ANIMALIA, poemas de Carlos Felipe Moisés

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ANIMALIA



CARLOS FELIPE MOISÉS

ANIMALIA

17 poemas seguidos de um Posfácio

POEXÍLIO



SUMÁRIO

Galo Tarântula Escaravelho Lagartixa Ratazana Peixe Polvo Um pássaro Cão cego Lobo Cavalo de fogo Boi para Guilhermino Touro negro Ápis Unicórnio Cavalo alado Minotauro Posfácio

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GALO A madrugada se aproxima e traz consigo o manto frágil da bruma. O galo acorda e canta, absorto, alheio ao seu contágio. Alheio não : desconfiado. Os olhos fecha e abre a garganta. É o grito alado de quem sabe : a noite é curta, a vida é tanta. Enquanto a manhã principia e engole o último clarão da lua, o galo entoa o seu canto roufenho e raspa o chão. E canta e raspa e escava aflito, buscando ali, no chão deserto, alguma sombra que por ele enfrente a luz do dia incerto.

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TARÂNTULA para JOÃO MOURA JR.

Canta e no cantar desfia o seu segredo. Prenhe de si a voz escorre severa multiplicada em teia soluços gemidos. Em cada nó um coração perdido. Indiferente ela tece azul a cantar. A voz são lágrimas a teia é antiga o canto nunca há de cessar.

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ESCARAVELHO As patas são seis, às vezes se encolhem no fim da tarde, somem de vez em noites de luar. Enquanto os cornos vibram, minúsculos pulmões se inflamam. É uma bola de fogo imaculadamente branca. Em volta, os párias apertam o cerco em busca das placas multicoloridas que se soltam da carcaça ainda quente. As patas são seis e escavam aflitas. Soluça até raiar o dia e reinicia a escavação. Não sabe onde esconder o arco-íris cravado no dorso que nunca verá.

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LAGARTIXA para MARGARIDA

O peito é de vidro. Os olhos, porcelana delicada e astuta. Da língua escorre o néctar sutil. As patas são de estanho mas sabem se mover imóveis : mal flutuam. O ventre é quase nada : pura transparência onde se escondem o dorso e seus andaimes. Não tem entranhas. A pele de tão fina já não é : limita semovente o nada de fora e o quase nada de dentro.

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O peito é de vidro mas às vezes se desmancha em pétalas. Dentro pulsa um coração que imobiliza tudo em torno. O rabo, sim, é feito de algo insuspeitado : nuvem algas milhares de roldanas e desejos enrodilhados na engrenagem que espaneja o chão e foge para o céu aberto.



RATAZANA É ódio ou brisa o que lhe escorre entre a baba e as patas sutis aquém e além do focinho enviesado? Barata, percevejo, aranha, noz moscada, pólen : os olhos miúdos destilam o puro gozo de roer a própria alma enquanto o fino rabo se alteia e foge e aponta para o teto esburacado.

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PEIXE para JOÃO LUIZ LAFETÁ

Manhã percorre seus pagos não vê senão anêmona açafrão miosótis onde só bolhas de ar restos de nuvens. Tarde pastoreia o sol e entrega à própria sorte o líquido jardim. Não sabe de onde vem mas sabe que virá o reino transparente que lhe cabe. Noite cansado de tanger rebanho insubmisso repousa e sonha que tem asas. Nada lhe detém o voo. A pele coberta de espuma rebrilha ao luar.

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POLVO Parece mover-se lentamente mas gira em torno do eixo invisível a velocidades espantosas. Esculpe maravilhas na água oito braços que cortam blocos precisos. Depois se cansa. Expele o negro óleo do tédio (cortina? biombo?) e ao limbo devolve as imagens sonhadas. Segue girando eternamente.

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UM PÁSSARO Voo sem pássaro dentro. ADOLFO CASAIS MONTEIRO

Entre as sombras que vi dorme um pássaro. Ver é só um gesto apagado em penumbra : medo de espantar o voo apenas entretido no sono do pássaro. O voo, sim, adormece no pássaro que se sonha adormecido. Entre as sombras que vejo um pássaro desperta e parte em busca do voo afugentado para sempre perdido.

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CÃO CEGO ...mas ainda tens o faro o pelo macio pronto para a ternura do afago & mais um ou dois dos teus outrora inumeráveis sentidos. Ah, não chores não! Tuas mortas pupilas se resumem agora a esse límpido espelho onde me contemplo? Então eu te empresto meus olhos e pronto! Seguimos vendo os dois o que já não vês mas vês melhor do que eu. Não vês? Ele continua aí, estirado no mesmo sofá onde te afagava ( a mochila jogada ao lado da TV) : não sentes o calor da mão sobre teu pelo macio?

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Teu focinho frio sorria. Tuas pupilas vazias refletem agora um naco do abismo que nos unia. Eu sempre soube : um cão segue sem hesitar o chefe da matilha. Sempre achei que me seguias mas não (agora sei) : era ele o teu chefe o teu o meu o nosso guia. Não vês? Eu vejo e te digo : ele aí está o nosso menino aninhado no sofá azul a sorrir a guiar como sempre a desgarrada matilha.



Ele pede que te acalmes assim assim : aconchega-te a mim. Chora um pouco, ele não se importa, pode até fazer bem ( desde que saibas : esquecer dói tanto quanto lembrar). Então fiquemos assim : meus olhos perdidos nos teus a esperar o dia em que te guiarei tu me guiarás. Que mais podes fazer por mim?



LOBO Calado abraça a neblina e cerra os olhos como quem desmaia. Púrpura, mágoa sem remédio, as patas enredadas em silêncio e lama : tudo em volta é solidão doçura. E ninguém sabe de onde vem nem como o uivo alucinado que lhe sai da boca e rasga a noite como um coração que arde.

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CAVALO DE FOGO São quatro cavalos de fogo são quatro cavalos a fustigar a face do horizonte próximo. São quatro cavalos em fúria são quatro cavalos perdidos no espaço que brota de suas narinas e fende a manhã como foles imensos. Os olhos são lagos de lava são quatro cavalos de fogo. Um dorso de bronze cresce e um pássaro ruflando as asas nasce de suas crinas. São quatro cavalos alados : fornalhas do dia que explode e rompe os tambores da terra ao ritmo do mar em fúria. São quatro cavalos de fogo esculpidos no espaço que abriram. São quatro cavalos retidos no instante em que o sol se derrama de suas narinas e cobre o mundo visível : auréola negra.

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BOI

PARA

GUILHERMINO O boi de março e sua baba. GUILHERMINO CÉSAR

O boi sabe da baba que escorre, sabe da vida inútil que erra e em si não cabe. O boi sabe pisar a terra como quem flutua entre o remorso alheio e a campa nua. O boi sabe do peso do seu casco errante e do lago perdido num olhar distante. O boi sabe, amoroso, raspar o chão e ruminar na mesma palha sonho e coração. 29 O boi sabe esperar paciente o que não vem e mesmo que viesse já viria sem. O boi sabe, afinal, que a baba escorre e fica e em volta o dia (como tudo) morre. Mais não sabe o boi nem saber precisa. Já lhe basta a afagar o dorso a mansa brisa.



TOURO NEGRO Dia e noite arrasta no sopĂŠ da montanha o cortejo de astros que pendem do seu dorso abandonado. Uma vez por ano as mandĂ­bulas se agigantam e da garganta inflamada irrompe a lava que tinge de rubro o firmamento sonhado. Entre o magma ancestral e a pedra refeita seus olhos rutilam. Ao reabrir o cortejo ergue-se nas patas traseiras para avistar ao longe a flor azul que brota todo ano no topo da montanha.

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ÁPIS O sangue escorre sobre o jovem touro negro. No dorso, uma águia, sob a língua, um escarabeu. No coração em chamas o nome bem amado de Mnévis.

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UNICÓRNIO De ordinário manso mas imprevisível. Alimenta-se de moscas, folhas tenras, lembranças. Desperta com o dia e soletra um a um os nomes bem amados. A memória um prodígio : espessa como a aspa solitária com que raspa as trevas e afugenta a escuridão. Nada teme salvo um dia acordar depois da aurora. (Quem lhe cobrirá de sonho o morto coração?)

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CAVALO ALADO Foi como ervas e arrancaram-no. Hoje pasta absorto em campo sombrio (perdido voo, exílio nefasto) e lambe cicatrizes de ferida nenhuma. Às vezes relincha, reclina o dorso à procura de um rasto, resto de fome clandestina, mas não rasteja : ergue a fronte e sopra dardos de fogo no horizonte. O pouco do nada que lhe coube é muito. O peito chora sem lágrimas enquanto a cauda e a mansa crina ondulam (brisa leve, pranto alheio), rolando nas dunas e nas ervas que foi, entre urzes. Arrancaram-no mal raiou a madrugada. Hoje pasta absorto entre sombras, alimenta-se da noite e sabe que eterno dura. Mais nada.

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MINOTAURO Abrasado em sonho, uma vez foi rei de um reino sem refúgio nem fronteira. Reinou além do seu país e sua grei enquanto ruminava a hora derradeira. Seu coração de lava incendiou a memória de dálias e jacintos e o segredo que o vento lhe negou se converteu em treva e labirinto. Estrelas e nuvens teve a seus pés (o sonho azul de toda criatura) e tudo recusou. Um trono fez do nada em que abrigou sua loucura. Hoje devora gafanhotos e o mel destila do seu flanco sem idade. Reino em ruínas, seu manto é o céu onde pasta serena majestade.

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POSFÁCIO 1. A ficção precisa fazer sentido Minha relação com os animais nunca foi além do trivial. Nascido e criado no meio do asfalto, em São Paulo, mas num tempo em que a cidade ainda estava a meio caminho entre o rural e o urbano, lembro-me do homem das cabras oferecendo o leite morno, ordenhado na hora, que fez a alegria de muitas manhãs da minha infância; lembro-me de um ou outro amigo com o seu peixinho de estimação, o seu papagaio ou o seu canário; às vezes passavam por ali uns cavalos, umas mulas, uns gatos ariscos, umas galinhas assustadas, umas pombas desgarradas. E tive meus cachorros, todos vira-latas recolhidos da rua; tive até uma tartaruga, hostilizada com vigor pelo canino do momento. Os bichos me entretinham e me divertiam, eu os achava sempre curiosos e os tratava com carinho, mas nunca me apeguei em especial a nenhum deles. Os esporádicos passeios ao zoológico da Água Funda, ao Parque da Água Branca ou ao aquário da Ponta da Praia, em Santos, onde até baleias havia, nunca me atraíram, a não ser pelo passeio em si. Do final da adolescência em diante, nunca mais tive animais em casa, até que minha filha, criança, quase duas décadas atrás, insistiu em que queria ter um cachorro – que surpreendentemente nos acompanha até hoje. Perdido o faro, perdidos quase todos os instintos, a amorável cadela se arrasta um pouco pela sala ou pelo quintal, mas o que faz mesmo, con gusto, é dormir placidamente, dia e noite. É o “Cão cego”, do poema assim chamado, o mais recente do meu pequeno zoo. Mas, literariamente, a história outra. Ao me deparar com a folha em branco, não sempre, mas eventualmente, este ou aquele bicho assoma à lembrança, ou é forjado a partir do nada, para me atrair de modo tão intenso quanto inexplicável. E então é como se o animal escolhido ao acaso (gostaria que todos pudessem ter sido

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recolhidos da rua, como os cães da infância) fizesse parte inalienável do meu cotidiano e de todas as dimensões possíveis da minha vida, a vida toda. De onde proveio o impulso que tive, um dia, de grafar no topo da página a palavra “Polvo” e escrever o poema respectivo? Polvo? Bicho mais improvável! É só uma palavra. Bem, devo ter visto algum, no aquário da infância ou em alguma gravura, e não precisei mais do que isso. Mas poderia dizer o mesmo da lagartixa, do lobo, do boi... Já do cavalo alado ou do unicórnio, nem isso. A exceção é o cão cego: este eu sei onde está e de onde vem. Explicação não tenho. Esses bichos não fazem parte da minha vida, embora ocupem um espaço considerável na ficção dos meus poemas. À realidade isso não faz falta, mas a ficção, como se sabe, precisa fazer sentido. Explicar de onde vêm esses bichos que se metamorfoseiam em poemas, definitivamente, não sei. Mas até saberia interpretar (são só palavras, não é mesmo?). Começaria assim: a diferença entre o homem e o bicho é que este não é obrigado a fingir que é racional. O homem é um animal racional? Basta prestar atenção a qualquer bicho para perceber que não, apenas finge ser. Saber até saberia, mas prefiro deixar a interpretação para um ou outro amigo isento, que se incumbiu de fazê-lo, como veremos adiante. O que eu sou, ou o que nunca serei mas gostaria de ser, esses bichos dizem por mim, naqueles momentos em que o pudor me impede de tentar dizê-lo, mais uma vez, por conta própria. É tudo uma questão de estar ou não estar distraído.



2. No mundo non me sei parelha Na nossa tradição entranhadamente lírica, o poeta é condenado a viver trancafiado nas quatro paredes do próprio ego, a repetir ad nauseam o único verbo que lhe é dado conjugar, para valer: eu sou. Pode parecer pouco mas na verdade é muito: tarefa de Sísifo. O ego é uma caverna escura e sem fundo, que o poeta lírico, espeleólogo do vazio, explora com indisfarçável júbilo, insciente de que, quanto mais insista, mais longe estará do que tanto almeja: o predicativo adequado à forma verbal de sua predileção. Eu sou o quê? Já no limiar da nossa Era, Fernando Pessoa atinou com a única resposta possível: Não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada. No entanto insistimos, vimos insistindo há séculos. Por isso, ensimesmar-se deixou de ser, há muito, desculpa ou artifício, vindo a ganhar status de segunda natureza: para o poeta lírico, trancado no oco da caverna, a autocontemplação é tão natural como respirar, embora a partir do século XVIII, ou a partir da grande rebelião romântica, os ares por ali sejam cada vez menos respiráveis. “No mundo non me sei parelha”: não sei de ninguém, no mundo, que se assemelhe a mim... Não é o que afirma o Pai de todos os poetas líricos da língua, esse inefável Paio Soares de Taveiros? Ah, se tivéssemos o depoimento de dona Maria Pais Ribeiro, a Ribeirinha, a dedicada “mia senhor branca e vermelha”, que teve de ouvir calada a jactância do mais velho dos trovadores: Saiba Vossa Senhoria que a mim ninguém se iguala! Que preciosos comentários ela faria! Mas, sabemos bem: solilóquio de ego aprisionado em si mesmo, o lirismo não dispensa a plateia, embora não lhe conceda a menor chance de se manifestar. Haverá grande mal nisso? Aparentemente, não. Assim tem sido, desde sempre, e assim continua. Gonzaga não diz à sua doce Marília: “Eu tenho um



coração maior que o mundo”? O mesmo Pessoa do ceticismo radical não assevera: “Eu vejo que não tenho par nisso tudo neste mundo”? (O cenário, como se vê, nunca é a casa, um canto qualquer do quintal ou da rua: é sempre a largueza imensurável do “mundo”.) Mas se afirmá-lo não é difícil, prová-lo é praticamente impossível – dando-se de barato que a Ribeirinha, a Marília Bela ou a Musa definitiva do engenheiro naval Álvaro de Campos – essa que consola, que não existe e por isso consola – estivessem todas de fato interessadas nas provas de que o seu poeta é o sujeito único, inigualável, que ele diz ser. Para isso temos a caverna sem fundo, de onde brota o manancial inesgotável da forma verbal eu sou, multiplicada ao infinito. Se todos soubessem que a única resposta possível é mesmo não sou nada, teríamos só um fiozinho d’água rala e não o caudaloso rio da ensimesmada tradição lírica. Afinal, há perguntas que têm resposta certa e infalível, já outras não – como esta, “Quem sou eu?”, do poeta sem parelha. Perguntar pode ser ainda mais interessante caso não se saiba que não há resposta. O que vale é estar a caminho e não chegar aonde quer que seja. A tradição garante que o lirismo autocentrado é o tao da arte literária. Autocentrado? Bem, aí já começamos a resvalar para outra esfera, não propriamente estético-literária, mas, digamo-lo com simplicidade, a da cortesia e da civilidade. O ensimesmamento lírico não raro anda de braço dado com vaidade, autocomiseração, carência afetiva, chantagem emocional, narcisismo, egolatria, megalomania; a convicção, em suma, de que toda gente – não só a Ribeirinha, a Marília Bela e a Musa consolatrix – está deveras interessada nas miudezas que brotam do oco da caverna. Escorado nessa ilusão, o poeta se julga no direito de impor a quem quer que seja a presença do seu ego inflado, como se para além dele nada mais houvesse de interessante no mundo. Viagem sem fim e sem retorno?



Parece que não. Há saídas, sempre houve. Nada obriga o poeta a viver mergulhado em si mesmo. Será preciso lembrar que voltar-se para fora, pelo menos uma vez ou outra, não é nada difícil? Nem é necessário criar personagens e dar voz a cada uma delas, como fazem os poetas dramáticos, ou como fez o dos heterônimos, com seu drama em gente. Basta falar das coisas, qualquer coisa, aí fora, que tenha existência em si, independente da existência (ou não) do poeta desparelhado. Se alguma dúvida restar, é só repetir com Rimbaud: Je est un autre. E o leitor que trate de entender que, além de dizer eu sou, o poeta também pode dizer eu é – frase, aliás, gramaticalmente correta. É só perceber que eu é uma terceira pessoa, não é só a pessoa que fala mas também a pessoa de quem se fala. O duplo do mesmo. 3. Poesia e teatro Querer encontrar por trás do polvo, ou de qualquer outro motivo literário, o fato, o acidente ou a vivência biográfica que lhe teria dado origem, e que o “explicaria” como causa eficiente, é perpetuar um equívoco, é tomar como natural e “verdadeiro” um artifício historicamente datado: o formalismo clássico, gestado e consolidado pela mente idealista dos homens da Renascença. Paul Veyne, o grande historiador da cultura, assevera (em seu L’élegie érotique romaine: l’amour, la poésie et l’occident): desde Petrarca todos nós, leitores de poesia, nos habituamos a divisar, no recesso de toda obra poética, a voz particular de um ego que expõe publicamente suas dores e alegrias pessoais, datadas e situadas. A partir daí, ao contrário do que ocorria na Antiguidade, quando era aceita como forma de encenação, a poesia lírica passa a ser encarada sob a égide do “realismo”, como confidência íntima. Camões, nosso petrarquista exemplar, colabora para endossar e reforçar o hábito, alertando-nos: “Sabei, pois, que segundo o amor tiverdes / Tereis o entendimento dos meus versos”. Desde então, o primado da voz particular e da subjetividade, que irmana sujeito-



poeta e sujeito-leitor, tem sido encarado como verdade inquestionável, segunda natureza, indissociável do lirismo. E poesia passa por ser isso mesmo: entrelaçamento de subjetividades, sensíveis e permeáveis, propiciado pela franqueza com que o poeta nos expõe sua subjetividade modelar. Tal franqueza faculta a todos, dos primeiros leitores de Petrarca aos leitores dos poetas nossos contemporâneos, o acesso a esse entrelaçamento, que nos mantém na firme convicção de que estamos fortemente ancorados na realidade (a mesma dos poetas, pois não?), quando talvez estejamos apenas a alimentar a fantasia de que assim seja, ludibriados ou pelo engenho e a arte dos poetas, ou pela força da inércia. Ou pelo prazer em se iludir. Hoje sabemos (a malícia pós-moderna nos põe a salvo dessa ilusão, embora não nos torne imunes a outras) que nem em Petrarca nem em Camões nem em nenhum dos nossos grandes poetas, antigos e modernos, o ego que nos fala em seus versos “retrata” a subjetividade ou a vida privada do cidadão responsável por esses mesmos versos. Hoje preferimos falar em “eu lírico”, para contrapô-lo à conjectura de um “eu empírico”, e já não exigimos do poeta a “sinceridade” que dele se esperava, desde os tempos de Petrarca. A razão é, afinal, elementar. A partir do cogito cartesiano, pouco a pouco fomos ganhando consciência de que esse ego, no qual ser e existir almejam sustentar-se, não é senão construto mental, algo que só aparece para o mundo na emergência da fala, fieira de palavras, simulacro de realidade. A linguagem humana não tem como dizer o mundo. Schopenhauer não hesitou: “O mundo é a minha representação do mundo”, e certa pós-modernidade nos convencerá de que tudo são relatos, tudo são discursos – ficções que variam ao infinito, supostamente no encalço de uma subjacente verdade singular (a verdade do eu ou a verdade do mundo), à qual não temos acesso.



Ao proferir “eu”, Petrarca, Camões ou qualquer poeta já não tem mais como dizer com sinceridade o que lhe vai pela vida íntima. Adorno (Dialética negativa) chama a atenção para o fato de que “quanto mais soberanamente o eu se eleva sobre o ente, tanto mais ele se transforma sub-repticiamente em objeto e revoga ironicamente seu papel constitutivo. Sem a alteridade, o conhecimento se degeneraria em tautologia; o conhecido seria o próprio conhecimento” O que daí provém será sempre simulação, representação figurada, encenação, teatro – tal como o fora entre os antigos e, ao que parece, nunca deixou de ser. “Um poeta, desde que seja de fato poeta”, assinala o mesmo Paul Veyne, “nunca é sincero. Sua alma é mobiliada com certo número de sentimentos, assim como a dos outros homens; além disso, nessa mobília há também um espelho, que reflete o resto do mobiliário. Nós só pensamos no mobiliário, esquecendo que o espelho é um móvel a mais; a alma que contém esse móvel de Narciso ou de exibicionista não é igual a outra que tivesse o mesmo mobiliário, mas não tivesse o espelho. Além do quê, esse espelho fabrica aquilo que se presume que reflete.” A grande rebelião romântica (refiro-me ao romantismo primordial, de Blake, Novalis, Goethe, Schiller e outros, e não à liquefação a que Musset, Lamartine e seguidores o reduziram) fez o resto. A entronização do individualismo e o coroamento do sujeito como senhor absoluto dos Céus e da Terra, condenaram esse mesmo sujeito a amargar, a partir daí, a crise insolúvel da identidade perdida. Com a grande revolução romântica, o homem moderno perdeu o que nunca teve: a possibilidade de dizer eu sou, e completar a frase sem hesitar e sem enrubescer. Apogeu e decadência, como em tudo o mais, se confundem. Uma das saídas, como eu dizia, antes que esse largo desvio me afastasse (um pouco) da meta prevista, é falar das coisas em redor: a aspirina, o catar feijão, a bailadora andaluza, o futebol – como o fez, em sua lição esplêndida, João Cabral de Melo Neto.



Mas o poeta pernambucano jamais pretendeu iludir-se, ou a seus leitores. Por isso não teve pejo de esclarecer, à exaustão, a quem não soubesse ler, o que sempre saltou aos olhos dos mais atentos: falar das coisas é uma forma enviesada de falar de si. Nada a ver com o objetivismo ou o descritivismo de barrocos e parnasianos, enrodilhados nas filigranas do lampadário de cristal ou de uma estatueta qualquer – forma pela forma. E já que entramos nessa seara – a da lição cabralina – não custa reforçar a ideia. Antisubjetivo? Anti-sentimental? Só para quem não saiba ler. Na nossa tradição lírica, há poucos poetas tão personalistas, tão emotivos e tão comprometidos com os sentimentos como João Cabral. O fato de ele ter sabido disfarçá-lo com mão de mestre (o poeta não é um fingidor?) só depõe contra os maus leitores. Falar das coisas... Falar de bichos, por exemplo. Uma vez ou outra (muito menos do que gostaria), tenho tido a satisfação de pelo menos tentar. 4. Os bichos O “Polvo”, um dos primeiros que veio a ter lugar neste pequeno zoo, foi assim interpretado por meu querido e saudoso amigo José Paulo Paes: Mesmo quando se volta para temas exteriores, o autor de Subsolo continua a nos falar de si, não fosse a sua uma expressão entranhadamente lírica. Quando, por exemplo, ele se põe a descrever um polvo com seus oito braços a esculpir “maravilhas na água”, a objetividade da descrição não demora a assumir um viés subjetivo a partir do instante em que, cansado do seu balê aquático, o polvo “expele o negro óleo do tédio / (cortina? biombo?) / e ao limbo devolve / as imagens sonhadas”. Como não ver aqui um alter-ego, propositalmente grotesco, do poeta



entediado de dar uma fugaz vida fictícia, no imaginário da arte, a sonhos até então confinados ao subsolo ou ao limbo do invivido? (Folha de São Paulo, 1989) Já a “Lagartixa”, essa cuja “pele de tão fina já não é: limita semovente o nada de fora e o quase nada de dentro”, foi dos meus animais o que mais chamou a atenção de Álvaro Cardoso Gomes – como José Paulo Paes, outro poeta e crítico, e amigo de longa data: O poema nasce dessa articulação entre um “fora”, a fina pele, e um “dentro”, o ventre, que é “pura transparência”. A lagartixa, animal rastejante, é anatomicamente retalhada pelo poeta. Seu bisturi caótico revela-nos, aparentemente sem método, as partes constitutivas do todo: peito, olhos, língua, patas, ventre, entranhas, pele, coração e rabo, cada uma delas remetendo a uma imagem: vidro, porcelana, néctar, estanho, transparência, andaime, pétalas, nuvem, alga. Em suma, o poeta, a partir da lagartixa, instaura inusitados nexos entre os reinos mineral, animal e vegetal, fundindo isto e aquilo e eliminando a alteridade, a separação entre as coisas. Na verdade, realiza uma anti-anatomia: o retalhamento do animal é ilusório: ao invés de reduzi-lo a partes sem um todo, aponta o caminho para um absoluto de relatividades ou para o “céu aberto”, virtualidade da imaginação, superando nossa condição nadificante e condenada à dor, ao desalento. (Revista de Crítica Literaria Latinoamericana, 2000)



Eu não teria nada a acrescentar. O polvo e a lagartixa aí estão, por inteiro. Em relação aos outros animais (gostaria que fossem todos tomados como de estimação) eu só saberia, quando muito, repetir o que José Paulo Paes e Álvaro Cardoso Gomes já assinalaram. Se tentasse forjar as minhas interpretações (resistir quem há-de?), não iria além de umas breves notas, simploriamente explicativas, como as que seguem. Galo – que bicho folgado esse, à espera de que alguém realize por ele o que só a ele interessaria realizar! Tarântula – canta sem cessar (embora tarântula não cante nem teça) exatamente porque não há segredo algum a ser revelado. Escaravelho – melhor para ele não poder ver o dito arco-íris. Ratazana – nem ódio nem brisa: são apenas os buracos da alma que, não se sabe como, foram banidos para o teto. Peixe – até que seria interessante um peixe voador ou um pássaro anfíbio, mas nada disso é real. Um pássaro – ver, dormir e voar: ou acontece de uma vez, e acabou, ou passa-se o resto da vida a esperar que aconteça. Cão cego – Millor Fernandes já o definiu: o pior cego é o que quer ver. Lobo – homo lupus homini? Cavalo de fogo – parece uma fotografia, instantâneo mal enquadrado, meio fora de foco. Boi para Guilhermino – o velho poeta Guilhermino gostava desse boi; a mansa brisa até hoje nos consola. Touro negro – que mais se poderia dizer desse patético animal apaixonado por uma flor azul? Ápis – o touro que não chegou a Ápis, destino! Pessoa dixit. Unicórnio – quem lhe cobrirá de sonho o morto coração? Cavalo alado – soprar dardos de fogo no horizonte deve ser muito bom; as asas



servem para disfarçar. Minotauro – é um touro humanizado ou um homem que, por fim, se animalizou? E aí está. Mais não digo, pois mais não tenho que dizer. Salvo um derradeiro comentário, à guiza de remate, instigado por esse homem-touro ou touro-homem – bicho dúbio, aliás. Começa a me parecer um pouco fora do lugar. Os animais me atraem pelo que têm de humano: a plenitude do ser que cada um é, sem precisar expressá-lo. A humanal criatura, não. O homem não é o que de fato é; só chega a ser o que for capaz de traduzir em palavras. Por isso, esta Animalia passa ao largo da ilusão do “Salve as baleias!” ou “Salve o micodourado!”, e não tem a mais remota afinidade com a fantasia dos que amam de paixão a todos os animais, indistintamente, dedicando-lhes o afeto, a atenção e o respeito que sonegam aos seus irmãos humanos. Os animais me interessam apenas na medida em que me ajudam a preservar, em mim e em todos nós, o pouco de humanidade que nos restou. São Paulo: 22/05/2013 C.F.M.



Acabou-se de imprimir pela editora Poexílio, em dezembro de 2014, em Brasília, Distrito Federal, o livro ANIMALIA, com dezessete poemas e um pósfacio de Carlos Felipe Moisés. Edição alternativa de 33 exemplares, confeccionados manualmente. Com duas tiragens asssinadas pelo autor. A primeira identificada de A a I, com 6 linoleogravuras assinadas pelo ilustrador, impressas sobre papel de arroz japonês, e mais 4 desenhos reproduzidos sobre papel Filipaper, 180 g/m², para o autor e editores. A segunda tiragem com 6 linolegravuras, impressas sobre papel reciclado 220 g/m², assimadas e numeradas de 1 a 24. Textos impressos sobre papel Marrakech, Linha Plus 180 g/m², na cor Mostarda. Capa executada em papel Filipaper, 180 g/m² na cor branca. Projeto gráfico e ilustrações de Zenilton Gayoso. Edição de Antonio Miranda e Zenilton Gayoso. Livro e gravuras protegidos por envelopes de papel livre de ácido, na cor banca. Obra em formato e-book com livre acesso no Portal de Poesia Ibero-americana <www.antoniomiranda.com.br>

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