do primeiro mundo com fortes conotações eurocêntricas, primeiro-mundistas e coincidentes com o capitalismo; as segundas são articuladas por ativistas e pensadores do terceiro mundo e coincidem com posturas marxianas. As primeiras são impulsionadas por aqueles que detêm o poder ou que estão comodamente instalados na amizade pessoal ou intelectual com ele; as segundas são formuladas a partir da falta de poder e depuradas no desejo e na luta para conquistar um mundo mais equitativo e humano. Estas duas explicações vão criando uma forma de conceber o que se considera essencial na concepção das pessoas e das relações que elas vão criando para dar sentido ao seu viver-no-mundo. Assim, dentro da psicologia vão se desenhando duas formas de se conceber: uma hegemônica e outra contestatória que busca ser fiel com os processos de luta e de transformação das maiorias. A psicologia social crítica que, em Ignacio Martín-Baró foi se denominando enquanto psicologia da libertação, enquadra-se claramente nesta segunda forma. O mesmo pode ser dito do fundamento e da intencionalidade teóricos dos escritos que aparecem nesta obra. Essencial para a psicologia da libertação é estar orientada para e fundada na realidade. É daí que provém o enquadre epistemológico do entendimento psicológico e suas conclusões, assim como da finalidade do fazer (quehacer) psicológico. A realidade deve ser o ponto de partida e de chegada da psicologia, caso ela aspire ser pertinente, ser fiel à sua identificação como ciência social, separar-se de um reducionismo idealista e a não abandonar a primariedade das coisas que se impõem por seu próprio peso. Por três motivos fundamentais a realidade converte-se na pedra angular da psicologia da libertação. Em primeiro lugar porque ela se orienta à cotidianeidade e se situa no fazer diário das pessoas, de tal forma que a psicologia não se apresenta enquanto uma atividade acadêmica marginal ao que deveria tocar, isto é, as pessoas em seus múltiplos papéis e relações no interior da sociedade. Demanda uma psicologia que tem algo a dizer para, sobre e com as pessoas em suas relações sociais concretas. A força da cotidianeidade é especialmente importante nos contextos latino-americanos, que durante décadas sofreram profundos e prolongados processos de empobrecimento e espoliação que obrigam as grandes maiorias a se concentrar nessa sobrevivência diária. Ao mesmo tempo, a cotidianeidade


apresenta à psicologia o desafio de fazer com que os construtos utilizados para explicar o psiquismo, assim como o seu próprio trabalho, efetivamente correspondam às experiências, tal como são vividas pelas pessoas, sem as fantasias que a ação ideológica tenta procriar e sustentar. Além disso, ela tem relação com a validade ecológica e a validade externa, cuja importância ressalta as melhores tradições em metodologia de pesquisa. Cabe lembrar, por exemplo, os estudos que, na psicologia hegemônica, foram feitos sobre o altruísmo: estudos feitos com honestidade e rigor científico, mas que não correspondem ao que a pessoa comum entende e experimenta como altruísmo. O altruísmo apresentado como resposta no interior das pessoas não deixa de ser, no melhor dos casos, algo pontual e coincidente com condições ambientais cuidadosamente controladas, ao invés de ser vivido socialmente e que deveria desembocar em ações solidárias fundamentadas precisamente na empatia que, supostamente, está na base do altruísmo. O mesmo poderia ser dito das pesquisas emblemáticas e publicadas nas melhores revistas científicas da psicologia sobre o conformismo e a cooperação. Em segundo lugar, a realidade evidencia, como já apontamos, o caráter histórico das pessoas e das coletividades, de forma a dar valor para essas coordenadas tão importantes na construção da subjetividade. Sem este afincamento, corre-se o risco de construir um sujeito e objeto psicológico etéreos, desenraizados e, por fim, sem capacidade de transformar suas condições sociais. Um sujeito sem rosto destinado a viver nas condições que o alcançaram “por sorte” ou “por desgraça”. O caráter histórico permite olhar seriamente para pessoas e instituições sociais que se movem em um contexto cultural e que, além de serem fluídas e se transformarem ao longo do tempo, são distintas em sua expressão sócio-histórica. Por exemplo, o impacto sobre as pessoas e as comunidades de uma guerra que faz uso do perverso elemento da limpeza étnica ou da violação, como instrumento bélico, terá consequências distintas em acontecimentos traumáticos similares que ocorrem sem esses complementos sinistros. Assim, as exigências da própria realidade obrigam a pensar seriamente a historicização das pessoas e dos coletivos. As melhores tradições da psicologia social destacaram este caráter delimitado das pessoas que, em sua concretude, obriga a valorização de como foram se configurando e como configuram seu entorno e suas relações. Em terceiro lugar, a realidade possui uma característica afetante, isto é, ela pode tão somente – e de forma primária – afetar as pessoas e as coletividades que estão imersas nela e que a vão configurando. Esta inserção das pessoas no humano é o que dá a base para uma postura crítica


que questiona o que é dado e que vislumbra no horizonte uma sociedade distinta, fundamentada nas melhores qualidades do espírito humano. É um afetar real sobre a subjetividade, de tal forma que aquela já tem a visão de que pode ser outra, não no sentido de que a primeira aproximação à realidade seja falaciosa ou enganosa, mas, pelo contrário, no sentido de que se esboça outro mundo possível, mais humano, mais solidário contrastando com um mundo excludente e opressor. Isto é, a realidade se apresenta amena à sua transformação incorporando elementos utópicos que constituem seu motor fundamental. E aqui começa a aparecer algo cardinal da psicologia da libertação: acompanhar as grandes maiorias em seus processos de emancipação de tudo aquilo que as domina, destrói, oprime e impede a plena realização de uma sociedade mais justa e humana. Um conceito chave neste acompanhamento é o de solidariedade. Este conceito permite adentrar, tanto na dinâmica afetiva que permeia a opção prática e epistemológica pelas grandes maiorias empobrecidas, como na cognitiva que condiciona a escolha dos temas de pesquisa, sua abordagem e a sua finalidade última. Podem-se identificar três características do conceito de solidariedade, que têm relação direta com a proposta da psicologia social da libertação. Primeiro, os movimentos cognitivos e afetivos que a solidariedade inicia no interior das pessoas e dos grupos servem como elementos críticos das estruturas dadas nas relações que estas pessoas e grupos mantêm na cotidianeidade. Segundo, reconhece a participação ativa das grandes maiorias nos projetos de pesquisa e na produção do conhecimento sobre sua realidade. Isto permite que se esboce um papel não tradicional para o pesquisador que será sempre copesquisador. Terceiro, permite a socialização dos saberes produzidos e utilizados para a libertação das grandes maiorias, em contextos que apoiam vínculos e ações coletivas entre distintos grupos da sociedade. Pioneiro neste esforço de descentrar a psicologia dos delineamentos hegemônicos e de centrá-la nos esforços concretos de libertação situados histórica e socialmente foi Ignacio Martín-Baró e a obra daqueles que, na última década, seguiram sua inspiração e sua proposta e que têm se reunido nos congressos internacionais anuais de psicologia social da libertação. (este livro contém alguns trabalhos que foram apresentados no congresso realizado no Brasil e auspiciado pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, em 2003). O significado da proposta teórica de Ignacio Martín-Baró consiste em buscar devolver ao estudo da pessoa humana aquelas qualidades que fazem dela objeto de estudo da psicologia. Porém não se trata de quaisquer qualidades. As qualidades que ele tenta


reintroduzir são as sociohistóricas, que é o que precisamente dá às pessoas sua inteligibilidade. Para Martín-Baró, esses nexos sociais necessariamente remetem às condições de pobreza e exclusão sustentadas estruturalmente. Isto é o que define as pessoas: tanto aquela que violenta, como a violentada. Não se pode fazer psicologia social, nos dirá Martín-Baró, sem essas referências obrigatórias. Ser pessoa significa ser-em-sociedade, como tão claramente afirmaram Mead e Vygotsky. A pessoa humana é produto de sua própria história, o que inclui tanto os determinismos biológicos como os sociais, o impacto das forças que confluem no indivíduo e as ações que o indivíduo realiza na mescla dessas forças. Assim, o trabalho fundamental da psicologia social já não seria o de contrastar hipóteses da forma mais escrupulosa e rigorosa possível, nem o de nos assegurar que as conclusões alcançadas sejam internamente válidas, nem sequer o de criar teorias sólidas que possam guiar a coleta de dados, mas sim o de acompanhar as maiorias populares em seu processo de libertação e deixar que essa realidade convoque as melhores teorias que ajudam a elucidar esse processo. Desta forma, a psicologia da libertação encontra um grande desafio em pleno século XXI. Um novo século que não é simplesmente uma grande mudança no calendário ou problemas de informática não antecipados, quando a tecnologia estava centrada demais em si mesma para pensar sobre seu próprio futuro. Para as disciplinas em geral, trata-se de um marco em que ficam visíveis mudanças importantíssimas e desafios que nos anos anteriores foram se desenhando e que tinham delineado horizontes. Implica, neste século XXI, um desafio que a pós-modernidade impõe às ciências sociais, já que ela parece se fundamentar em uma série de teses tão contrárias às de mais forte enraizamento e que nos deram exemplo, na psicologia social e comunitária, os trabalhos de Asch, Sherif, Lewin, Tajfel, Mann, Martín-Baró, Mead, Milgran, Rappaport, Vygotsky, Zimbardo. Um pensamento pós-moderno que, de forma resumida, está caracterizado por relativismo, rechaço ao elemento utópico como elemento configurante dos grupos humanos, imediatismo, fugacidade das identidades, desvalorização do compromisso pessoal e, na política, dúvida da função das grandes narrativas e da possibilidade de um projeto emancipador da humanidade. Todo o anterior também destaca o elemento ético no fazer psicológico. A pós-modernidade apresenta no interior das ciências sociais uma alergia quanto à possibilidade de uma ética universal fundamentada sobre sólidas bases epistemológicas, antropológicas e ontológicas. Desta


forma, o desafio é encontrar esses caminhos que vão construindo a psicologia a partir das experiências variadas e profundas da América Latina e que vão combatendo tal alergia. Esse compromisso ético que deve guiar a psicologia da libertação é uma consequência lógica do dar conta da realidade. Encarregar-se da realidade é uma forma de encará-la, isto é, de mostrá-la tal e qual, mostrar sua cara e mudar a sua face, de tal maneira que esta revele de maneira mais certeira um sistema de princípios que fundamenta ou que é melhor para a convivência social. É mostrar a outra face que a opressão ocultou, que desfigurou naturalizando o inaceitável e o desumano. Assim, o ético se torna central para a pesquisa e para a explicação do fato psicológico e não apenas uma reflexão, a posteriori, que ocorre em um segundo momento complementar da atuação do psicólogo. Por fim, implica, para o profissional da psicologia, se esforçar em construir uma linguagem da realidade, que o coloque em diálogo com outras disciplinas e com as ações concretas que as pessoas tomam para sua libertação, ou seja, envolver-se na libertação da psicologia.

Mauricio Gaborit Universidad Centroamericana “José Simeón Cañas”


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