Curso de Agricultura Natural

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Curso de

AGRICULTURA NATURAL

Alexandre Bertoldo da Silva Juliana da Silva Ribeiro de Castro

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História e Filosofia da Agricultura Natural


CONTEÚDO 1. História da agricultura

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2. Contextualização dos movimentos agrícolas alternativos 6 3. Proposição e desenvolvimento da Agricultura Natural

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4. Movimento filosófico de Mokiti Okada sobre a agricultura natural, saúde e alimentação natural

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5. Bibliografia sugerida

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1. História da agricultura Todo ser vivo precisa se alimentar e com o homem não ocorre de forma diferente. A única diferença entre os homens e os outros animais é que o homem, ao longo dos milênios, aprendeu a produzir o seu próprio alimento em escalas cada vez maiores. Mas nem sempre foi assim. Nos primórdios da humanidade, o homem dependia da coleta de frutos, raízes e folhas, e da caça de animais para se alimentar, o que nem sempre era possível, já que em algumas épocas do ano a disponibilidade de alimentos na natureza não era suficiente para a alimentação humana. Também no caso da caça, ela nem sempre estava prontamente disponível, dependendo muitas vezes das épocas de migração de manadas e bandos de aves. Porém, ao observar que alguns grãos e sementes caídos durante a colheita e transporte dos produtos germinavam e produziam plantas idênticas às anteriores, o homem passou então a plantar essas sementes e grãos e deuse, muito provavelmente assim, o início da agricultura no mundo. A agricultura evoluiu lentamente e as suas técnicas também. No início o homem apenas semeava, sem se preocupar exatamente como ou mesmo com a época certa do ano para fazê-la. O uso de instrumentos também era insipiente e rudimentar, normalmente com “equipamentos” fabricados com troncos e posteriormente usando tração animal. Ao longo dos anos, com o advento do fogo e os instrumentos de pedra e metal, e o desenvolvimento de técnicas de produção como o terraceamento, o revolvimento do solo, ou mesmo o acréscimo de adubos originados de restos vegetais ou ainda de estrume animal, o homem deu continuidade à evolução da agricultura no mundo. A produção de alimentos pelo homem permitiu que ele tivesse mais tempo para se dedicar a outras atividades, já que não precisava deslocar-se a grandes distâncias para a coleta de frutos, verduras e raízes, e nem caçar animais durante muito tempo, pois encontrava a maior parte da alimentação perto de casa, em seus quintais. Com isso o homem teve mais tempo para desenvolver ferramentas e técnicas, bem como promover a evolução da cultura. O uso das ferramentas e das técnicas agrícolas permitiu ao homem al3


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imentar um maior número de pessoas e se aglomerar em pequenos grupos humanos, que posteriormente deram origem às pequenas vilas e cidades. Com o aumento da população e a necessidade cada vez maior de alimentá-la, o homem também precisou aumentar a produção de alimentos no mundo. Para isso desenvolveu técnicas agrícolas avançadas: adubação animal, com compostagem do material, misturas de excremento de diferentes animais, terraceamento, drenagem de água de terrenos pantanosos, alagamento para a produção de cultivos inundados, revolvimento de solo, queimadas, rotação de culturas, pousio de produção, maquinário agrícola, inicialmente movimentado por tração animal e posteriormente a motor, chegando atualmente a máquinas controladas via computadores. A partir do início do século XX, a humanidade começou a utilizar em larga escala os chamados defensivos químicos, também conhecidos por agrotóxicos, além dos fertilizantes industriais. Dentre os agrotóxicos, nos dias de hoje usam-se bastante e com mais frequência os herbicidas, inseticidas e fungicidas. Todos esses processos e ferramentas desenvolvidos pelo ser humano, ao longo dos anos, permitiu inicialmente um grande aumento da produtividade. Entretanto, esta decaiu ao longo dos anos, principalmente nas últimas décadas, e inevitavelmente passou-se a necessitar cada vez mais de terrenos para a manutenção da produção de alimentos em larga escala, o que vem resultando na abertura e desmatamento de grandes áreas de vegetação nativa. Com isso, apesar do aumento da produção, causada em parte muito mais pelo aumento das áreas utilizadas do que pelo resultado das técnicas desenvolvidas, o homem vem a cada dia degradando o meio ambiente, contaminando rios, solo, animais, plantas e pessoas com químicos tóxicos, devastando grandes áreas de vegetação nativa e levando um grande número de seres vivos à extinção. Apesar de todo o desenvolvimento tecnológico da agricultura moderna, a fome ainda é evidente no planeta e atualmente, conforme dados da Organização das Nações Unidas – ONU, cerca de um bilhão de pessoas passam fome em todo o mundo, vivendo em situação de miséria. Pelos levantamentos feitos por inúmeras organizações e cientistas mundo afora, a fome não é causada apenas pela falta de alimentos, mas principalmente por sua má distribuição. Por exemplo, a estratégia de produção de proteína animal pode ser considerada um verdadeiro desastre em termos de nutrição humana em áreas ambientalmente vulneráveis. Cálculos mostram que com a quantidade 4


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de cereais utilizada para alimentar frangos de corte e produzir um único quilograma de filé de peito, um corte nobre dessa ave, poderiam ser alimentadas quase 15 pessoas, caso os grãos fossem destinados diretamente à alimentação humana. Além disso, cresce cada vez mais a quantidade de áreas destinadas à plantação de grãos para a produção de biocombustíveis, como alternativa “verde” para a questão da energia. Contudo, o que se observa na prática, é a substituição gradual de áreas inicialmente destinadas para alimentar o ser humano por áreas destinadas a alimentar os automóveis espalhados pelo mundo. E esse verdadeiro “milagre” da tecnologia “limpa” vem sendo exportado cada vez mais para países cujas condições climáticas e até mesmo geoquímicas colocam-nos numa condição de preocupante vulnerabilidade em termos de conseguir alimentar a própria população. Também nesses casos, as áreas destinadas à produção de comida vêm perdendo espaço para a produção de biocombustíveis. Assim percebemos que o desenvolvimento da agricultura não é expandido de forma igualitária para toda a humanidade e que caminhamos para crises alimentares cada vez mais intensas, devido às grandes degradações ambientais, às mudanças climáticas, àa má distribuição do alimentos e, consequentemente, ao seu encarecimento. Sempre que nos perguntamos o que é agricultura, nos vem à mente a produção de alimentos. Porém, a agricultura é muito mais do que isso. Podemos considerá-la o conjunto de ferramentas, instrumentos e conceitos usados para cultivar a terra, ou seja, a cultura do trabalho com a terra. Mas também temos na agricultura a afirmação de culturas milenares, com o estabelecimento de relações humanas e valorização de tradições milenares de povos e nações. Reduzir a agricultura simplesmente a uma técnica de produção de alimentos, sem se importar necessariamente com o bem-estar de quem trabalha no campo talvez tenha sido um dos grandes equívocos da humanidade nos últimos séculos. Ou ainda desprezar os benefícios reais que o resultado desse trabalho pode trazer para quem consumir os alimentos, esquecendo-se da necessidade de reconhecer as leis fundamentais da natureza. Isso tem gerado uma verdadeira onda de novos raciocínios e o desenvolvimento de novas técnicas, métodos e principalmente, novos conceitos de como trabalhar nossos solos e produzir alimentos que realmente satisfaçam as necessidades humanas não apenas em quantidade, mas também em qualidade. 5


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2. Contextualização dos movimentos agrícolas alternativos A agricultura convencional tal como é amplamente difundida nos dias atuais, deu o seu grande salto tecnológico após uma série de descobertas científicas levadas a cabo por alguns dos mais conceituados cientistas do século XIX. Entre esses cientistas, Justus von Liebig (1803-1873), um químico alemão, foi quem realizou uma série de experimentos que possibilitaram a criação dos fertilizantes químicos, notadamente os que contêm em sua formulação a famosa fórmula NPK ((N)Nitrogênio, (P)Fósforo e (K)Potássio). Como químico analista que era, Liebig foi quem inicialmente dissecou quimicamente uma série de plantas e alimentos e chegou à conclusão que, sendo a maioria dos vegetais compostos basicamente pelos elementos quimicos nitrogênio, fósforo e potássio, bastaria então, segundo o seu raciocínio, garantir um suprimento constante destes às culturas agrícolas para garantir uma produção quase infinita de alimentos. De fato, no início essa ideia parece ter tido algum resultado, pois, com a ajuda dos fertilizantes químicos, áreas antes consideradas impróprias para o cultivo agrícola passaram a ser verdadeiros celeiros de alimentos. Mas não tardou para os problemas aparecerem e logo os cientistas perceberam que não bastaria somente garantir o fornecimento de NPK para que as plantas continuassem o seu ciclo produtivo. Como ficou evidente, posteriormente à época de Liebig, uma série de outros elementos químicos em proporções muito menores mostraram ser de vital importância ao desenvolvimento das plantas. Esse elementos passaram a ser chamados de oligo-elementos ou micronutrientes. Até então o pensamento científico dominante era baseado nos conceitos mecanicistas e fatoriais desenvolvidos por Rene Descartes (1596–1650) e Francis Bacon (1561–1626), principalmente. Por essa ótica, toda a natureza poderia ser reduzida a modelos simples; o estudo e a investigação de cada um desses modelos de forma isolada poderia levar à compreensão de todo o mundo natural. A química agrícola emergente do século XIX também seguiu o mesmo princípio e esse raciocínio é a base de sustentação cientifica da agricultura convencional dos dias de hoje. 6

A grande questão, que hoje vem à luz no mundo todo, é que a na-


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tureza está longe de poder ser compreendida através do estudo isolado de suas partes. Pelo contrário, hoje percebemos que todo o universo natural está repleto de interrelações, na forma de intrincáveis redes que se influenciam mutuamente. No caso da agricultura, como ficou evidente poucas décadas depois do surgimento das primeiras formulações de adubos químicos à base de NPK, os fatores que garantiam o pleno desenvolvimento das plantas e consequentemente dos alimentos, eram muito mais numerosos e complexos do que havia sido imaginado inicialmente. A começar pelo reconhecimento de que as plantas necessitavam de muitos outros elementos químicos além do NPK, e chegando finalmente à compreensão de que outros fatores muito mais sutis é que parecem de fato poder garantir a saúde dos campos agrícolas, como a biodiversidade, o equilíbrio ecológico, a autorregulação climática, a garantia dos fluxos naturais de energia e do ciclo das águas, etc. Para se ter uma ideia, recentemente começou-se a reconhecer a importância até mesmo do sentimento com que se trabalha o solo durante o ciclo produtivo das culturas agrícolas. Evidentemente que essa complexidade de raciocínio não fez parte dos grandes projetos de desenvolvimento agrícola do final do século XIX e pelo menos da primeira metade do século XX. Talvez por isso mesmo, logo se percebeu que o sistema simplista de produção de alimentos proposto tinha sérias limitações e o ápice desse reconhecimento veio após o término da Primeira Guerra Mundial. A Alemanha havia produzido milhões de quilos de químicos para serem usados como armamento e após o confisco dos seus depósitos gigantescos, as autoridades da época perceberam que ainda podiam usar esses mesmos químicos para combater as pragas que ameaçavam liquidar com as culturas agrícolas até então. Dentro do pensamento simplista da agricultura do século XIX, os cientistas logo perceberam que não somente as plantas cultivadas insistentemente com formulações químicas ficavam cada vez mais fracas e susceptíveis ao ataque de pragas e doenças como também os solos iam ficando, ano após ano, cada vez mais desestruturados. Isso levou a um grande problema, pois quanto mais os solos se desestruturavam química e fisicamente, mais as plantas ai cultivadas iam ficando à mercê de insetos vorazes que liquidavam grandes plantações de uma só vez. O exemplo mais famoso provavelmente foi o do DDT. Inicialmente proposto como armamento químico, o DDT (diclorodifeniltricloeteno) é considerado o primeiro pesticida moderno. Apesar de ter sido desenvolvido ainda no ano 7


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de 1874, somente em 1939 suas propriedades inseticidas foram descobertas. Não tardou para ser largamente usado na agricultura no combate a diversos insetos que prejudicavam as plantações e o sucesso imediato dessa técnica fez o descobridor dessa propriedade inseticida, o químico suiço Paul Hermann Muller (1899–1965), ganhar o Prêmio Nobel em 1948. O DDT é um inseticida barato e altamente eficiente a curto prazo, mas a longo prazo tem efeitos prejudiciais à saúde humana, como demonstrou a bióloga norte-americana Rachel Carson (1907–1964), em seu livro “Primavera Silenciosa”. De acordo com os estudos de Carson, o DDT pode ocacionar cancro em seres humanos e interfere violentamente com a vida animal, causando, por exemplo, o aumento da mortandade entre os pássaros. Se nos anos 40 e 50 o DDT ajudou a fundar a chamada Revolução Verde, já na década de 70 foi banido de vários países a atualmente tem seu uso rigorosamente controlado pela Convenção de Estocolmo sobre os Poluentes Orgânicos Persistentes. Por tudo isso, já nos primórdios do século XX, muitos pensadores, cientistas e agricultores começaram a desenvolver um pensamento alternativo ao modelo agrícola proposto. Uma série de movimentos começaram a tomar forma e os métodos agrícolas tradicionais, principalmente aqueles praticados por sociedades isoladas ou consideradas subdesenvolvidas, passaram a ser estudados e um número cada vez maior de pessoas passou a prestar-lhes mais atenção. Nessa vertende, vários sistemas alternativos começaram a ser propostos, com pelo menos um ponto em comum: a vida é muito mais complexa do que a nossa capacidade de analisá-la e por isso também merece mais cuidado. Alguns movimentos agrícolas tidos como alternativos ganharam notoriedade ao longo do século XX e mesmo nos dias atuais compõem grande parte da assim chamada produção natural de alimentos. Podemos citar alguns.

Agricultura orgânica A Agricultura Orgânica é o termo frequentemente usado para designar a produção de alimentos e outros produtos vegetais que não faz uso de produtos químicos sintéticos, tais como fertilizantes e pesticidas industriais, nem de organismos geneticamente modificados, e geralmente adere aos princípios de 8


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agricultura sustentável. Os seus proponentes acreditam que num solo saudável, mantido sem o uso de fertilizantes e pesticidas feitos pelo homem, os alimentos tenham qualidade superior a de alimentos convencionais. Este sistema de produção tem como base o uso de estercos animais, rotação de culturas, adubação verde, compostagem e controle biológico de pragas e doenças. Pressupõe ainda a manutenção da estrutura e da profundidade do solo, sem alterar suas propriedades por meio do uso de produtos químicos e sintéticos. É talvez hoje em dia o movimento agrícola alternativo ao modelo convencional mais difundido em todo o mundo. Diversos países já possuem legislações específicas para regular esse tipo de trabalho e já há casos onde a Agricultura Orgânica passou a ser considerada a única forma oficial de cultivo do solo como é o caso do Butão. Provavelmente em função de sua larga expansão em todo o mundo, observa-se um grande número de variações das técnicas e métodos empregados. Também é possível perceber que muitas dessas variações, dependendo de cada região do planeta, acabam por receber nomenclaturas diferenciadas, o que por vezes pode até gerar algum tipo de confusão. Termos como agricultura biológica, e agricultura natural por vezes são empregados para referenciar o trabalho da agricultura orgânica. Ao longo do século XX várias personalidades foram responsáveis pelo surgimento e desenvolvimento do movimento da agricultura orgânica e suas variantes em todo o mundo. Podemos citar algumas como: Rudolf Steiner (Alemanha), Bill Mollison (Austrália), Mokiti Okada (Japão), Massanobu Fukuoka (Japão), Jerome Rodale (Estados Unidos da América) e muitos outros, sem desmerecer quaisquer outras que não forem aqui citadas.

Agricultura biodinâmica A base da agricultura biodinâmica é a compreensão profunda das leis da vida, adquirida através de uma abordagem qualitativa e global da Natureza. Foi fundada na Alemanha em 1924 por Rudolf Steiner (1861-1925) em resposta a um grupo de agricultores que lhe solicitaram orientações para resolver os problemas de degradação ambiental decorrentes das práticas agrícolas então vigentes. 9


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A abordagem proposta por Steiner baseia-se numa compreensão profunda das leis que regem o que é vivo, tendo por pano de fundo “a fecundação das forças terrestres pelas forças cósmicas”. Esta ciência agrícola não é um simples método ou conjunto de receitas; é antes, segundo seu proponente, um caminho, uma arte de cuidar da terra, onde cada agricultor precisa desenvolver uma percepção e sensibilidade abrangentes.

Agroflorestas As Agroflorestas são sistemas que reúnem as culturas agrícolas com as culturas florestais, resultante da prática de estudo de agrossilvicultura. Usam a dinâmica de sucessão de espécies da flora nativa para trazer as espécies que agregam benefícios para o terreno, assim como produtos para o agricultor. As agroflorestas recuperam antigas técnicas de povos tradicionais de várias partes do mundo, unindo a elas o conhecimento científico acumulado sobre a ecofisiologia das espécies vegetais, e sua interação com a fauna nativa. Os SAF’s, como são conhecidos, são a reprodução no espaço e no tempo da sucessão ecológica verificada naturalmente na colonização de áreas novas ou deterioradas. Não é a reconstrução da mata original porque inclui plantas de interesse econômico desde as primeiras fases, permitindo colheitas sucessivas de produtos diferentes ao longo do tempo.

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A permacultura é um método holístico para planejar, atualizar e manter sistemas de escala humana (jardins, vilas, aldeias e comunidades) ambientalmente sustentáveis, socialmente justos e financeiramente viáveis. Foi criada pelos ecologistas australianos Bill Mollison e David Holmgren na década de 1970. O termo, cunhado na Austrália, veio de permanent agriculture (agricultura permanente), e mais tarde se estendeu para significar permanent culture (cultura permanente). A permacultura origina-se de uma cultura permanente do ambiente, estabelecendo em nossa rotina diária, hábitos e costumes de vida simples e ecológicos – um estilo de cultura e de vida em integração direta e equilibrada com o meio ambiente, envolvendo-se cotidianamente em atividades de autoprodução dos aspectos básicos de nossas vidas referentes a abrigo, alimento, transporte, saúde, bem-estar, educação e energias suste-


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ntáveis. Pode-se dizer que os três pilares da Permacultura são: cuidado com a terra, cuidado com as pessoas e repartir os excedentes.

Agroecologia A agroecologia consiste em uma proposta alternativa de agricultura familiar socialmente justa, economicamente viável e ecologicamente sustentável. O termo pode ser entendido de diversas formas, como: ciência, movimento e prática. Nesse sentido, a agroecologia não existe isoladamente, mas é uma ciência integradora que agrega conhecimentos de outras ciências, além de agregar também saberes populares e tradicionais provenientes das experiências de agricultores familiares de comunidades indígenas e camponesas. Em sentido mais estrito, a agroecologia pode ser vista como uma abordagem da agricultura que se baseia nas dinâmicas da natureza. Dentro delas, destaca-se a sucessão natural, a qual permite que se restaure a fertilidade do solo sem o uso de fertilizantes minerais e que se cultive sem o uso de agrotóxicos. No âmbito da agroecologia, encontramos ainda discussões sobre a manutenção da biodiversidade, a agricultura orgânica, a agrofloresta, a permacultura, a agroenergia, dentre outros temas. As práticas agroecológicas podem ser vistas como práticas de resistência da agricultura familiar, perante o processo de exclusão no meio rural e de homogeneização das paisagens de cultivo. Essas práticas se baseiam na pequena propriedade, na força de trabalho familiar, em sistemas produtivos complexos e diversos, adaptados às condições locais e ligados a redes regionais de produção e distribuição de alimentos.

3. Proposição e desenvolvimento da Agricultura Natural Histórico No início da Era Showa no Japão (1926 a 1986), Mokiti Okada, filósofo e espiritualista japonês (1882–1955), conscientizou-se de que a criação de uma nova civilização era da maior urgência e importância e que essa

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era a sua missão. Propôs então a sua filosofia baseada nesse conhecimento e sua primeira preocupação foi criar o “Método de Saúde segundo os Princípios Divinos”. Como resultado de pesquisas efetuadas durante longo tempo, deu início ao método do Johrei, também por vezes referenciado como Terapia de Purificação no Estilo Okada. Em seguida, passou a cuidar da criação de um novo método agrícola, segunda grande questão. Em julho de 1935 ele pregou os princípios fundamentais da Agricultura Natural e afirmou que, futuramente, viria uma época em que se colheriam produtos em abundância. A maior parte das fazendas do Japão daquele tempo estava numa situação incalculavelmente trágica em relação às de hoje em dia. Os agricultores que alugavam terras alheias tinham muitos gastos, encontrando-se num estado de extrema pobreza. Em 1934, especialmente na região nordeste, houve grandes danos devido ao frio e muitos agricultores não colheram sequer para comer. No início de 1936, Mokiti Okada, auxiliado por alguns voluntários, iniciou o cultivo de verduras e legumes numa área de sua propriedade em Tóquio. Inicialmente esse trabalho se deu de forma convencional e não demorou muito para ele perceber que precisava encontrar um novo caminho. Determinou assim que todo o trabalho fosse feito sem o uso de qualquer tipo de fertilizantes químicos. Poucos anos depois, um de seus auxiliares, após percorrer várias regiões do Japão à procura de mudas e sementes de plantas que tivessem sido produzidas com a menor quantidade possível de fertilizantes, plantou-as e passou a cultivá-las segundo a orientação de Mokiti Okada. Dessa vez os resultados foram muito bons e, embora o crescimento fosse um pouco demorado, evidenciou-se que o sabor dos produtos era excelente e que não surgiam pragas. Através de uma observação minuciosa desses fatos e comparando a agricultura que utiliza fertilizantes e defensivos químicos, assim como também fertilizantes de origem humana e animal, com o cultivo que usa unicamente matéria orgânica vegetal, Mokiti Okada comprovou que o erro da agricultura tradicional é negligenciar a natureza. Ele obteve provas concretas de que os fertilizantes químicos, os excrementos de origem humana e animal e os defensivos agrícolas intoxicam as plantações e o solo, constituindo a causa do aparecimento de pragas e doenças; verificou, ainda que eles são prejudiciais à saúde dos homens e dos animais domésticos. Assim, pôde constatar que o 12


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cultivo que usa apenas matéria orgânica vegetal é a agricultura realmente concorde com a Grande Natureza. Durante a Segunda Guerra Mundial, Mokiti Okada já havia criado o método agrícola sem fertilizantes e estabelecido a técnica de cultivo, mas a divulgação efetiva desse método só foi iniciada após a guerra. Em dezembro de 1948, foi publicado o primeiro número da revista “Tijo Tengoku” e nele, Mokiti Okada, sob o pseudônimo de Shin-no-Sei, publicou pela primeira vez um artigo sobre o assunto, intitulado “O cultivo sem fertilizantes”. Mais tarde publicou várias revistas que davam enfoque ao novo método e empenhou-se em divulgá-lo, de modo que ele se expandiu gradativamente por todo o Japão. A partir de 1950 foi definido o nome do método como “Agricultura Natural”. Nos anos dez da Era Showa (1934 a 1942), quando Mokiti Okada iniciou a pesquisa da Agricultura Natural, já começavam a ser muito usados no Japão, resíduos de soja importados do continente e fertilizantes químicos, como o sulfato de amônio, além dos tradicionais adubos feitos com resíduo de colza e de peixe. Nessa época, teve início, também, o uso de defensivos agrícolas para frutas e verduras. Pelo fato dos defensivos e dos fertilizantes não serem usados em grande quantidade, como acontece atualmente, os seus malefícios não vinham à tona, e apenas se levavam em conta os resultados imediatos, ou seja, a produção maior. Para o Japão, que estava entrando realmente num regime de tempos de guerra, planear o aumento da produção de alimentos e estabelecer um sistema de autossuficiência era o assunto urgente do momento, e o aumento da produção de alimentos constituía uma das questões básicas da política nacional da época. As críticas em relação à agricultura contemporânea, que utiliza fertilizantes químicos em grande quantidade e ampla pulverização de defensivos agrícolas, começaram finalmente a agitar os meios de comunicação após a guerra, a partir dos anos quarenta da Era Showa (1965 a 1973), quando os malefícios de tais produtos começaram a se evidenciar. Numa época como esta em que estamos vivendo, a Agricultura Natural constitui, na filosofia de Moliti Okada, um aspecto muito importante do que ele chamou de Nova Civilização, como meio de salvação através dos alimentos. Mais de trinta anos antes de tais acontecimentos, Mokiti Okada captou o clima de negligência à natureza e à vida, o qual se oculta atrás da civilização contemporânea e, sentindo os perigos oferecidos pela agricultura química, continuou a pesquisar o caminho para solucionar o problema.

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Ele pregou que a Agricultura Natural é um método agrícola que se baseia na Natureza e a segue. No mundo Natural, animais e vegetais se harmonizam e, através de uma interligação orgânica, mantêm a vida. Tudo que existe no solo, segundo Moki Okada, são bençãos que Deus atribuiu ao homem, de modo que, praticando-se uma agricultura condizente com as Leis da Natureza, não há motivos para que as colheitas não sejam fartas.

Princípio da Agricultura Natural “O princípio da Agricultura Natural consiste em fazer manifestar a força do solo. Até agora o homem desconhecia essa verdadeira natureza do solo, ou melhor, não lhe era dado a conhecê-la. Tal desconhecimento levou-o a adotar o uso de adubos e acabou por colocá-lo numa situação de total dependência em relação a eles, tornando essa prática uma espécie de superstição. (...) (...) Qual é a propriedade do solo? Ele é constituído pela união de três elementos – terra, água e fogo – os quais formam uma força trinitária. Evidentemente, a força básica responsável pelo crescimento das plantas é o elemento terra; o elemento água e o elemento fogo são forças auxiliares. A qualidade do solo é um fator importantíssimo, pois representa a força primordial para o bom ou mau resultado da colheita. Portanto, a condição principal para obtermos boas colheitas é a melhoria da qualidade do solo. Quanto melhor for o elemento terra, melhor serão os resultados. O método para fertilizar o solo consiste em fortalecer a sua energia. Para isso, é necessário, primeiramente, torná-lo puro e limpo, pois, quanto mais puro o solo, maior é a sua força para o desenvolvimento das plantas. Acontece, porém, que até hoje a agricultura considera bom encharcar o solo com substâncias impuras, contrariando frontalmente o que foi exposto acima, de onde se pode concluir o quanto ela está errada. Para explicar esse erro usarei a antítese, o que, penso, ajudará a compreensão dos leitores. Desde a antiguidade, os adubos são considerados elementos indispensáveis ao plantio, mas a verdade é que quanto mais os agricultores os aplicam, mais eles vão matando o solo. Com a adubação, conseguem-se bons resultados temporariamente, mas, pouco a pouco, no entanto, o solo vai ficando intoxicado, tornando necessário o uso de mais adubos para a obtenção de boas colheitas. Assim, quan14


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to maior for a quantidade de adubos, mais contrários são os resultados.” Mokiti Okada

Como podemos perceber pelo texto acima, contendo alguns fragmentos dos princípios da Agricultura Natural pregados por Mokiti Okada, será necessário desenvolver, por parte dos iniciantes no método, uma visão sistêmica de todo o campo ou machamba. Isso quer dizer que precisaremos estar atentos para estabelecer correlações entre vários elementos diferentes do nosso sistema agrícola. Na abordagem convencional da agricultura, estamos educados a focar nossas atenções em apenas alguns poucos pontos, ou seja, apenas na planta em si e nas suas necessidades primárias de nutrientes. Falando de outra forma, na agricultura convencional o solo é visto apenas como um suporte inerte, de onde nossas culturas poderão extrair o que necessitarem para o seu crescimento e desenvolvimento e no exato momento em que tais nutrientes se mostrarem esgotados, passa-se então a fornecê-los a partir de fontes externas, tais como os fertilizantes quimicamente formulados ou mesmo os adubos tidos como orgânicos. Não estamos habituados a considerar o solo como uma espécie de ser vivo, que interage com todo o seu meio ambiente através de intrincáveis correlações de natureza biológica, química, física e até metafísica. Mokiti Okada nos deixou o ensinamento de que o ponto fundamental da Agricultura Natural está no reconhecimento da força do solo e da necessidade de compreendermos a sua natureza. Filosoficamente, ele usa uma linguagem especial quando menciona os elementos primordiais do universo – terra, fogo e água – e no início isso pode nos parecer estranho. Mas à medida que vamos aprofundando nesses conceitos e experimentando na prática o que prevê a Agricultura Natural, será possível atingir um estágio de compreensão muito maior do que aqui está exposto. O solo é composto por inúmeras espécies de microrganismos e, dependendo de sua origem geológica, será composto também por diferentes proporções de fragmentos de rochas contendo diferentes proporções de elementos químicos. Além disso, existem diferentes quantidades de matérias orgânicas, de origem vegetal e animal que, sob a ação constante de microorganismos e mesmo de insetos e outros seres, sofrem decomposição e promovem um ciclo que é responsável pela nossa presença no planeta. A esse ciclo damos o nome

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de Ciclo da Vida. Quando observamos a Natureza, podemos constatar a existência de um equilíbrio dinâmico, ou seja, o pleno funcionamento do Ciclo da Vida e de outros ciclos mais específicos, tais como o ciclo da água, o ciclo do nitrogênio, o ciclo do fósforo, etc. Portanto, a Agricultura Natural procura reproduzir, nos campos e machambas, esses mesmos ciclos naturais. Na sua abordagem, como já foi dito, vai-se muito além da planta em si, ou seja, leva-se em consideração múltiplos fatores, tais como a saúde do solo, do meio ambiente e do próprio ser humano que trabalha a terra e usufrui de seus frutos. Esse conjunto de fatores será um dos responsáveis pelo estabelecimento de equilíbrios ecologicamente saudáveis e, como consequência direta, produtivos.

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Qualquer um pode observar esse equilíbrio dinâmico em ação ao entrar numa área qualquer onde o mato tomou conta. Por exemplo, uma rápida visita a uma pequena floresta ou capoeira onde ainda não se trabalhou com agricultura, ou mesmo onde esta já não é praticada há algum tempo, irá nos revelar lições importantíssimas. Mesmo em áreas tidas como improdutivas para a prática agrícola, como explicar que depois de algum tempo “abandona-


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das” estabelece-se aí uma capoeira ou mesmo pequena floresta? Depois de alguns anos, como pode aí se desenvolver o mato, que por vezes se torna tão espesso que mal conseguimos andar pela área? Quem “adubou” esse solo? De onde vieram os nutrientes responsáveis pelo desenvolvimento das várias espécies vegetais e por que não existem pragas que consigam comer todo o mato, deixando o campo limpo para que possamos cultivá-lo? A tal área não era improdutiva? Então de onde vem a força que gera e mantém vivo aquele ecossistema? Essas são algumas das muitas questões que iremos abordar e trabalhar ao longo desse nosso trabalho. Nos próximos módulos iremos procurar aprofundar em cada um deles e sua compreensão poderá nos ajudar a compreender realmente o que vem a ser a Agricultura Natural.

4. Movimento filosófico de Mokiti Okada sobre a agricultura natural, saúde e alimentação natural Filosofia de Mokiti Okada “Ao longo de tres mil anos a humanidade veio se afastando cada vez mais da Lei da Natureza, que é a Lei do Universo, a Vontade de Deus, a Verdade. Movido pelo materialismo, que o faz acreditar apenas naquilo que vê, e pelo egoísmo, que o leva a agir de acordo com sua própria conveniência, o homem tornou-se prisioneiro de uma ambição desmedida e inconsequente e vem destruindo o equilíbrio do planeta, criando para si e seu semelhante, desarmonia e infelicidade. As graves consequências do desrespeito às Leis Naturais podem ser verificadas na agricultura, na medicina, na saúde, na educação, na arte, no meio ambiente, na política, na economia, e em todos os demais campos da atividade humana. Essa situação já chegou ao seu limite. Se continuar agindo assim, é certo que o homem acabará destruindo o planeta e a si mesmo. O propósito da Filosofia de Mokiti Okada é despertar a humanidade, alertando-a para essa triste realidade. 17


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Ela cultiva o espiritualismo e o altruísmo, faz o homem crer no invisível e ensina que existem espírito e sentimento não só no ser humano, mas também nos animais, nos vegetais e nos demais seres. O Johrei, a Agricultura Natural e o Belo são práticas básicas dessa filosofia, capazes de transformar as pessoas materialistas em espiritualistas e as egoístas em altruístas, restituindo ao planeta o seu equilíbrio original. O seu objetivo final é reconduzir a humanidade a uma vida concorde com a Lei da Natureza e construir uma nova civilização, alicerçada na verdadeira saúde, na prosperidade e na paz.” Tetsuo Watanabe

Para ajudar a compreender a Agricultura Natural, talvez seja interessante tentar ter uma visão geral sobre a filosofia de Mokiti Okada. Isso poderá ser útil na medida em que conseguirmos perceber a linha de raciocínio que norteou o desenvolvimento do método da Agricultura Natural, e talvez nada melhor nesse momento do que aprofundar um pouco mais em alguns pontos fundamentais do trabalho dele. O desenvolvimento material que verificamos na sociedade atual é fruto de muitos séculos de descobertas e invenções. Como já mencionamos na introdução desse módulo, a agricultura teve um papel decisivo no desenvolvimento da sociedade humana ao criar condições para as inúmeras tribos nômades começarem a se fixar em determinadas regiões. Daí nasceram as primeiras comunidades que mais tarde viriam a se transformar nas primeiras cidades e, posteriormente, nas primeiras metrópoles.

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Nessa fase, parece que o ser humano começou o seu longo e árduo caminho de afastamento das leis naturais, pois com as grandes aglomerações de pessoas vieram também os grandes desafios, especialmente aqueles que se referiam ao abastecimento de grandes massas de populações e também os problemas de ordem ambiental. Segundo as descobertas mais recentes de historiadores, antropólogos e arqueólogos, nos últimos milênios diversas culturas e sociedades nasceram, prosperaram e entraram em declínio justamente pelo esgotamento das condições naturais dos solos em prover a demanda de nutrientes para a agricultura intensiva e também na perda da sua eficácia em depurar os resíduos oriundos das diversas atividades humanas.


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Os maias são um exemplo interessante. Segundo algumas descobertas, o declínio do Império Maia parece ter relação com a perda da capacidade dos solos em suportar uma demanda cada vez maior de alimentos em função da explosão demográfica. Com sua magnífica arquitetura e sofisticado conhecimento de astronomia e matemática, os maias foram uma das grandes culturas do mundo antigo. A civilização maia atingiu seu ápice durante o chamado período clássico (250 a 950). No auge, em 750, a população talvez tenha ultrapassado 13 milhões de pessoas. Porém, pouco tempo depois, entre 750 e 950, houve um rápido declínio. Foram propostas as mais variadas hipóteses para explicá-lo: guerras internas, invasão estrangeira, surtos de doenças, dependência da monocultura (principalmente do milho), degradação ambiental e mudanças climáticas. Quer dizer, muito antes da Revolução Industrial da Europa nos séculos XVIII e XIX, e de suas conhecidas consequências em termos de degradação dos ambientes naturais, civilizações inteiras ao redor do mundo já sofriam com os resultados do desrespeito às leis naturais. A Revolução Industrial parece ter seguido no vácuo do pensamento cartesiano, cujo fundador foi o já mencionado filósofo, físico e matemático francês René Descartes. Esse pensamento cartesiano, também chamado mecanicista, materialista, é talvez o responsável direto pelo atual desenvolvimento material de nossa sociedade moderna e consequentemente das diversas distorções sociais que estamos vivenciando. Se por um lado ele contribuiu para o desenvolvimento de tecnologias que auxiliam a humanidade, também ele foi o responsável por afastar um número cada vez maior pessoas do caminho da natureza. O pensamento cartesiano consiste no ceticismo, onde Descartes instituiu a dúvida: só se pode dizer que existe aquilo que puder ser provado. Ou seja, pelo pensamento cartesiano, materialista, o homem crê apenas naquilo que ele conseguir ver. Essa foi a regra principal do desenvolvimento de nossa sociedade nos últimos 400 anos e o resultado é o que podemos constatar no nosso dia a dia: se por um lado, o desenvolvimento tecnológico levou o ser humano à Lua e a se comunicar uns com os outros em qualquer parte do mundo com um simples comando no computador ou telemóvel, por outro acabou condenando um bilhão de pessoas à fome nesse mesmo mundo. Para que poucas pessoas possam consumir excessiva e despreocupadamente, um número muito maior de pessoas são condenadas à perda de seus ecossistemas naturais e submetidas a condições degradantes de trabalho e moradia. Toda essa situação decorre do fato de que as pessoas em nossa so-

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ciedade vêm sendo educadas a consumir cada vez mais, pensando primeiramente em si, numa ambição desmedida e inconsequente. O resultado não poderia ser outro senão a desigualdade social, cuja origem também está relacionada com os desequilíbrios ambientais e culturais. Como resultado, a nossa sociedade está cada vez mais infeliz e isso já é a muitos anos motivo de estudos e pesquisas sociais em diversos países. Nossa infelicidade recai, por exemplo, na constatação de que quanto mais trabalhamos e acumulamos, mais temos necessidade de fazê-lo, pois do contrário caímos em depressão por não mais conseguir fazer parte do sistema. Na ânsia de garantir as condições mínimas de sobrevivência a suas populações, governos de vários países lançam-se em conflitos que, por vezes, culminam em guerras por recursos naturais, tais como solos férteis e águas potáveis. Esse mecanismo acaba levando nossa sociedade global a uma espécie de ansiedade frente à desarmonia de nossos próprios meios de sobrevivência. A agricultura convencional, a despeito de toda a tecnologia à sua disposição, vem demonstrando ser incapaz de livrar o ser humano do fantasma da fome. O emprego descontrolado e já quase desesperado de quantidades cada vez maiores de fertilizantes e mais recentemente de defensivos tóxicos, têm levado populações humanas inteiras à beira do abismo. Nas últimas décadas, a tecnologia dos organismos geneticamente modificados ganhou um grande impulso com a chegada dos chamados organismos transgênicos. Por essa tecnologia, os cientistas conseguiram introduzir na cadeia de ADN de diversas culturas agrícolas, parte do código genético de animais e bactérias. Um exemplo é o milho transgêncio Bt, que recebeu parte dos genes da bactéria Bacillus thuringiensis (Bt), que produz uma toxina (inseticida) específica para larvas de alguns insetos. A ideia era que o milho transgênico fosse capaz de produzir seu próprio inseticida e com isso combater o ataque de diversos insetos, em especial o ataque de diversas espécies de lagartas. Decorridos alguns anos após a introdução dessa variedade geneticamente modificada nos campos agrícolas de vários países, o que se verifica é a iminência de uma verdadeira catástrofe de proporções épicas. Não só o milho Bt não está conseguindo combater o ataque de insetos, em especial de lagartas, como está favorecendo o aparecimento de superlagartas resistentes não só à toxina do milho Bt, mas também a quase todas as toxinas conhecidas pelo homem. Esse alerta já foi dado por diversos cientistas espalhados pelo mundo todo e vários grupos estão sendo formados para estudar alternativas realmente viáveis 20


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para o problema. A questão é que parece que ultrapassamos em muito uma espécie de ponto de retorno, a partir do qual já não será mais possível reverter a situação empregando meios tecnológicos convencionais. Isso porque, segundo diversos outros estudos independentes, o milho Bt e diversas outras plantas transgênicas estão contaminando o seu entorno com espólios geneticamente alterados e transferindo a transgenia para outras plantas, inclusive as nativas de vários ecossistemas naturais. Além disso, o número de pragas que estão se tornando cada vez mais resistentes a todo o conjunto de defensivos químicos conhecidos e regularizados estão aumentando cada vez mais. Por sua vez, ao invés de reconhecer o erro quase absurdo do raciocínio convencional, muitos países estão apelando para rever proibições de uso de produtos químicos que há décadas são conhecidos e condenados por provocar danos na saúde humana, como câncer e diversas outras doenças e mutações genéticas, como última alternativa para salvar safras inteiras de alimentos produzidos pela agricultura convencional. Quando o homem contamina e condena a base da sua própria vida, que é o seu alimento, ele acaba por condenar também todo o desenvolvimento da medicina preventiva, da saúde, da ética na educação, da política, da economia e do seu meio ambiente; degrada inclusive o nível artístico de sua produção cultural, ajudando a diminuir ainda mais a qualidade de vida global. “Essa situação já chegou ao seu limite.” Mokiti Okada já havia nos alertado para esse verdadeiro ponto de encruzilhada no desenvolvimento da sociedade. Se ela continuar pelo caminho atual, poderá chegar finalmente o dia em que será praticamente impossível evitar o colapso global da aventura humana no planeta Terra, onde estaríamos condenando nossos descendentes à extinção. Porém, ele nos dá uma alternativa mais que viável, ao propor substituir o capital material pelo capital espiritual, onde podemos voltar a valorizar o sentimento, cultivando o espiritualismo no lugar do materialismo e valorizando a gratidão e o altruísmo. Praticar a Agricultura Natural e valorizar os seus princípios ecológicos e éticos é uma forma concreta de trabalhar em prol de um desenvolvimento plenamente sustentável não apenas do ponto de vista econômico, mas principalmente do ponto de vista da felicidade plena da sociedade.

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Premissas básicas da Agricultura Natural O legado de Mokiti Okada sobre a Agricultura Natural está assentado em cinco premissas básicas: produzir alimentos que incrementem cada vez mais a saúde do homem; ser econômica e espiritualmente vantajosa, tanto para o produtor como para o consumidor; poder ser praticada por qualquer pessoa e, além disso, ter caráter permanente; respeitar a natureza e conservá-la; garantir a alimentação para toda a humanidade, independentemente de seu crescimento demográfico.

1. Produzir alimentos que incrementem cada vez mais a saúde do homem A agricultura convencional moderna, tecnocrata e altamente dependente de insumos artificiais, tem levado o ser humano a entrar num verdadeiro círculo vicioso. A sua visão antropocêntrica o leva a se colocar acima das demais criaturas do planeta, impondo à natureza suas próprias regras de produção e consumo cada vez mais voraz. Sem tempo para analisar devidamente os efeitos do seu desrespeito às Leis Naturais, o homem moderno vem introduzindo o conceito, em todo o mundo, do desenvolvimento econômico ao invés de promover o desenvolvimento da qualidade de vida. Para alimentar esse sistema, consome-se enormes quantidades de energia e esforço na produção maciça de alimentos. A lógica que prevalece é a de produzir cada vez mais, num espaço cada vez menor por unidade produzida (produtividade) e no menor tempo possível, maximizando dessa maneira os lucros da grande indústria de transformação de alimentos. Por essa lógica, os próprios agricultores, principalmente do setor familiar, são os primeiros a tombarem de fadiga e falência, pois o sistema favorece positivamente somente as grandes corporações industriais, detentoras de patentes e enormes reservas de mercado. O problema de tentar produzir alimentos pela lógica do capital econômico é que isso leva a um gradual e pernicioso sistema no qual a qualidade do que se produz e a forma como é feito se tornou altamente questionável. O uso de fertilizantes químicos artificiais no cultivo das lavouras em todo o mundo leva a um estado de dependência cada vez maior destes e, num plano 22


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seguinte, de agrotóxicos cada vez mais perigosos à saúde do próprio ser humano. A maior parte dos alimentos produzidos atualmente está repleta de resíduos químicos que, com o passar do tempo, e sob um consumo regular, estão provocando uma verdadeira degeneração da saúde humana. O cultivo convencional de alimentos que hora reina na maioria dos campos agrícolas em todo o mundo acaba seguindo, mais cedo ou mais tarde, um esquema representado pelo seguinte diagrama:

Este é um sistema que se retroalimenta, ou seja, um verdadeiro círculo vicioso. Atualmente já nem se sabe mais a origem desse círculo, uma vez que não conseguimos mais identificar qual o princípio gerador desse verdadeiro emaranhado de problemas.

Na contramão do pensamento convencional, encontramos a Agricultura Natural como um sistema dinâmico onde, como já dissemos, se procura reproduzir as leis que fundamentam a própria natureza. Ao evitar o uso de adubos químicos e manejando o solo corretamente (ecologicamente) consegue-se estabelecer um padrão virtuoso, ou seja, um ciclo que vitaliza o ambiente e o ser humano. 23


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Dessa forma, estabelece-se um equilíbrio de forças, nas quais o ser humano consegue usufruir de todos os benefícios da natureza sem, contudo, comprometer as futuras gerações. Quanto mais saudável for o solo, mais saudáveis serão as plantas aí cultivadas e quanto mais saudáveis estas plantas mais saudável o homem/mulher/criança que delas se alimentarem. Por fim, quanto mais saudável o ser humano agricultor mais saudável será sua relação com o próprio solo e todo o ambiente que o rodeia. Da mesma forma que o ciclo anterior, este ciclo virtuoso também se retroalimenta. Contudo há uma diferença fundamental, pois neste último caso a energia é utilizada para gerar vida em todo o sistema e não apenas ao ser humano. Dessa forma, a vida se perpetua e os resultados para o homem/mulher/criança são cada vez mais satisfatórios.

2. Ser econômica e espiritualmente vantajosa, tanto para o produtor como para o consumidor Quando falamos em qualidade do alimento, o que realmente está em jogo não é apenas a saúde física e espiritual dos consumidores. Também o agricultor está em risco. Todos se comprometem com os resultados do próprio trabalho e esforço na medida em que eles influenciam, positiva ou negativamente, todas as pessoas que dele usufruir. O agricultor que deseja obter maiores lucros, lançando mão de tecnologias suicidas como o uso de agrotóxicos, por exemplo, estará impondo a todas as pessoas que futuramente consumirem os produtos agrícolas oriundos do seu trabalho, todos os malefícios provocados por essa forma muito pouco inteligente de produzir alimentos. Cultivar alimentos saudáveis e que incrementem cada vez mais a saúde humana e do meio ambiente que nos rodeia é talvez uma das formas mais inteligentes de criarmos a felicidade para a sociedade e para nós mesmos, enquanto agricultores. Evidentemente que vivemos numa sociedade baseada na troca de valores, sejam eles na forma de mercadorias ou de serviços. Com a agricultura não é diferente. Porém, é preciso ter em mente que todo trabalho precisa ser recompensado adequadamente, pois, do contrário, também estaremos impondo sofrimento a alguém e, neste ponto, os consumidores das cidades têm uma grande responsabilidade para com os agricultores. 24

É sabido no mundo inteiro que dentro da cadeia produtiva agrícola,


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os agricultores geralmente constituem o elo mais fraco do sistema. São eles os encarregados de lavrar a terra, cultivar o solo e colher os alimentos que alimentarão a sociedade nas cidades. Porém, geralmente são eles os que menos recebem pelo seu esforço. Nesta última safra de tomates em Maputo (2013), a caixa com 25 quilos chegou a ser negociada a US$0,30 – pouco mais de um centavo de dólar o quilo, com os produtores no principal mercado atacadista da cidade. Porém, aquele mesmo tomate era vendido aos consumidores da cidade a pouco mais de US$0,60 o quilo, ou seja, um preço quase 60 vezes superior ao que era pago aos agricultores. Exemplos como este estão largamente espalhados por todo o mundo e demonstram que existe muito trabalho a ser feito no sentido de equilibrar um pouco mais as coisas. Enquanto consumidores de produtos expostos nas prateleiras dos supermercados geralmente não nos preocupamos com aqueles que trabalharam para que estes mesmos produtos pudessem chegar até o alcance de nossas mãos. Não nos damos conta do verdadeiro valor a ser pago por quem mais se esforçou para que a nossa sociedade possa saciar a sua fome. Talvez por isso, muitos agricultores acabam lançando mão de recursos menos inteligentes, como o uso intensivo de agroquímicos, a fim de tentar buscar o tal equilíbrio de forças. Por outro lado, nós, como consumidores, precisamos valorizar o trabalho do homem do campo, reconhecendo o seu esforço e procurando incentivá-lo na medida em que valorizamos a produção de alimentos cada vez mais saudáveis, pagando por eles o preço realmente justo. Muitas vezes as pessoas questionam o porquê dos produtos orgânicos ou mesmo os produtos da Agricultura Natural terem um valor maior que os produtos chamados convencionais. Talvez a questão tenha que ser mais bem formulada, pois existem diversos fatores envolvidos, mas de forma simples podemos fazer outra pergunta: “e por que, afinal, os produtos da agricultura convencional são tão baratos?” É preciso saber que para economizar na mão de obra, os agricultores com um pouco mais de condições financeiras acabam lançando mão, por exemplo, do uso de herbicidas para promover a capina de seus campos. Ou seja, ao invés de pagarem a mão de obra de um trabalhador rural chegam à conclusão que, ao usar herbicidas, o trabalho é feito com um custo muitas vezes bem menor. Neste sistema altamente competitivo, cada centavo conta e os agricultores, na maioria das vezes, não enxergam alternativa. Daí a nossa responsabilidade enquanto consumidores. Seria muito interessante valorizar o trabalho dos agricultores, principalmente aqueles que estão

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lutando para promover a saúde das pessoas. Dar preferência aos produtos cultivados sem agrotóxicos é uma atitude não só interessante, mas nobre até. Igualmente interessante é frequentar feiras de produtos orgânicos ou naturais e incentivar o consumo de tais produtos a todos os amigos e conhecidos. Contudo, muitas vezes, os preços que pagamos pelos produtos oriundos de uma agricultura alternativa são abusivos, pois a eles são incorporados todo o custo necessário para uma nova cadeia de mercado: a certificação. Entraremos em maiores detalhes sobre esse assunto posteriormente, mas por hora precisamos saber que quanto mais variáveis colocamos numa equação matemática mais a sua solução se torna complicada. Cultivar alimentos puros e saudáveis precisa ser uma atividade simples, economicamente viável e capaz de ser realizada por qualquer pessoa, como veremos mais adiante. Assim, quanto mais agricultores, profissionais e amadores interessarem-se pelo cultivo natural de alimentos, mais teremos desses alimentos disponíveis nas nossas mesas. E será a nossa responsabilidade, enquanto consumidores, garantir que o trabalho desses agricultores seja devidamente valorizado, pois quanto mais simples e direta for a relação produtor-consumidor, mais vantagens econômicas cada um irá obter.

3. Poder ser praticada por qualquer pessoa e, além disso, ter caráter permanente A Agricultura Natural nos impulsiona ao desenvolvimento de uma visão holística não só do manejo agrícola de nossos solos, mas de todo o mundo natural ao nosso redor. Isso equivale dizer que para termos sucesso como agricultores naturais precisamos desenvolver a capacidade de ler as entrelinhas da Natureza, buscando desvendar seus segredos sem, contudo, querer sobrepujá-la. Ou ainda, que precisamos desenvolver o pensamento sistêmico, reconhecendo que tudo está conectado numa intrincável teia de relacionamentos.

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Todos os campos do conhecimento humano são úteis nesse caminho de descobertas. E não é por acaso que cada vez mais existam pessoas que, independentemente de sua formação profissional, estão praticando a Agricultura Natural sem as amarras do conhecimento tradicional. Seja em hortas caseiras ou mesmo em pequenos espaços de produção agrícola, um grande número de


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médicos, advogados, professores, donas de casa, jovens e até crianças vêm praticando uma agricultura que concorre para o bem-estar de nosso planeta, alcançando resultados realmente muito bons numa forma de cultivar em que o objetivo não é somente a produção de alimentos em quantidades que possam satisfazer as necessidades humanas, mas também que leva em conta a qualidade daquilo que se produz, na forma como se produz e no benefício que isso trará para quem consumir os produtos oriundos dessa atividade. Com um pouco de boa vontade e disposição para o trabalho, qualquer pessoa poderá, ao seu tempo e espaço, conseguir ótimos resultados com suas hortas e pequenas lavras e machambas. Aos grandes projetos agrícolas também é possível que um número cada vez maior de profissionais de diversas áreas do conhecimento, com seu devido esforço e aplicação, consigam evoluir no estabelecimento de uma dinâmica pró-ativa que respeite as relações naturais existentes entre todos os seres vivos, incluindo o próprio ser humano. Como já foi dito anteriormente, a produção de alimentos na modernidade segue uma lógica perversa, na qual se procura obter o lucro o mais rápido possível, cultivando de forma intensiva os solos sem se preocupar com o que poderá ocorrer às gerações futuras. Isto equivale dizer que o sistema de cultivo convencional não é sustentável na medida em que muito pouco se pensa nas futuras gerações em detrimento do abastecimento imediato das populações humanas. Os críticos certamente dirão que o importante é garantir a alimentação para a sociedade humana hoje, pois do contrário não haverá o amanhã. Também já tivemos a oportunidade de discutir que se o sistema de produção de alimentos da atualidade não sofrer um verdadeiro choque de gestão, é possível que estejamos condenando nossas futuras gerações ao exílio planetário amanhã. Pela lógica da produção convencional, nossos campos de alimentos se tornaram verdadeiros laboratórios tecnocratas, com profissionais cada vez mais especializados mas igualmente isolados em suas áreas de saber. Num primeiro momento, o aparecimento de uma praga numa determinada lavoura, por exemplo, é encarada como um problema fitossanitário e os profissionais dessa área do conhecimento são acionados para combater aquele mal a todo custo. Aquela praga é vista como o sintoma de uma doença perversa e os esforços acabam se concentrando no uso de fórmulas químicas que visam mitigar os efeitos daquela manifestação da Natureza sem, contudo, buscar as origens daquele sintoma.

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Porém, no nosso trabalho com a Agricultura Natural temos incontáveis exemplos de que aquilo que as pessoas se habituaram a chamar de pragas nada mais é do que a resposta natural a um fator de desequilíbrio – seja ele de ordem nutricional na relação solo-planta ou mesmo do nível de sentimento do agricultor. A maioria dos agricultores se esqueceu de sua vocação original que era a de promover a saúde das pessoas que irão consumir os produtos por eles cultivados. Os agricultores bem poderiam ser reconhecidos como os guardiões da terra, pois o seu trabalho deveria semear a vida e a felicidade de toda a raça humana. Porém, o que se observa atualmente é uma total inversão de valores, onde o lucro está no topo da pirâmide e é o objetivo a ser alcançado a todo custo. Na Agricultura Natural temos a oportunidade de realinhar o pensamento-sentimento-ação do ser humano, levando-o a uma vida concorde com as leis naturais e, logicamente, ao bem-estar de todo o planeta. Dessa forma, o agricultor natural pode se tornar um sustentáculo da cultura de uma nova era da civilização do Homo sapiens na medida em que lavrar a terra não somente com sua razão e conhecimento, mas também com seu amor e gratidão. Essa certamente será uma maneira eficiente de garantir não só a sobrevivência das futuras gerações do planeta mas também a sua alta qualidade de vida.

4. Respeitar a natureza e conservá-la O ser humano é Terra. Vivemos em comunhão constante com a Natureza e dela nunca deveríamos ter-nos afastado. Desde os primórdios da aventura humana neste nosso pequeno planeta, aprendemos a ouvir e entender dos sussurros do vento até o cintilar das estrelas no céu. O jardim do éden foi e sempre deveria ser o nosso próprio quintal, repleto de vida que pulsa e se propaga continuamente. Cada planta, cada inseto, cada pequeno vertebrado, cada pedregulho, tudo está mergulhado num gigantesco caldeirão cósmico de energia pura e fluida, continuamente se deslocando daqui para ali, gerando vida por onde passa. O sentido de buscarmos uma força maior interior está relacionado diretamente com a necessidade de nos religarmos à nossa própria origem, refazendo caminhos ancestrais e nos conectando com todo o meio ambiente circundante. Nosso pequeno planeta, orbitando uma estrela de quinta grandeza 28


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navegando na periferia de uma galáxia mediana do universo, constitui um milagre da vida, porém frágil e longe de ser único. Mas esse pequenino planeta, que comparado à imensidão cósmica que nos rodeia, assemelha-se mais a uma arca, metaforicamente referenciada a Nóe, na qual a aventura humana tem lugar juntamente com a aventura da própria Terra. Somos parte da Terra, viva que é, e respeitá-la é respeitar a nós mesmos.

5. Garantir alimentação para toda a humanidade, independentemente de seu crescimento demográfico Este certamente é um dos pontos que mais atrai discussões e debates entre os defensores da agricultura convencional e aqueles que defendem uma forma mais humanizada e ecologicamente equilibrada na produção de alimentos. Afinal de contas, como será possível abastecer a sociedade moderna, com o seu crescimento assustador, verificado principalmente nas últimas décadas, sem também elevar a capacidade de produção de alimentos em quantidades cada vez maiores? Os defensores do sistema convencional argumentam que é preciso usar toda a tecnologia disponível para transformar os campos agrícolas em verdadeiras fábricas de alimentos, sempre no menor tempo possível, usando a máxima capacidade de produção por área possível, etc. De fato, se observarmos mais atentamente os índices de crescimento demográfico e do consumo de alimentos em todo o mundo, chegaremos rapidamente à conclusão de que passadas mais algumas décadas o sistema todo entrará em colapso. Sabidamente, a produção ecológica de alimentos vem na contramão do pensamento imediatista e exclusivamente econômico de explorar a terra e os seus findáveis recursos naturais. Esta forma de pensar e praticar a relação Natureza-homem leva em consideração que todos precisam ganhar, humanos e não humanos. Sendo assim, devemos respeitar certos limites no que diz respeito à capacidade produtiva dos vegetais e dos solos nas diversas regiões do planeta. Seria muito mais inteligente se usássemos a capacidade natural das diversas plantas, oriunda de milhões de anos de evolução, de se desenvolverem adequadamente em suas respectivas regiões de origem. Um bom exemplo disso são as plantas da família dos amarantos (Amaranthus sp.). Essas plantas são cosmopolitas e muitas variedades crescem quase que sem nenhum tipo de intervenção humana. Talvez justamente por isso seja uma planta tão 29


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menosprezada na maior parte do mundo. O leitor provavelmente já deve ter estado próximo a um amaranto nos últimos dias, pois estas plantas crescem inclusive nas frestas de muros, sarjetas de rua ou num terreno onde o mato tenha crescido. Talvez se usar os nomes comuns que ela recebe nas várias regiões do mundo, como por exemplo caruru ou cariru no Brasil, tsec em Moçambique, gimboa em Angola, etc. muitas pessoas certamente irão fazer referência à planta. Mas o que poucas pessoas da atualidade sabem é que esta plantinha é uma excelente fonte de diversos nutrientes como vitamina C, beta-caroteno, um precursor de vitamina A, ferro e outros, além de ser muito saborosa. E como não é muito exigente, ou melhor, como normalmente está muito bem adaptada ao ambiente onde cresce, demanda muito pouco recurso, como água e trabalho.

Amaranthus spp – Em Moçambique, essa espécie é popularmente chamada de tsec

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Assim como os amarantos, existe um número quase infindável de espécies de plantas que poderiam tranquilamente garantir não só a sobrevivência


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humana em quase todo o planeta como também tornar a vida muito mais saudável e prazerosa. Contudo, a sociedade moderna globalizada criou os seus próprios padrões de consumo, e é justamente isso que a faz refém de um sistema destrutivo e totalmente insustentável de produção de alimentos. Hoje já se sabe que se todos os seres humanos existentes no mundo quiserem fazer parte do padrão de consumo dos países mais ricos, serão necessários pelo menos mais três planetas Terra! Por esse padrão, em muito lugares, praticamente pode-se encontrar tudo nos supermercados e em qualquer época do ano. Está cada vez mais difícil tentar explicar às nossas crianças o conceito de frutas da época. Nossos alimentos da atualidade viajam milhares de quilômetros entre os campos de produção até as nossas mesas e o custo ambiental e social desse nosso modelo é gigantesco. Mas vamos voltar ao ponto central da presente discussão de como é possível que a Agricultura Natural, mesmo sem usar de toda a artificialidade tecnológica da atualidade na produção de alimentos, seja capaz de garantir a alimentação para toda a humanidade. Pelo que podemos perceber da discussão até aqui será necessário que as pessoas percebam, de uma vez por todas, que passou da hora de repensarmos nossa própria maneira de viver e nos relacionarmos com o nosso entorno. Isso certamente irá requerer um grande esforço de todos, pois não é fácil nos separarmos das conquistas que tivemos ao longo das nossas vidas. Temos que lembrar de que o nosso sistema atual de sociedade não é altruísta e nem um pouco solidário. Pelo contrário, para que uma parcela relativamente pequena da humanidade possa usufruir de benefícios materiais, a maior parte dessa mesma humanidade perece sem qualquer perspectiva de uma vida digna e minimamente saudável. A Agricultura Natural não pode ser pensada simplesmente em termos de produção convencional de alimentos. Não basta apenas retirar do sistema o uso de adubos e agrotóxicos, mas continuar com o mesmo tipo de pensamento comercial, explorador e mecanicista. É preciso que o agricultor natural valorize o que existe perto dele, isto é, as plantas e alimentos que levaram milhões de anos de evolução para chegarem onde estão, sem se importar com os modismos consumistas da sociedade. O cidadão consumidor, por sua parte, precisa entender e conhecer o valor e o sabor de alimentos que estão muito mais ao seu alcance do que pode imaginar. Seria muito interessante resgatar nossas origens antepassadas, com a visão de futuro que temos hoje. Esta certamente será uma experiência única na história da humanidade e ainda temos

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a chance de fazê-lo de forma relativamente tranquila e gradual em muitos lugares, sem grandes traumas e distúrbios sociais. Temos tempo de rever muito do que estamos fazendo à Natureza e irmos ao seu encontro, considerando-a nossa parceira e não nossa escrava ou inimiga. Precisamos valorizar mais os nossos conhecimentos ancestrais e a nossa forma primordial de alimentação. Nada contra uma deliciosa torta de morangos, desde que possa ser feita com as frutas frescas da época. Se desejarmos apreciar uma saborosa manga madura, que tenhamos a paciência necessária para esperar a época certa do ano. E, finalmente, precisamos nos desprender das amarras do mercado consumidor globalizado, buscando no nosso próprio meio as fontes de alimentos que possam ser mais saudáveis e cultivadas de maneira mais sustentável.

O desenvolvimento da Agricultura Natural no mundo Inicialmente, a Agricultura Natural proposta por Mokiti Okada desenvolveu-se quase exclusivamente no Japão. Contudo, já na década de 50 do século passado, muitos dos adeptos do novo método agrícola começaram a difundi-lo por outros países. Seria exaustivo num curso como o nosso, descrever toda a história desse processo de internacionalização da Agricultura Natural. Por outro lado, vale a pena mencionar o estágio atual, pelo menos em parte, do trabalho agrícola baseado nos ensinamentos de Mokiti Okada. Consultas mais pormenorizadas podem ser facilmente encontradas na internet e qualquer pessoa pode ter acesso imediato a essas informações.

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Mas é preciso mencionar que, desde o início do trabalho de expansão do método da Agricultura Natural, seja pelo interior do Japão ou pelos países mundo afora, esse trabalho acabou sendo desenvolvido muitas vezes por pessoas e instituições independentes uma das outras. Dessa forma, por vezes poderão ser encontradas referências ao método de agricultura de Mokiti Okada com nomes diferentes, porém com o mesmo sentido. Agricultura Natural, Agricultura da Grande Natureza, Agricultura de Mokiti Okada, por exemplo, recheiam os mais diversos sites de compartilhamento de informações sobre o assunto.


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Existem diversos centros de pesquisa e desenvolvimento da Agricultura Natural espalhados pelo mundo. Por exemplo, os trabalhos da Fundação Mokiti Okada no Brasil foram iniciados no final dos anos 70 e hoje conta com a colaboração de dezenas de pesquisadores, muitos ainda ligados a várias universidades brasileiras. Além do Brasil, a Tailândia é outro grande centro de desenvolvimento técnico da Agricultura Natural e não podemos deixar de mencionar os trabalhos do agrônomo Paulo Oyama na França e mais recentemente em Portugal. Na França, a Agricultura Natural já vem sendo praticada por sua equipe há cerca de 20 anos e o seu esforço conta com o reconhecimento oficial do governo francês. Em África, os primeiros passos da Agricultura Natural aconteceram em Angola, no ano de 2001, no município de Bom Jesus, na província do Bengo. Num terreno de aproximadamente dez hectares, foi instalado o primeiro Polo de Agricultura Natural do país. Posteriormente, os trabalhos em Angola cresceram e nos últimos anos ganharam ainda mais força com a inauguração, em outubro de 2012, do Centro de Formação Profissional Mokiti Okada, em Cacuaco, Luanda. Hoje já são dezenas de terrenos espalhados por praticamente todas as províncias angolanas, onde diversos agricultores praticam a Agricultura Natural.

Centro de Formação Profissional Mokiti Okada, em Luanda, Angola

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Recentemente foi instalado o Polo de Agricultura Natural de Norokie, na África do Sul. No local também existe o projeto para a instalação, além do polo agrícola, de uma escola de Agricultura Natural. Em Moçambique, os trabalhos com a Agricultura Natural começaram em 2006 e hoje contamos com três Polos de Agricultura Natural, mais uma área que chamamos Centro Modelo de Agricultura Natural, em Michafutene. Dois dos nossos polos de Agricultura Natural em Moçambique encontram-se no distrito de Marracuene, nas comunidades de Agostinho Neto (quatro hectares) e Santa Isabel (1,5 hectare). O terceiro polo está localizado no distrito da Moamba, numa parceria com a Associação de Agricultores do Sector Familiar do Bloco II da Moamba, numa área de sete hectares. Centro Modelo de Agricultura Natural, Michafutene, Moçambique

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Além do trabalho com os polos de Agricultura Natural, também são fomentados os projetos Colheita do Polo de Agricultura Natural da Moamba, com a agricultura urMoçambique bana e hortas caseiras. Hoje, o movimento das Hortas Caseiras da Agricultura Natural ganhou contornos internacionais e vem sendo estimulado nos mais diversos setores da sociedade. Em África, dezenas de milhares de famílias já estão praticando as Hortas Caseiras em mais de vinte países, com destaque para Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, República Democrática do Congo, África do Sul e


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outros. Outra linha de trabalho refere-se às hortas em instituições públicas e privadas, como hospitais, centros de saúde e reabilitação e escolas. Em Moçambique, como veremos mais adiante no nosso curso, diversos agricultores praticam a Agricultura Natural em suas machambas e muitos deles já estão comercializando os seus produtos de forma diferenciada, criando as suas próprias redes de distribuição agrícola, onde conseguem obter resultados financeiros muito mais atrativos, ao mesmo tempo em que conseguem oferecer ao seu público consumidor preços mais acessíveis de produtos orgânicos/naturais do que aqueles normalmente praticados pelas redes locais de supermercados. Essa estratégia também será abordada no nosso curso. Por hora podemos adiantar que esses ganhos só estão sendo possíveis graças à otimização das relações entre o produtor agrícola e o consumidor, obtida através das redes domésticas de comercialização.

5. Bibliografia sugerida AFRICARTE. Agricultura natural e alimentação natural – coletânea. Luanda, Angola. Africarte, 2012. ALTIERI, Miguel. Agroecologia – bases científicas para una agricultura sustentable. Montevideo, Uruguay. Nordan-Comunidad, 1999. BOFF, Leonardo. Sustentabilidade: o que é – o que não é. Petrópolis, Brasil. Vozes, 2013. HILMI, Angela. Transição na cultura agrícola – uma lógica distinta. Askel Naerstad, 2012. MOLLISON, Bill. Introduction to permaculture. Wilton, USA. Yankee Permaculture, 1981. SEKAI KYUSEI KYO. Luz do Oriente. Vol. 2. Atami, Japão. Sekai Kyusei Kyo, 1994. XU, Hui-Lian. Nature farming in Japan. Hata, Japão. Research Signpost, 2006. 35


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