Revista Conceitos - nº 17 | Dezembro 2012

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propôs a razão como militante no combate à superstição e à ignorância, dois aspectos necessariamente causadores da infelicidade dos homens. Voltaire foi um escritor fervoroso. Seu trabalho era escrever. Isso era definido por ele como uma militância que o vigorava e divertia. Entre suas produções, há aquelas voltadas para a história, como O século de Luís XIV, História de Carlos II, Pedro da Rússia e Ensaio sobre os Costumes. Sua produção como historiador é definida por ele mesmo como uma “filosofia da História”, pois diz respeito a uma maneira peculiar de examinar o processo histórico e de reconstituí-lo. Esse termo também pode ser entendido como um contraponto à interpretação teológica da história. Um dos grandes interlocutores de Voltaire foi Bossuet1 que, no Século XVII, em sua obra Discurso sobre a História Universal, traçou a história de um mundo governado por Deus. Um entendimento de que o processo histórico vivido pelos homens era um plano de Deus. Voltaire contestou veementemente esse pensamento, pois, para ele, o historiador deve revelar os acontecimentos à luz da razão humana. Assim, o filósofo combateu as ideias que defendiam o poder e a interferência de Deus na história universal. Em suas leituras e análises sobre os escritos bíblicos, ele desconstrói os relatos míticos, por entender que eles apresentam contradições e fatos impossíveis de ser considerados do ponto de vista da razão, como, por exemplo, a serpente falante e o dilúvio universal. A maneira jocosa como Voltaire realiza essa desconstrução da história mítica é evidenciada no Dicionário Filosófico. Com uma perspicácia e ironia únicas, ele tece críticas severas das quais não poupa imperadores, nobreza, filósofos e, sobretudo, os religiosos, assim como os costumes, as tradições e as crenças. Um exemplo disso é este seu comentário acerca das façanhas de Abraão: Bem difícil seria, à luz da história moderna, ter

sido Abraão pai de duas nações tão diferentes. Dizem que nasceu na Caldéia, filho de pobre oleiro que ganhava a vida fazendo pequenos ídolos de barro. É pouco verossímil que esse filho de oleiro se haja balançado a ir fundar Meca a trezentas léguas de distância, debaixo do trópico, tendo de vingar desertos intransitáveis. Se foi um conquistador, certamente ter-se-á dirigido ao belo país da Assíria. Se, como o despintam, não passou de um pobre diabo, então não terá fundado reinos senão na própria terra (VOLTAIRE, 1764).

No item em que aborda o mito do dilúvio, ele afirma: Ora, sendo a história do dilúvio a coisa mais miraculosa de que jamais se falou, insensato seria explicá-la: trata-se de mistérios que se acreditam pela fé; e a fé consiste em crer no que a razão absolutamente não crê, o que constitui, ainda, outro milagre. Assim a história do dilúvio universal é como a da torre de Babel, da burra de Balaão, da queda de Jericó ao som das trombetas, das águas transformadas em sangue, da passagem do Mar Vermelho e de todos os prodígios que Deus se dignou fazer em favor dos eleitos de seu povo; trata-se de profundezas que o espírito humano não pode sondar (VOLTAIRE, 1764).

Em relação ao trecho citado acima, podemos complementar com outra afirmação do autor, feita no Tratado sobre a Tolerância, portanto em outro contexto, que contribui para se compreender o sentido que, em nosso entendimento, ele pretendeu dar àquela afirmação: “Quando os homens não têm noções corretas da divindade, as idéias falsas as substituem, assim como nos tempos difíceis trafica-se com moeda ruim, quando não se tem a boa […]” (VOLTAIRE, 1993, p. 117) A História, na concepção de Voltaire, deve ser escrita com base nos fatos, nos registros fidedignos e na análise racional dos relatos. Para

1 Jacques Benigne Bossuet (1652-1704) foi um dos principais teóricos do absolutismo por direito divino. Foi designado bispo de Condom (1669), no sudoeste da França. Renunciou ao bispado e ingressou na corte, onde teve a oportunidade de aperfeiçoar seus conhecimentos e integrar-se na política. Eleito para a Academia Francesa, também foi nomeado conselheiro do rei. Em 1681, foi designado bispo de Meaux e deixou a corte. Bossuet esteve tão integrado no absolutismo do reinado de Luís XIV que chegou ao extremo de definir como herético qualquer um que tivesse opinião própria. Temendo uma cisão dentro da igreja, entre os partidários do rei e os ultramontanistas (alusão ao fato de estar a sede da Igreja além dos Alpes), que consideravam os poderes do papa supremos e inatacáveis mesmo em solo francês, promoveu uma assembleia geral do clero francês em 1681-1682, cujo documento final redigiu e na qual ficou definido que o papa era autoridade somente em matéria religiosa.

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C O N C E I T O S Nº 17

Dezembro de 2012


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