2011__363_fevereiro

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A primeira sessão foi realizada no nosso Auditório Oscar Guanabarino, com o apoio do então Presidente Herbert Moses. P ÁGINAS 15, 16, 17, 18 E 19

CHIARO TRINDADE

RUY PEREIRA DA SILVA O jornalista e cinéfilo que criou a Cinemateca do Mam do Rio

Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa

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Jornal da ABI

FEVEREIRO 2011

A ABI PRESTA HOMENAGEM A ESSES VALOROSOS COMPANHEIROS , TODOS DESTACADOS JORNALISTAS . PÁGINAS 42, 43, 44, 45, 46 E 47

A OEA CONDENA A MATANÇA DE 62 NO ARAGUAIA O BRASIL FOI DECLARADO CRIMINOSO . PÁGINA 33

PROFISSÃO PERIGO!

Luiz Antônio Araújo em frente a um tanque do Exército egípcio: Fui agredido, empurrado, levei socos, pontapés. Só consegui manter a integridade física tirando o passaporte e dizendo ‘eu sou brasileiro’.

Jornalistas passam horrores na cobertura das rebeliões no Oriente Médio

PÁGINAS 22, 23, 26 E 27

THOMAZ FARKAS, O QUE

TRAGÉDIA NA SERRA COBRE

SÓ FOTOGRAFOU POR AMOR

QUEREM ACABAR COM A VOZ DO BRASIL

PROFISSIONAIS DE LUTO

NIEMEYER E SEU PRAZER AOS 103 ANOS: TRABALHAR

COM SUA ROLLEYFLEX A TIRACOLO, ELE CAPTOU , SEMPRE COMO AMADOR , AS IMAGENS DA S ÃO P AULO EM MUTAÇÃO . PÁGINAS 36 E 37

A PRETEXTO DE " FLEXIBILIZAR" O PROGRAMA, TRAMA-SE NO SENADO FEDERAL A SUA EXTINÇÃO. PÁGINA 31 E EDITORIAL NA PÁGINA 2

REPÓRTERES , FOTÓGRAFOS E EDITORES PADECERAM DEMAIS NAS CIDADES ARRASADAS PELOS TEMPORAIS . PÁGINAS 3, 4, 5, 6 E 7

ABSORVIDO POR VÁRIOS PROJETOS E PELA REVISTA NOSSO CAMINHO, ELE DIZ QUE O TRABALHO É UMA FORMA DE DISTRAÇÃO. PÁGINA 35

LUIZ ANTÔNIO ARAUJO/ZH

REPRODUÇÃO

ADEUS A TALARICO, REYNALDO JARDIM, JORGE NUNES E ODERFLA ALMEIDA


Editorial

DESTAQUES DESTA EDIÇÃO 03

SENADORES CONTRA O POVO

Especial - Os traumas e o heroísmo dos jornalistas da Região Serrana fluminense ○

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A TRAMITAÇÃO PRATICAMENTE clandestina dessa proposição visa a oferecer às empresas privadas da área da radiodifusão uma prebenda pela qual estas se empenham há décadas e que não se materializou nem mesmo sob o regime militar, quando essa bandeira foi levantada pelo capital privado instalado no setor de rádio. Estimando, num erro de avaliação, que seu interesse seria acolhido pelos então ocupantes do poder, o empresariado tentou de início a abolição da obrigatoriedade de transmissão do programa, para ganhar mais uma hora, no horário nobre, passível de comercialização e de produção de receitas e de lucros. Deram-se mal os interessados em abocanhar o horário do programa, pois não contavam que setores do próprio estabelecimento militar não concordariam com a mudança, por entenderem que a comunicação tem forte valor estratégico, especialmente nas áreas do Centro-Oeste e do Norte do País, em que o rádio exerce um papel fundamental como instrumento de informação. Não

Jornal da ABI Número 363 - Fevereiro de 2011

Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Edição de textos: Maurício Azêdo Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, André Gil, Conceição Ferreira, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Ivan Vinhieri, Mário Luiz de Freitas Borges. Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva, Paulo Roberto de Paula Freitas. Diretor Responsável: Maurício Azêdo

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Lançamento - Aplausos para os nossos quadrinhos

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História - O inventor da Cinemateca

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Polêmica - O WikiLeaks sem segredos

MALOGRADOS NA INVESTIDA INICIAL, que se arrastou por décadas, os patronos do silêncio partiram para uma variante, essa da flexibilização do horário de transmissão do programa, que seria mantido no segmento da noite, mas com a definição deste pelo arbítrio de cada emissora de rádio. Buscavam assim esses empresários tornar palatável e passível de adoção a medida proposta, no pressuposto de que poderiam convencer os parlamentares de que as informações do progama chegariam à população. É a aprovação dessa variante que foi posta na ordem do dia pelos defensores do silêncio, os quais, por esperteza e malandragem, calculam que poderão burlar o cumprimento de eventual lei a ser instituída, dada a dificuldade que terá o Poder Público para fiscalizar o respeito à legislação.

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Criatividade - A distração de Niemeyer: trabalho

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Fotografia - Thomaz Farkaz, um lobo em pele de fotógrafo

É PARA ESSE ASPECTO, além de para outros igualmente relevantes, que chama a atenção o jornalista Mário Augusto Jakobskind, membro do Conselho Deliberativo da ABI, que disseca em artigo nesta edição o caráter antidemocrático da pretensão dos empresários reunidos na Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão-Abert, a grande patrocinadora dessa proposta de sonegação de informações aos contingentes da população que dependem do serviço que suas associadas não querem prestar. Mário Augusto salienta a necessidade de as instituições de jornalistas e da sociedade civil fazerem pressão sobre o Senado Federal para sepultar de vez a rolha que a Abert quer impor a largos segmentos da cidadania. Essa é uma boa luta.

DIRETORIA – MANDATO 2010-2013 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Orpheu Santos Salles Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013 Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lage e Teixeira Heizer. CONSELHO FISCAL 2010-2011 Jarbas Domingos Vaz, Presidente; Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos de Oliveira Chesther e Manolo Epelbaum. MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2010-2011 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: Sérgio Caldieri Segundo Secretário: Arcírio Gouvêa Neto Conselheiros efetivos 2010-2013 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José Gomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tiognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral.

Representação de São Paulo Diretor: Rodolfo Konder Rua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51 Perdizes - Cep 05015-040 Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br

Conselheiros efetivos 2009-2012 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fernando Segismundo, Glória Suely Álvarez Campos, Jorge Miranda Jordão, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Wilson Fadul Filho.

Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

pôde, assim, prosperar o objetivo ambicioso dos interessados na imposição de silêncio às comunidades que dependem da Voz do Brasil para acesso à informação.

Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br

Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda. Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 Osasco, SP

Memória - O bramido do tigre, por Rodolfo Konder ○

QUASE NA SURDINA, aproveitando-se do silêncio que recobre boa parte das atividades rotineiras do Poder Legislativo, infelizmente não contemplado pelos meios de comunicação com a atenção que merece por sua importância para o regime democrático, a Comissão de Ciência e Tecnologia do Senado Federal está na iminência de adotar uma decisão altamente lesiva para o interesse público, sem que se possa articular medidas em defesa do bem público sob ameaça. Trata-se da tentativa de aprovar a chamada flexibilização do horário de transmissão obrigatória do programa radiofônico A Voz do Brasil, que constitui uma das principais fontes de informação da cidadania acerca da atuação dos órgãos dos Poderes da República e do Tribunal de Contas da União.

Conselheiros efetivos 2008-2011 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregesylo de Athayde, Arthur José Poerner, Carlos Arthur Pitombeira, Dácio Malta, Ely Moreira, Fernando Barbosa Lima (in memoriam), Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Mílton Coelho da Graça, Pinheiro Júnior, Ricardo Kotscho, Rodolfo Konder, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

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Exposições - Imagens em três atos ○

Seções ○

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MENSAGENS ○

A CONTECEU N A AB ABII ○

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Um ato em memória de Moacir Werneck

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O Semanário, de Osvaldo Costa, revive numa tese de mestrado

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Ladrões roubam letreiros da ABI

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L IBERDADE D E I MPRENSA Repórter, profissão perigo!

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“Uma função do jornalista é publicar o que ainda não foi publicado ou o que não querem que seja publicado”

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Querem sufocar A Voz do Brasil

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D I R EIT O S HU M A N O S EITO A OEA condenou o Brasil ○

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LIVROS João, para sempre, do Rio ○

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VIDAS Talarico, 72 anos de lutas

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Reynaldo Jardim, Um criador aberto para o novo

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Oderfla Almeida, nosso clown

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Jorge Nunes, fotógrafo e agitador

Conselheiros suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. Conselheiros suplentes 2009-2012 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Jordan Amora, Jorge Nunes de Freitas (in memoriam), Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Raimundo Coelho Neto (in memoriam) e Rogério Marques Gomes. Conselheiros suplentes 2008-2011 Alcyr Cavalcânti, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Ruy Bello (in memoriam), Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sylvia Moretzsohn, Sílvio Paixão e Wilson S. J. de Magalhães. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA José Pereira da Silva (Pereirinha), Presidente; Carlos Di Paola, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Toni Marins (in memoriam). COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Lênin Novaes de Araújo, Presidente; Wilson de Carvalho, Secretário; Alcyr Cavalcanti, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Geraldo Pereira dos Santos, Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lucy Mary Carneiro, Maria Cecília Ribas Carneiro, Mário Augusto Jakobskind, Martha Arruda de Paiva e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente, Jorge Nunes de Freitas, Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Douglas Tavolaro, Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO ORTOGRÁFICO DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA, COMO ADMITE O DECRETO Nº 6.583, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.


DANIEL CASTELLANO/AGP/FOLHAPRESS

OS TRAUMAS E O HEROÍSMO DOS JORNALISTAS DA REGIÃO SERRANA FLUMINENSE

DANIEL CASTELLANO/AGP/FOLHAPRESS

ESPECIAL

Funcionários da Prefeitura de Teresópolis e voluntários trabalham durante a madrugada para enterrar os mortos vítimas da tragédia, no Cemitério Municipal Carlinda Berlim.

As terríveis provações vividas pelos profissionais de jornal, rádio e televisão das cidades devastadas pelos temporais e desabamentos de janeiro: eles não só relataram as tragédias como foram também protagonistas de episódios carregados de dor e sofrimento. POR CLÁUDIA SOUZA

O

s profissionais de imprensa que atuam nos veículos de comunicação da Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro enfrentaram uma rotina de precariedade imposta pela catástrofe de 11 de janeiro, que causou danos aos sistemas de comunicação e energia, graves problemas de acesso e locomoção e condições de trabalho insalubres. Testemunhas da tragédia com que deixou mais de 800 mortos e milhares de desabrigados, repórteres, editores, cinegrafistas e fotógrafos sofrem duplamente as conseqüências das enchentes na condição de protagonistas de episódios

carregados de dor e sofrimento, como moradores das cidades afetadas. Muitos perderam parentes, amigos, vizinhos, casas. O Jornal da ABI recolheu nos dias 18 e 19 de janeiro depoimentos de 12 jornalistas da Região Serrana, os quais relataram a extensão do drama em suas trajetórias pessoais. São declarações marcadas pela dor, perplexidade, tristeza, desventura. O clima de incerteza reforçou o medo do desemprego, da fome, da violência, e também de outra enchente. Mesmo nessa ausência de perspectiva, surgiram relatos de esperança sintonizados no esforço fraterno e voluntário para

a reconstrução das cidades e de suas vidas. “O outro lado desta história é o trabalho incansável e incessante das equipes de todas as procedências, trabalhando madrugadas adentro sem cessar, no breu, na chuva, no risco, nos deslizamentos. São os que liberam estradas, recolocam postes, levam e buscam moradores, doações, resgatam, tratam, socorrem. Há também repórteres chorando em frente às câmeras por não suportar a visão do que é indescritível”, descreveu Luiza Pinheiro, 48 anos, moradora de Teresópolis, em texto veiculado na internet logo após as chuvas. Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

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ESPECIAL OS TRAUMAS E O HEROÍSMO DOS JORNALISTAS DA REGIÃO SERRANA FLUMINENSE RAFAEL ANDRADE/FOLHAPRESS

“Nunca imaginei que um dia fosse presenciar uma hecatombe desta proporção”

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Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

vel; quando passei a mão na cabeça de dois dos cachorros, a lágrima desceu dos olhinhos dos pastores alemães e eu não me contive e chorei copiosamente. Se eu pudesse pegava todos eles. Moro em um prédio no Centro de Nova Friburgo. A chuva teve início às 23h e caiu ininterruptamente até às 7h do dia seguinte. Por volta das 3h, o cenário era de escuridão e profusão de raios. Não havia luz, água, telefone, celular. Os carros passavam em frente à minha janela boiando. Na manhã seguinte, dia 12, saí de casa para ir à Redação, mas não consegui chegar ao jornal. Com água na altura da cintura, caminhei da garagem à entrada do prédio apenas de camiseta e cueca, com a bermuda abrigando a cabeça. Ao alcançar a rua, encontrei o cenário de guerra. Locais históricos como o Colégio Anchieta, a Capela Santo Antônio, o Teleférico, o Sesi, o Hospital São Lucas, a Apae, a Escola de Samba Acadêmicos do Prado, entre outros, foram destruídos, assim como os bairros Vilage, Riograndina, Campo do Coelho, Conselheiro Paulino, Prado, Amparo, São Geraldo. O volume enorme de água impedia qualquer forma de locomoção. Iniciei, então, o meu trabalho como voluntário em socorro às vítimas. Ficamos sem água, luz, telefone e comida. O comércio foi fechado, com lojas invadidas por 2 metros de água e lama. DIVULGAÇÃO

“Se durante a madrugada negra a cena era de muita água e destruição, quando amanheceu o dia a sensação que se tinha era de estar em uma praça de guerra ou em uma cidade que acabara de ser devastada por um terremoto no último grau da escala Richter. Em todos os bairros o cenário é de tristeza, pois com o avanço do trabalho de resgate aparecem corpos boiando, soterrados, mutilados. Nunca na História do Brasil se viu uma tragédia tão grande provocada pelas chuvas. Em 56 anos de vida, nunca vivi situação pior, nunca imaginei que um dia fosse presenciar uma hecatombe desta proporção. É humanamente impossível realizar qualquer trabalho que não seja o jornalístico ou o voluntário na tentativa de iniciar a reconstrução de Nova Friburgo. Tragédia, devastação, tristeza, comoção e muita dor. Este é o resultado de oito horas de chuva, 300 mil milímetros cúbicos de água que transformaram a madrugada do dia 11 de janeiro de 2011 em um momento inesquecível para os moradores de Friburgo. Cenas terríveis são vistas a todo instante, como a de Wellington, que perdeu a esposa e a sogra, mas foi resgatado e salvou seu filho Igor, de seis meses, embaixo dos escombros, alimentandoo com sua saliva; ou a do pedreiro Leandro, que perdeu a família inteira e agora auxilia o Corpo de Bombeiros a chegar aos locais mais difíceis. Há ainda os cães de um condomínio de Conquista, que foi totalmente destruído vitimando mais de 50 pessoas. A cena foi horrí-

JOSÉ DUARTE 56 anos, Chefe de Reportagem e Editor de Esporte do jornal A Voz da Serra, de Nova Friburgo, Presidente da Associação Friburguense de Imprensa, apresentador do programa Mãos Abertas, da TV Focus, Coordenador da Pastoral de Comunicação da Diocese de Nova Friburgo.

Desde então, vivo assombrado, em estado permanente de medo ao recordar a avalanche de 5 metros de água e os gritos de socorro. Em toda a cidade há 2.800 áreas de risco. A luz só retornou no sábado, 15. Contudo, muitas localidades ainda permanecem isoladas, sem água, luz, telefone. O jornal deixou de circular a partir do dia 12. Voltamos a rodar apenas na terça-feira, 18, em edição com muitas imagens e matérias sobre a tragédia. A cada momento surgem novos fatos em razão do gigantismo da catástrofe, que pode ser comparada ao inferno. Perdi um tio e três sobrinhos. É difícil retomar a vida sem o sistema de transportes. A equipe do jornal está completa, mas o expediente que, se encerrava às 20h, agora termina às 17h. Preocupação com a equipe A preocupação com os colegas nos acompanhou o tempo todo. O repórter Henrique Amorim, por exemplo, só conseguiu chegar à Redação seis dias após a tragédia. Leonardo Lima, também repórter, perdeu a casa que foi comprada há dois anos e está desalojado. A editora Angela Pedretti também

Parece uma cena de ficção: moradores de Vila Amélia, em Nova Friburgo, retiram a lama do interior dos prédios entre carros soterrados.

perdeu a casa e foi obrigada a se mudar para a casa de parentes no Rio. A Rádio AM Friburgo, onde também trabalho, ficou fora do ar. Retornou na quinta-feira, 13, juntamente com as tvs a cabo (TV Zoom, TV Focus, TV Luau, TVC News), que também sofreram alagamentos. Em esquema de revezamento entre os locutores, a programação oficial da Rádio AM Friburgo deu lugar à prestação de serviço à população que vagava pelas ruas sem rumo, em total desespero. O caos aumentou na sexta-feira, 14, quando espalharam um boato sobre o rompimento de uma barragem, que teria provocado a morte de centenas de pessoas. A rede InterTV e o SBT ficaram em melhores condições. Felizmente, conseguíamos as informações através da InterTV. Em meio ao caos, saquearam a Associação Friburguense de Imprensa, da qual sou Presidente, no terceiro mandato. O local foi tomado por meio metro de água. Ainda assim, arrombaram a porta e levaram todos os equipamentos, inclusive os computadores com os arquivos da Associação catalogados ao longo dos 53 anos de fundação da entidade. Denunciamos o roubo a um guarda municipal porque não tivemos como fazer o boletim de ocorrência, já que a delegacia está ilhada. Há, inclusive, muita dificuldade para levar alimentação aos presos. A reconstrução da cidade vai acontecer até porque todas as cidades precisam estar unidas neste sentido. Mas vai demorar porque os estragos foram muitos. Temos certeza de que teremos muito trabalho pela frente nos próximos 12 meses, no mínimo. Nossa cidade, outrora tão bonita, precisa voltar a sorrir. Nosso povo precisa voltar a viver e, principalmente, redobrar as orações no sentido de pedir a Deus e à Virgem Maria que nos conceda neste momento muita paz, tranquilidade e, acima de tudo, muita, muita, mas muita fé. Pedimos desculpas por este momento em que as lágrimas chegam, mas não temos como controlar, porque graças a Deus estamos vivos depois de uma catástrofe que já dizimou centenas de irmãos e deixou milhares desabrigados. O clima de incerteza soma-se ao medo do desemprego, da fome, da violência, de outra enchente. Sinto-me muito assustado e pretendo ir embora de Nova Friburgo, só não sei para onde.”


MARLENE BERGAMO/FOLHAPRESS

“Uma verdadeira tsunami jamais vista” HENRIQUE AMORIM 42 anos, repórter do jornal A Voz da Serra

Prosseguimos no trabalho voluntário. Em razão da dificuldade de acesso, só consegui retornar à Redação seis dias depois, na segunda-feira, 17, quando realizamos um mutirão para colocar o jornal na rua. É muito difícil cobrir o fato e, ao mesmo tempo, ser a vítima, personagens da tragédia. A onda de boatos sobre o rompimento de uma barragem se somou ao caos pela falta de energia, telefone, transporte. O pânico foi total. Nós jornalistas temos sangue frio. Lidamos muito com o jornalismo, conflitos no Oriente Médio, terremoto no Haiti. Porém, quando você vivencia a situação, é impressionante... Tudo o que você está acostumado a relatar sobre os outros, de repente, você acaba vivenciando experiência muito pior.” DIVULGAÇÃO

“Moro com minha família em uma casa na Chácara Paraíso. No primeiro andar do imóvel reside um casal de inquilinos. Atrás da casa passa um rio que transbordou. Por volta de 1h, percebi que o rio estava enchendo. Preocupado, tentei dormir, mas fui despertado pelos inquilinos que socavam as janelas e gritavam por socorro. Tudo fora encoberto pela água, que abriu uma clareira na montanha e uma enorme cachoeira. Cinco corpos desceram rio abaixo. Nossa situação foi agravada em razão da falta de energia e do volume intenso de chuva. Em meio à completa escuridão, eu e meu filho mais velho tentamos socorrer os vizinhos. Não conseguimos salvar móveis, eletrodomésticos ou outros objetos. Tudo se perdeu em meio ao desespero e à escuridão. Esperamos amanhecer, mas não havia possibilidade de ação nem de carro nem a pé. Para sair do local seria preciso caminhar sobre as árvores tombadas. O estado de calamidade pode ser resumido a uma frase: uma verdadeira tsunami jamais vista.

JADSON MARQUES/FOLHAPRESS

Em Nova Friburgo, voluntários retiram terra à procura de vítimas em meio a prédios devastados pelos deslizamentos de terra. Ao lado, um morador desolado olha o cenário de destruição.

que abrange 70% da região de Friburgo. Mais de 10 jornalistas da Rádio AM Friburgo se uniram para fazer a cobertura. Muitos retornaram das férias, como eu. A minha casa fica no bairro Vila Amélia, na Rua Souza Cardoso. Próximo dali, na Rua Teresópolis, houve queda de barreira, o que transformou a área em uma grande cachoeira. Nesta rua está localizada a delegacia da cidade, que ficou completamente ilhada. Na TV Zoom entrou água em tudo, menos no segundo andar, onde funciona o Jornalismo, e de onde a emissora foi colocada novamente no ar. Foram destruídos os cenários, auditório, seis estúdios. Tudo estava novo por causa do aniversário de 10 anos que a emissora comemorava este ano. Os anunciantes da tv e voluntários fizeram um mutirão para limpar o local e disponibilizar equipamentos.”

“A situação foi de colapso total” Em outro local onde havia um haras também foi muito triste ver os cavalos sem comida, sem água, caminhando sozinhos, morrendo. Receber fotos de crianças soterradas, ver tudo aquilo... É duro separar a emoção do trabalho. Você começa a receber as fotos e, de repente, vê um conhecido. Em 1988, também aconteceu uma tragédia imensa na cidade de Petrópolis. Mas não foi como agora, não sei dizer o porquê. A mídia está sendo primordial, importantíssima, além de qualquer órgão de informação, porque constantemente estamos informando as pessoas e, de alguma forma, consolando-as. Tenho muitos amigos no Clube Boa Esperança, onde sou sócio, que estão desaparecidos.”

“É duro separar a emoção do trabalho”

DIVULGAÇÃO

“Foi muito forte e muito triste. A rotina do jornal foi totalmente alterada. Todos modificaram seus horários e trabalharam das 8h às 20h. Os jornalistas que estavam de folga retornaram. No Vale do Cuiabá, em Itaipava, distrito de Petrópolis, foi muito triste ir a um lugar onde antes havia uma vila de 10 casas e depois não havia mais nada.

CARLOS MARQUES 65 anos - Editor do Diário de Petrópolis

“A Rádio AM Friburgo teve importante atuação durante as enchentes. Com a falta de energia elétrica, a emissora foi o único veículo com alcance em toda a região. As pessoas só tinham o rádio de pilha para obter informações. Ficamos no ar até quarta-feira, 12, graças ao gerador. Só retornamos dois dias depois, na sexta-feira, 14, quando novamente saímos do ar por problemas na torre de transmissão. Até o sábado, 15, a situação foi de colapso total. Eu estava de férias em uma ilha em Paraty sem comunicação quando ouvi um grupo de hóspedes paulistas comentando a tragédia em Friburgo. Caminhei mais de duas horas até conseguir sinal no celular. Tentei, em vão, falar com Friburgo. Telefonei para um colega no Rio, que me deu os detalhes. Imediatamente, interrompi as férias e voltei para Friburgo, onde, além da rádio, também trabalho no jornal A Voz da Serra e na TV Zoom,

WANDERSON NOGUEIRA 29 anos, Editor-chefe do Departamento de Jornalismo da Rádio AM Friburgo, colunista do Jornal A Voz da Serra, jornalista da TV Zoom.

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ANA CAROLINA FERNANDES/FOLHAPRESS

ESPECIAL OS TRAUMAS E O HEROÍSMO DOS JORNALISTAS DA REGIÃO SERRANA FLUMINENSE

“Desde o início dos acontecimentos nós modificamos a programação da rádio. Dedicamos o dia inteiro ao noticiário de utilidade pública. Somente no dia 18 voltamos, de alguma forma, à programação normal. Cheguei a ficar no ar durante seis horas ininterruptamente com boletins e relatórios sobre a tragédia. Vários profissionais deixaram de entrar de férias, e aqueles que estavam de férias retornaram ou foram convocados a voltar. Um casal de sobrinhos de um locutor da rádio morreu no bairro Fisher. Ele já tinha, inclusive, pago as despesas do casamento deles. O impacto foi grande. Nunca vi uma tragédia tão grande como esta. Acredito

DIVULGAÇÃO

“Em alguns lugares a informação só circulava onde o radinho de pilha pegava” WILSON MENDES 56 anos, âncora dos programas Debate 1510 e Bom Dia Cidade, veiculados na Rádio Teresópolis, e na Terê TV.

que depois disso tudo vamos precisar de apoio psicológico. A imprensa foi muito importante devido à dificuldade de comunicação. Em alguns lugares a informação só circulava onde o radinho de pilha pegava. A lista de desaparecidos era noticiada pela internet, a tv e os jornais. A grande mídia já está deixando a cidade, mas nós vamos continuar fazendo nosso trabalho aqui.”

“É muito difícil dormir depois de ver tantas famílias mortas”

“É um verdadeiro cenário de guerra”

“Aqui na Redação são três repórteres no turno da manhã e três no turno da tarde. Estamos trabalhando em função das enchentes desde a semana passada, durante todo o dia, sem parar. As folgas foram suspensas. Em um dos dias mais críticos, o editor do jornal só deixou a Redação às duas da manhã. Tivemos dificuldade de comunicação por celular, por isto tínhamos que esperar os repórteres voltarem das ruas para poder fechar a edição. Contudo, o jornal não deixou de circular. A gente fica muito mais sensibilizada porque tudo aconteceu no quintal da nossa casa. Às vezes, é preciso dar uma parada para segurar a emoção. Você conversa com as pessoas, elas parecem tranqüilas, mas têm o olhar perdido, e, do nada, começam a chorar.”

“Estamos com todas as equipes na rua, e de plantão de 8h às 23h, desde quartafeira, dia 12. Os que estavam de férias foram chamados de volta. A maior dificuldade foi o acesso a certos locais, quando tínhamos que sair do carro e andar por mais de duas horas. Também o fator psicológico por se tratar de nossa cidade, de bairros onde há pessoas conhecidas e amigos. Foi marcante ver as pessoas carregando nas costas as poucas roupas que tinham, deixando suas casas, totalmente destruídas. O que para jornalistas de fora é apenas uma pauta, para nós é diferente, é um verdadeiro cenário de guerra.”

MARIANNY MESQUITA 25 anos, repórter da Tribuna de Petrópolis

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DIVULGAÇÃO

“É preciso dar uma parada para segurar a emoção”

MARCELO MEDEIROS Editor do Diário de Teresópolis

CLAUCIO MIZAEL 34 anos, repórter da Rádio Teresópolis

DIVULGAÇÃO

Teve também o caso de uma menina de 11 anos, da Cascata do Imbuí, que alertou a família sobre a enchente. Todos se salvaram e ela acabou morrendo nos escombros. Você ouvia o choro de crianças embaixo de escombros. O resgate não chegou a tempo. As crianças faleceram. Em Fazenda Alpina caminhei três horas até chegar a um local onde encontrei cinco corpos. Tem sido muito difícil deitar e dormir depois de ver tantas famílias mortas.”

“A rádio ficou fora do ar durante 48 horas” “As fortes chuvas e os problemas de acesso e locomoção dificultaram a cobertura jornalística nos dois primeiros dias após o início da enchente. A rádio ficou fora do ar durante 48 horas. No terceiro dia, retornamos de forma precária. O Departamento de Jornalismo enfrentou muitas dificuldades na cobertura nas ruas. Em São Geraldo, 25 pessoas foram soterradas. Entre os dias 13 e 15, o local ficou ilhado, sem circulação de carro ou ônibus. Apenas automóveis pequenos conseguiam passar. Felizmente, o meu condomínio não foi atingido.

COARACY MARTINS 60 anos, repórter da Rádio AM Friburgo

Bem próximo dele está localizada a estrada que dá acesso à adutora, onde desabaram três casas, com registro de oito mortos em apenas uma das casas. A quantidade de pessoas soterradas é muito grande. Pode até mesmo superar o número de mortos.” DIVULGAÇÃO

Vista aérea da destruição no bairro de Campo Grande, em Teresópolis.

“Amanhecemos na quinta-feira, 14, sem telefone. Não tínhamos comunicação com a rádio. O que se via era as pessoas nas ruas desesperadas procurando informações. Aos poucos fomos tendo noção da proporção da tragédia. A rádio ficou fora do ar durante cinco horas. Mas a partir daí o rádio foi fundamental como meio de comunicação. Somente duas operadoras de celular tinham sinal. A troca de informação na cidade era feita unicamente através do telefone fixo da rádio. Sou repórter-policial e estou acostumado a ver mortes, acidentes de carro e moto com vítima. No entanto, foi chocante ver bairros onde dezenas de pessoas morreram. Foi chocante ver o resgate de uma senhora de 70 anos já morta.


CAIO GUATELLI/FOLHAPRESS

“Mantivemos a Globo em condições de trabalho”

Chefe de Reportagem da rede InterTV, que abrange as cidades de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo.

ANTÔNIO FERNANDO

“Senti muito medo de morrer, como tantas pessoas morreram” “Crônica de uma morte anunciada. Assim me refiro à tragédia em Friburgo, região que carece de medidas preventivas contra enchentes. A cidade tem muitas montanhas e uma área estreita para a circulação urbana. Moro em Vila Nova, no Condomínio Park Ville. O local era mesmo um parque até acontecer a tragédia. Atrás do condomínio existe uma cachoeira que só enche quando chove. Fica embaixo do campus da Uerj. O alagamento foi muito grande e atingiu 120 famílias. Sofri todo o drama dentro de casa, tendo de escalar árvores caídas com a água descendo forte, num cenário assustador, com muitos

raios. Senti muito medo de morrer, como tantas pessoas morreram. Vivi horas de pânico e terror e me senti um incompetente no socorro às pessoas, em meio ao sofrimento coletivo. Quando amanheceu, no dia seguinte à chuva, eu e minha família deixamos a casa. Fui participante de uma enorme histeria causada pelo boato sobre o rompimento da barragem no Rio Grande. Diziam que a água inundara tudo e que seguia para o Centro da cidade. Foram momentos de extrema tensão. Segui para o jornal onde os telefones funcionavam precariamente. Passamos uma semana sem celular, sem

54 anos, editorialista do jornal A Voz da Serra

luz, imaginando o pior cenário de guerra, de catástrofe de grande proporção. Nada se compara a tudo aquilo. No sábado, 15, todos os repórteres fotográficos estavam nas ruas, entretanto, sem conseguir chegar às regiões para fazer a cobertura. Deixamos de circular durante quatro dias e não tínhamos condições técnicas para veicular a versão online. Em diversas ocasiões vi e ouvi carros de som, em uma iniciativa particular, anunciando as notícias que eu, como jornalista, me sentia na obrigação de dar, mas não conseguia. A rádio AM Friburgo nos salvou transmitindo a informação oficial”.

LEONARDO LIMA 23 anos, repórter do jornal A Voz da Serra, aluno do 8º período de Comunicação Social.

“Perdemos cinco vizinhos e estamos desalojados” “Minha casa, localizada em Duas Pedras, foi cercada por uma enorme quantidade de lama que devastou a rua e derrubou parte do prédio do Hospital São Lucas, abaixo do Rio Teresópolis. Perdemos cinco vizinhos e estamos desalojados. Eu estava dormindo quando, às 3h da manhã do dia 12, fomos surpreendidos pela grande avalanche. Ficamos entre a barreira que desmoronou e o rio que encheu. Esperei amanhecer, mas só consegui sair pela casa do vizinho. Encontrei toda a área interditada. Não era possível seguir a pé ou de carro.

Horas depois, eu e minha família caminhamos muito até chegar ao Centro e à Braune, onde fica a casa de uma tia. Estou abrigado juntamente com meus pais e um irmão. A Defesa Civil comunicou que a nossa casa não corre risco, mas o local permanece ilhado, sem luz e água. A casa de minha avó materna está localizada na Rua Doutor Hélio Veiga. De acordo com o laudo da Defesa Civil, o imóvel foi bastante afetado e está sob risco. Meus avós, tios e dois primos estão alojados na casa de um amigo de

outro primo nosso. Quando voltarmos para casa levaremos todos, mas vai faltar espaço. Tenho poucas roupas, um tênis sujo de lama e muitas dificuldades. Meu pai é autônomo e trabalhava em nossa casa com equipamentos para o setor de confecção. Ele depende da casa para sobreviver. Estamos sem perspectiva e bastante preocupados com o que poderá acontecer.” DIVULGAÇÃO

CRISTIANE ARMOND

A Igreja de Santo Antônio, no centro de Nova Friburgo, foi destruída pelo deslizamento do morro do teleférico.

DIVULGAÇÃO

“Em Nova Friburgo ficamos sem luz entre às 4h do dia 12 e às 11h do dia 13. Uma equipe da tv ficou ilhada. A água não invadiu as nossas instalações em nenhuma das cidades atingidas pelas enchentes. Várias pessoas retornaram das férias e equipes de outras praças foram remanejadas para a Serra. Cobrimos Teresópolis, Petrópolis e Friburgo com sete equipes que se revezavam. O Departamento de Engenharia enviou oito profissionais para Nova Friburgo, e o Departamento Administrativo também enviou pessoas para nos fornecer alimento, água e estrutura de trabalho. Registramos 12 rompimentos de fibras ao longo da cidade na fibra oferecida pela Oi para o link. Com relação ao telefone, tivemos falhas no equipamento. Com o rompimento de fibras de voz, ficamos sem comunicação para restabelecer o sinal. Um de nossos técnicos caminhou sozinho por mais de 2 km de subida, passando a pé por sete quedas de barreira para restabelecer o nosso sinal. Fizemos esquema de transporte de microondas e instalamos canal de áudio para nos comunicarmos com a cidade via estúdio. Tivemos que fazer transporte de combustível e fomos os responsáveis pelo funcionamento do carro de link da Globo do Rio, que ficou sem gasolina. Nós mantivemos a Globo em condições de trabalho em Nova Friburgo. Para apurar a notícia fizemos rondas na rua, pelo rádio, que em alguns momentos funcionava, e tentando os chips de outras operadoras. Um cinegrafista nosso perdeu a nora e toda a família dela. Vários colegas têm parentes acolhidos nas casas de outros familiares. Registramos muitas mortes de amigos dos funcionários da tv, já que a cidade é pequena e a maioria dos nossos profissionais é de Nova Friburgo. Tivemos vários colegas que, mesmo na angústia de não saberem notícias de parentes, compareceram para trabalhar.”

Colaborou Renan Castro, estagiário da Diretoria de Jornalismo da ABI.

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MEMÓRIA

O bramido do tigre “Nas trilhas de cross-country, encontrei, aos poucos, o antídoto para as seqüelas da tortura.” POR RODOLFO KONDER

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Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

roteiro imprevisível, que me levou da fé à razão. Da certeza ingênua ao ceticismo necessário. Existe um discurso lido e falado, das reuniões clandestinas; dos encontros em Stony Brooks; da assembléia da OEA; dos debates em Espoo, Miami, Yokohama, Águas de Lindóia ou Dublin, entre as paredes do Trinity College; das mesas-redondas nos clubes e na televisão; dos seminários; das entrevistas; das campanhas; das discussões na Rua Harmonia. É o discurso da representação. Real, mas externo. O acting. Existe, no entanto, outro discurso, subterrâneo, bem menos linear, mesclado de emoções, intuições e sentimentos. É o subtexto, que demora a se definir e dispõe da sua própria sintaxe. Aqui, ficaram registrados na memória o vento, no topo da CN Tower, em Toronto; os esquilos e as folhas do outono, no Central Park; as costeletas de cordeiro do A La Catalogne; as sessões do Carnegie Hall Cinema; as madrugadas em Campos do Jordão; a Calle Maipú e a poesia de Borges; a descida das Ramblas, em Barcelona; o acervo egípcio do Metropolitan Museum; snow flurries caindo sobre o Sena; os musicais da Broadway; o lago congelado de Arundel; os gestos de ternura; os filmes da minha coleção; a cerveja dos monges trapistas, sorvida em Bruxelas com o meu irmão; aquela viagem de trem; os passeios a cavalo nas terras da Guariroba; as pontes de Estocolmo; os impressionistas do Jeu de Paume. E a hora do amor. Acima de tudo, a hora do amor. O pescoço de gazela, a pele de pêssego, a mão na mão e o bramido do tigre.

ELIANE SOARES

N

a solidão de Sherbrooke West, olhando a neve cair lá fora sobre telhados e automóveis, eu sentia o passado fender o silêncio. Na madrugada de frio e neblina, nos cafés, nas trilhas de cross-country, encontrei, aos poucos, o antídoto para as seqüelas da tortura. Olhei nos olhos os meus demônios – e pude exorcizá-los. Falei, contei, escrevi, reescrevi. Sai para a tempestade e subi a montanha. Chocolate quente junto à lareira. As feridas cicatrizavam lentamente. Mas a fera já não espreitava a vida, nem o tempo gotejava como sangue. No Canadá, tornei-me membro da Ligue des Droits de L’Homme, a Liga dos Direitos do Homem. Na etapa seguinte do exílio, em Nova York, procurei o representante da Anistia Internacional: Andrew Blane, o amável morador de Morton Street, 44 A, Greenwich Village. Mudava o cerne das minhas preocupações políticas. Nove meses na Big Apple me colocaram em contato com o junk food, o Bronx, os pedintes do metrô e os bêbados de Times Square. Também me permitiram conviver com o dinamismo, o conforto, a modernidade de um cenário que vai das universidades aos museus, dos teatros às livrarias, da televisão ao Central Park. Há um roteiro geográfico, um longo roteiro físico que me leva à Cidade do México, me faz visitar Acapulco e Cuernavaca, Lima e Santiago, detém-se em Montevidéu, serpenteia pelo interior do Uruguai, entra em Santana do Livramento, passa por Porto Alegre, São Paulo e volta ao Rio de Janeiro. Também fazem parte deste roteiro viagens ao Chile, uma fuga emocionada por Foz do Iguaçu, Posadas, Buenos Aires e Lima, até o Canadá. A permanência em Nova York; repor-

tagens na Argentina, Portugal, Espanha, França e Inglaterra; encontros no Japão, Finlândia, Suécia, Escócia, Irlanda e Bélgica; missões diplomáticas na Guatemala e nos Estados Unidos – tudo está lá, devidamente registrado. Mas há também um segundo roteiro, subjetivo e complexo, de indecifrável percurso. Um

RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, é Conselheiro da ABI, Diretor da Representação da ABI em São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação da Cidade de São Paulo.


Aconteceu Mensagens na ABI

LANÇAMENTO FRANCISCO UCHA

Maria Lúcia sai em defesa de Lobato Autora de livros infantis, com mais de 20 obras publicadas, a escritora Maria Lúcia Amaral mandou mensagem de aplauso à Casa pela defesa do escritor Monteiro Lobato, feita na Edição 360 do Jornal da ABI na matéria Monteiro Lobato na mira da intolerância. Maria Lúcia elogia também a matéria O horror da tortura num relato chocante, publicada na mesma edição, a qual denuncia os crimes praticados por torturadores durante a ditadura militar. Sócia da ABI desde 13 de maio de 1955 e às vésperas de completar 95 anos, Maria Lúcia vive atualmente praticamente reclusa, voltada para leitura de obras literárias e periódicos, entre os quais o Jornal da ABI. Diz sua mensagem: “Maurício Azêdo, meu amigo, Vocês estão de parabéns com esse número de novembro da ABI que difunde o grande Monteiro Lobato, que fez os

livros preciosos que nós temos para as crianças. Relendo o livro do inglês Crônicas de Carlo J. Dunlope sobre o início da vida do Rio de Janeiro, encontro a seguinte legenda dita por Monteiro Lobato: “Um país se faz com homens e livros”. Estão também de parabéns quando tratam da questão da tortura de 64. Só o Brasil põe as coisas debaixo do tapete. É impressionante! Tem que ser apurado o desaparecimento de muita gente. Parabéns, mais uma vez, a você e seus companheiros do Jornal. É preciso que eu diga, é por isso que com muita honra recebi pelos meus livros o Prêmio Monteiro Lobato, concedido pela UBE-RJ. Um abraço cordial (a) Maria Lúcia Amaral.”

Guidacci, Aliedo, Ota e Floriano Hermeto estiveram na Travessa curtindo os quadrinhos.

Aplausos para os nossos quadrinhos Segundo volume de A Cronologia dos Quadrinhos do Jornal da ABI, lançado na Livraria da Travessa Leblon, recebe elogios de quem entende do riscado. POR P AULO C HICO

“Jornal da ABI, o melhor alternativo”

“Vocês estão de parabéns”

O Jornal da ABI foi apontado como o melhor alternativo do Brasil pelo jornalista, escritor e dramaturgo Aguinaldo Silva, que postou em seu site (www. aguinaldosilvadigital.com.br) comentários elogiosos à edição de dezembro de 2010 do Jornal da ABI dedicada aos 60 anos da História da TV no Brasil. Consagrado como um dos maiores novelistas do Brasil, Aguinaldo Silva concedeu entrevista ao jornalista Paulo Chico para a edição número 361 do Jornal da ABI, na qual relata suas experiências profissionais no jornalismo, na literatura, como roteirista de tv e novelista, além de sua participação na luta contra a ditadura, e a relação com a ABI, da qual é antigo associado. Em seu site, Aguinaldo Silva recomenda aos usuários que se interessam por televisão que leiam a edição especial do Jornal da ABI dedicada aos 60 anos da televisão brasileira. “O Jornal da ABI é mensal, é o melhor jornal alternativo dentre os que se produzem atualmente no País (levando em conta que Piauí é uma revista), e nesse número especial está melhor ainda… E não apenas porque tem uma entrevista de cinco páginas comigo (a primeira delas aparece na foto abaixo), mas porque disseca, de forma quase científica, os primeiros sessenta anos dessa que é a nossa grande paixão – minha, sua e de 180 milhões de pessoas –, a televisão brasileira.” Modesto, Aguinaldo contou mal: a entrevista ocupa seis páginas da edição.

Vocês estão de parabéns pelo trabalho – a publicação ficou informativa, de leitura agradável, e bonita também, até mais com jeito de revista que de jornal. Fiquei muito satisfeita de ter colaborado, e só lamento não ter achado mais fotos pra te dar... Até já recuperei algumas que estavam emprestadas, e vou ter que reorganizar o arquivo porque estou trocando um móvel no escritório. Vai ser uma boa oportunidade pra botar a memória em dia... Sucesso pra você e bons trabalhos. Como diz o pessoal do teatro -merde pour toi! Beijos (a) Sandra. E-mail enviado pela jornalista Sandra Passarinho ao repórter Paulo Chico, que a entrevistou para a Edição 361/Dezembro de 2010

“Edição esplêndida” Acabei de receber na Redação da TV Globo, em São Paulo, a espetacular edição comemorativa do aniversário da tv no País. Edição para guardar e mostrar aos que por aí virão que fazer televisão continua sendo tão fascinante quanto há sessenta anos atrás. (a) Nélio Horta, São Paulo. E-mail enviado à Presidência da ABI com esse titulo na indicação do assunto.

Desenhistas em atividade – Aliedo, Guidacci, Ota – e um que cedo deixou as lides – Floriano Hermeto, desenhista das cinco principais edições da revista O Judoka, que circulou nos anos 70 – e associados da ABI participaram na Livraria da Travessa Leblon, em 9 de fevereiro, do lançamento da Edição nº 362 do Jornal da ABI, dedicada à cronologia das histórias em quadrinhos no Brasil e no mundo e que constituiu o segundo volume da série iniciada em novembro de 2009. Entre os convidados, uma presença ilustre: a advogada Francisca Talarico, viúva do jornalista José Gomes Talarico, que ao falecer, em dezembro passado, era o decano do Conselho Deliberativo da ABI. Também, compareceram ao ato, que se estendeu por algumas horas, os associados Maurício Azêdo, Luiz Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho e Geraldo Pedroza. Além de dar continuidade à linha do tempo da evolução das histórias em quadrinhos, A Cronologia dos Quadrinhos 2 publica matérias de grande interesse, como uma entrevista com Mauricio de Sousa, concedida a Francisco Ucha, um dos editores da publicação ao lado de Maurício Azêdo, e perfis de importantes nomes da história dos gibis no Brasil, como Adolfo Aizen, Jayme Cortez e o mestre do desenho Floriano Hermeto, engenheiro civil de formação que, com apenas cinco edições de O Judoka no currículo, é uma referência do desenho no gênero. Outra reportagem da edição, que continua à venda na Livraria da Travessa Leblon e também pode ser adquirida na sede da ABI, trata do lançamento do dvd Profissão Cartunista – Will Eisner, premiada produção que desvenda os segredos desse gênio norte-americano. “Documento histórico” O cartunista Ota salientou como é importante o Jornal da ABI abrir espaço

para o resgate das histórias em quadrinhos. “Essas edições chamam a atenção para as hqs e levantam o debate sobre essa arte. Este é um bom momento para isso, pois é preciso repensar o mercado de quadrinhos, que, em geral, está nas mãos de pessoas que não entendem e nem gostam dessas publicações – querem apenas investir em produtos consagrados e ganhar dinheiro... É necessário, por exemplo, adaptar as hqs para as novas mídias digitais, pois o papel é um formato cada vez mais superado, sobretudo para as novas gerações”, afirmou. Aliedo foi outro artista do traço que prestigiou o lançamento. “Esta nova edição está muito bem feita e conta com bom conteúdo e ótima apresentação. É um documento histórico sobre as hqs. Acho que ela deveria estar à venda nas bancas de jornais, ao alcance de mais pessoas, e não restrita só aos associados da ABI”. Floriano Hermeto, um dos retratados na edição, foi ao lançamento acompanhado da família. E concordou com Aliedo. “Ainda falta reconhecimento aos quadrinhos como arte. Uma edição como esta chama a atenção para o gênero. E, acredito, ela terá uma grande procura por parte do público no estande de vendas da Livraria da Travessa.” Produtora responsável pelo filme Profissão Cartunista – Will Eisner, que chega agora ao mercado no formato dvd, pela Rob Digital, Marisa Furtado esteve no lançamento. “Lembro que quando era menina meus pais não me davam dinheiro para comprar gibis. Por isso, fiz amizade com um jornaleiro perto da minha casa. Pegava as revistas, arrumava-as em seqüência na calçada, bem ao lado da banca, e lia tudo aquilo de uma só vez, em série. Ficava mergulhada naquele universo fascinante! Por isso, acho louvável uma edição desta qualidade, toda colorida, que volta sua atenção para a análise e o resgate dos quadrinhos no Brasil”, elogiou. Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

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Aconteceu na ABI

Um ato em memória de ELIANE SOARES

Moacir Werneck Companheiros da Última Hora e personalidades da vida cultural e política participaram da sessão em que o Conselho Deliberativo da ABI prestou homenagem a este seu destacado membro. POR CLÁUDIA S OUZA Menos de uma semana após o seu falecimento, ocorrido em 25 de novembro passado, o jornalista Moacir Werneck de Castro recebeu homenagem de seus companheiros da ABI e de personalidades da vida cultural e política, entre os quais três membros da Academia Brasileira de Letras: Cícero Sandroni, Nélida Piñon e Afonso Arinos de Melo Franco Filho. O ato ocupou toda a sessão de novembro do Conselho Deliberativo da ABI, da qual Moacir era membro desde 1945. A viúva de Moacir, jornalista e tradutora uruguaia Glória Rodríguez, a Nenê, as netas Beatriz Lampreia e Adriana Vierci e os sobrinhos Antônio Joaquim Werneck de Castro e Ione Werneck estiveram presentes à cerimônia, que contou com a participação de membros da Diretoria e do Conselho da ABI, entre os quais Rodolfo Konder, Pinheiro Júnior, Orpheu Santos Sales, Leda Acquarone, Ilma Martins, José Pereira da Silva, Mário Augusto Jakobskind e Sílvio Paixão. Outros amigos e admiradores de Moacir associaram-se à homenagem, como Eric Nepomuceno, o cartunista Jaguar, Maurício Dias, Sônia Meinberg, Ricardo Cravo Albin, Beatriz Bissio, Rosa Freire D’Aguiar, Marcus Fernando Gasparian, Ovidio de Melo, Ligia Doutel de Andrade, Rafael de Almeida Magalhães e Teodoro de Barros. Formaram a mesa de honra Maurício Azêdo, Presidente da ABI, Pery Cotta, Presidente do Conselho Deliberativo, Sérgio Caldieri e Arcírio Gouvêa Neto, Primeiro e Segundo Secretários do Conselho, o acadêmico e jornalista Cícero Sandroni e o Embaixador e acadêmico Afonso Arinos de Melo Franco Filho. Atual, 20 anos depois Sandroni iniciou a cerimônia sublinhando a trajetória de Moacir Werneck de Castro nas letras: “Dizer saudoso e querido amigo é um tanto clichê, mas não há como não dizer 10 Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

pela comoção que nós temos neste momento pela saudade e pela perda desse grande brasileiro que foi Moacir Werneck de Castro. Gostaria de lembrar que em seu livro Ponte dos Suspiros ele fazia uma ligação entre a Ponte dos Suspiros em Veneza com uma forma de ponte que o Presidente Tancredo Neves representaria quando eleito pelo Colégio Eleitoral. Moacir Werneck escreveu muitos livros, um deles sobre Fritz Müller, primeiro grande ecologista do Brasil. Escreveu O Sábio da Floresta, sobre a situação do Vale do Itajaí, antevendo as enchentes que vitimaram dezenas, centenas de pessoas em Santa Catarina. Mas em Ponte dos Suspiros ele traz uma informação que para ele seria ingênuo pensar que com Tancredo a aliança democrática escaparia de ruptura sob pressão dos interesses do conflito e das pressões regionais. Ou que o PMDB, palavras do nosso querido Moacir, fugisse ao seu destino de se fragmentar entre as disputas na hora das partilhas dos grandes atos do Governo federal. Escreveu isso há mais de 20 anos e é de uma atualidade impressionante e deveria ser reeditado.” “Herança moral” O papel de Moacir Werneck de Castro na História da Imprensa brasileira também foi destacado por Sandroni: “O jornalismo, e estou falando na Casa dos Jornalistas, às vezes peca na apressada ligação ao fato do dia. E, paradoxalmente, essa sem dúvida é sua melhor qualidade. Mas o tratamento diário do fato, os jornalistas de qualidade transformam em matéria. É nessa categoria de jornalistas na qual se enquadra e sempre atuou Moacir Werneck de Castro desde o início de sua carreira. E, ao fazer o jornalismo de análises, combina com a formação erudita, sem comprometer o prazer da leitura, Moacir fazia também ciência política, não aquela insípida de alguns poucos textos acadêmicos e pesquisas universitárias. A ciência de Moacir não renunciava à denúncia da injustiça social com sua palavra contundente contra o obscurantismo e a

luta totalitária. Com seu estilo cativante, Moacir administrava ciência em verdadeiras aulas em que não dispensava pesquisas sempre renovadas em busca de novas fontes e novas informações para o leitor.” “Aos 95 anos, nós perdemos Moacir Werneck de Castro numa vida dedicada a pensar e interpretar o Brasil. E é essa a grande lição que ele deixa para todos os que exercem o ofício da qual esta Casa é síntese e símbolo. A profissão que exige arte, técnica, ética e uma apurada noção de realidade. Assim ele nos deixa, querida Nenê, ele nos deixa, além da saudade, uma herança moral que a morte não derrota; e a nós e aos que vierem depois, o testemunho de um jornalista exemplar.” Albin, por Arinos Na seqüência, o Embaixador Afonso Arinos de Melo Franco fez a leitura de um texto assinado pelo jornalista e pesquisador Ricardo Cravo Albin em homenagem a Moacir: “Ele reunia uma canônica convergência das chamadas virtudes de essência, quase o homem perfeito: o caráter, a honradez e o trato pessoal. Caráter ele o tinha inatacável, e acima de todas as banalidades escorregadias da vida. Honradez ele exercia como referência pétrea e com a volúpia dos que não se curvam jamais. No trato pessoal destilava com

modéstia, simpatia e luz, muita luz, que irradiava por todas as andanças de sua longa e bela trajetória. Espelho perfeito da sua alma sem jaça.” Dando continuidade à cerimônia, o Presidente da ABI, Maurício Azêdo, falou sobre o importante legado de Moacir Werneck de Castro: “Querida amiga Nenê Rodríguez, minhas senhoras e meus senhores, eu teria pouco a acrescentar às palavras de Cícero Sandroni, exceto no que concerne à dívida de carinho e admiração que nós, antigos companheiros de Moacir Werneck de Castro na Última Hora e em outros veículos de comunicação, temos com esse extraordinário jornalista que ele foi. Entre esses companheiros, Dácio Malta, Sílvio Paixão, Benício Medeiros, aqui presentes, que tiveram a honra de ser dirigidos por Moacir Werneck.” O começo, com prisão O início da carreira de Moacir na imprensa como foca do Jornal do Povo foi relatado por Maurício Azêdo: “O jornal foi fundado pelo Barão de Itararé, naqueles confrontos que se travavam nos anos 30 entre direita e esquerda e entre os que sonhavam com a democracia e os que propugnavam pelo nazismo ascendente na Alemanha de Hitler. Moacir foi cobrir uma assembléia do Sindicato dos Padeiros. A reunião foi dada como subversiva pelas


JORNALISTA E ESCRITOR QUE DOMINAVA DE FORMA EXTRAORDINÁRIA O IDIOMA PORTUGUÊS E BRINDAVA OS SEUS LEITORES COM ARTIGOS REALMENTE LUMINOSOS.”

dente da ABI ressaltou a importância do resgate da memória da imprensa brasileira a partir do exemplo de Moacir Werneck de Castro: “Vejo aqui também nosso companheiro José Alves Pinheiro Júnior, Chefe de Reportagem em diferentes momentos da Última Hora e que foi um dos colaboradores mais próximos de Moacir Werneck de Castro nesse exercício que ele fez de jornalismo brilhante na Última Hora. Nós queremos dizer, a ABI pela sua Diretoria e pelo Conselho ilustrado pelo comando do nosso companheiro Pery Cotta, que cumprimos com um dever que não é meramente protocolar, cumprimos uma obrigação ditada pelo nosso coração, pela admiração que tínhamos por Moacir Werneck de Castro, que foi, sem dúvida, um dos maiores jornalistas do País em todos os 200 anos de existência da imprensa entre nós. E para nós, seus contemporâneos, é um privilégio ter tido a oportunidade de conviver com um extraordinário jornalista como foi o nosso querido Moacir Werneck de Castro. É esta a saudação que a gente faz a Moacir Werneck, testemunhando o nosso carinho por Nenê Rodríguez, digna companheira desse admirável combatente da liberdade que foi Moacir Werneck de Castro.” Um internacionalista A jornalista Beatriz Bissio falou, em seguida, sobre a atuação de Moacir Werneck de Castro nas questões relacionadas aos grandes temas do Brasil e do mundo. Uruguaia radicada há décadas no Brasil, disse Beatriz Bissio: “É um momento de emoção me dirigir a companheiros, amigos ilustres, em particular, a Nenê, uma amiga com a qual eu tenho compartilhado momentos inesquecíveis dos praticamente 30 anos da minha presença aqui no Brasil. Nenê estava me lembrando que é importante neste momento trazer recordações do legado e da solidariedade irrestrita de Moacir com as grandes causas do mundo do século 20. Compromissos internacionais com o Uruguai, um país com o qual ele tinha além de toda essa bagagem que vinha da sua vida compartilhada com a Nenê, um acompanhamento dos maiores e dos mais difíceis momentos, como a luta pela democratização e pela liberdade de imprensa. Vários momentos importantes que ele com a sua palavra, com sua análise, com seus contatos, conseguia abrir portas, que quem sabe de outra forma não teriam sido abertas.”

“Outro compromisso do Moacir foi com a luta do povo cubano, com a coerência com que ele analisava a situação. Ele sempre viu com clareza que o regime cubano, no contexto em que ele sobrevivia, com as ameaças permanentes, merecia de todos os latino-americanos que lutam por um mundo melhor um maior respeito. E isso ele escreveu e disse todas as vezes que foi necessário. Moacir teve também um permanente compromisso com a causa da luta da Espanha pela democracia diante da ameaça do fascismo e também com a luta do povo palestino. Ele viajou ao Oriente Médio, enviado da nossa revista Cadernos do Terceiro Mundo. Em uma dessas viagens ele entrevistou Yasser Arafat, no Líbano, uma magnífica e importante entrevista. Esta é uma tarde do Moacir, importante para que possamos continuar a levantar essas bandeiras que são também nossas.” A lição esquecida Sobrinho de Moacir, o médico Antônio Joaquim Werneck de Castro relatou fatos que marcaram a sua convivência com o tio: “Tinha duas coisas que ele me contava. Uma é que tinha que ir a uma assembléia para aprender a escrever sobre uma assembléia de luta de trabalhadores. A segunda lição que ele dizia que tinha que tomar, mas não o fez, era fugir da Polícia. Ele tinha que fazer as duas coisas: escrever bem e fugir bem. Outra coisa que ele contava era que a Polícia, além de prender nas assembléias, ia depois na fonte, ia ao jornal, e quebrava tudo. Nessa assembléia dos padeiros surgiu a questão do Herbert Moses, ele queria a garantia da integridade da pessoa, não era só por causa do jornalista, era também por causa do escritório da empresa que tinha sido quebrado.” O cartunista Jaguar recordou, emocionado, os anos de amizade com Moacir Werneck de Castro e assinalou a sua valiosa contribuição à imprensa, com destaque para o jornal O Pasquim: “Uma coisa que eu não me perdôo é que, às vezes, eu passava ali pela Rua Rainha Guilhermina, no Leblon, e falava com a minha mulher que há muito tempo eu estava devendo uma visita ao Moacir, que gostaria muito de conversar com ele. Pra mim, certamente, é o melhor texto da imprensa brasileira. Quando eu era diretor do Pasquim, ele publicou várias coisas. Na época em que a gente estava na maior dureza e não tinha dinheiro para pagar, ele ia lá e entregava de graça as matérias, que eram sempre as melhores do número. Todas as homenagens serão poucas para uma pessoa como Moacir. Na verdade, eu não venho ao Centro da cidade há uns cinco anos. Continuo trabalhando, mas mando tudo pela internet. Não saio do Leblon ou de Itaipava. Mas hoje vim até aqui porque

me achei na obrigação de participar desta última homenagem a ele aqui na ABI, uma Casa em que ele sempre foi venerado e querido por todo mundo.” As lembranças de Pinheiro Companheiro de Redação de Moacir Werneck de Castro na Última Hora, Pinheiro Júnior está reunindo em livro as experiências vivenciadas ao lado do colega que ajudou a consolidar a história desse importante jornal brasileiro: “Trabalhei com Moacir cerca de 15 anos, mas eu teria muita coisa pra contar a respeito dele. Estou concluindo um livro sobre a velha Última Hora e o Moacir Werneck é senão o segundo ou terceiro personagem em importância do livro. Não tenho palavras para me referir ao meu grande companheiro. Fui o último diretor responsável da Última Hora depois do Samuel Wainer. Quem

Para Cícero Sandroni (abaixo), Moacir Werneck de Castro teve uma vida dedicada a pensar e interpretar o Brasil. Para Jaguar, era o melhor texto da imprensa brasileira. DIVULGAÇÃO

Jornalistas de exceção Maurício exaltou o homenageado como um dos últimos sobreviventes de uma excepcional geração de jornalistas: “Hélio Fernandes e Villas-Bôas Correa são exceção nesse deserto em que se transformou o meio jornalístico no que concerne à capacidade intelectual e ao brilho como o dos companheiros de Moacir Werneck, que integrou uma geração que para nós, que chegamos depois, é objeto de admiração até hoje. A geração que inclui Samuel Wainer, Octávio Malta, pai do nosso querido Dácio Malta, o próprio Carlos Lacerda, com todos os desvios, que acabou cometendo em relação a esse grupo, Joel Silveira, Edmar Morel e uma série de outros companheiros que deram ao jornalismo que se fazia no País uma densidade que hoje desapareceu.” “Nós tivemos a oportunidade de acompanhar Moacir Werneck na Última Hora, nos últimos meses da gestão de Samuel Wainer e posteriormente no período de privações que sucedeu ao golpe militar de 1º de abril de 1964, em que Samuel Wainer foi obrigado a se exilar. Samuel foi o primeiro brasileiro a buscar asilo numa embaixada, porque sabia que sua vida sofreria riscos pesados. E o jornal foi entregue à competência, à lucidez e à serenidade política de Moacir Werneck de Castro e Jorge de Miranda Jordão. Última Hora pôde atravessar esse período com coerência apesar das ameaças e dos arreganhos da ditadura militar, e Moacir, como sublinhou o nosso Cícero Sandroni, pôde oferecer ao público leitor da Última Hora algumas preciosidades de definição política, de análise política social e, sobretudo, de limpidez de estilo. Moacir Werneck era um jornalista e escritor que dominava de forma extraordinária o idioma português e brindava os seus leitores com artigos realmente luminosos.” No final de sua intervenção, o Presi-

“ MOACIR WERNECK ERA UM

FRANCISCO UCHA

chamadas autoridades constituídas. Prenderam os diretores do sindicato e membros da assembléia, e os repórteres, entre os quais Moacir que tinham a audácia de tentar projetar as conclusões de uma reunião de seres subversivos, como aqueles que participavam daquela assembléia. Foi então que Moacir Werneck teve o primeiro contato com a adversidade política, porque foi preso, e também com a Associação Brasileira de Imprensa, porque seu irmão, Luís Werneck de Castro, que era um jornalista já de grande conceito no meio profissional, entrou em contato com o então Presidente da ABI, Herbert Moses, que tomou as providências que resultaram na libertação de Moacir. Moses, além de conseguir a liberação do jovem repórter Moacir Werneck, dirigiu uma carta a Luís Werneck, comprometendo-se a adotar todas as outras iniciativas que fossem necessárias para a segurança e proteção da integridade física do jovem Moacir Werneck de Castro. Este foi o ponto de partida da trajetória de Moacir no meio profissional.”

deveria ter assumido a direção era o Moacir Werneck de Castro. Ele não assumiu por impedimento político, porque o Samuel achava que ele era marcado demais pelo Dops. Eles jamais permitiriam que o Moacir assumisse a direção responsável do jornal. Ai, eu fui escalado e tive o desprazer e a desonra de fechar a Última Hora. Obrigado por esta oportunidade, obrigado, Moacir Werneck. Colaborou Renan Castro, estagiário da Diretoria de Jornalismo da ABI.

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Aconteceu na ABI

O Semanário, de Osvaldo Costa, revive numa tese de mestrado Grande expressão do jornalismo de tendência nacionalista, seu papel nas lutas dos anos 1950 e 1960 é realçado em pesquisa na Uerj. POR CLÁUDIA S OUZA

so quadro de repórteres e colaboradores, entre os quais Barbosa Lima Sobrinho, Josué de Castro, Nélson Werneck Sodré e Edmar Morel, avô do jornalista e historiador Marco Morel, professor orientador de Leonardo Brito no mestrado.

no País. O jornalista Edmar Morel assinou uma série de reportagens ao longo do segundo semestre de 1962 a respeito da atuação ilegal do Instituto Brasileiro de Ação Democrática-Ibad na captação e gerenciamento de recursos de empresas estrangeiras sediadas no Brasil para o financiamento de candidatos da Guanabara e de outros Estados para a Câmara dos Deputados. As denúncias resultaram na instalação da CPI do Ibad. Em sua última edição, publicada em 19 de março de 1964, o jornal ainda repercutia em suas páginas o Comício da Central, que reuniu 150 mil pessoas, em 13 de março de 1964, na Central do Brasil, onde o Presidente João Goulart anunciou a implementação das reformas de base e defendeu transformações sociais, como a reforma agrária. O comício também foi tema do último texto de Barbosa Lima Sobrinho publicado em O Semanário, no qual ele afirmava que diante do que havia ocorrido na gigantesca concentração popular na Central do Brasil as esquerdas haviam adquirido um novo comandante: Jango. A Redação de O Semanário foi depredada e fechada por militares dias após o golpe militar de 1º de abril de 1964.

O jornal O Semanário, fundado em 1956 pelos jornalistas Osvaldo Costa e Joel Silveira, é o tema do livro A Imprensa Nacionalista no Brasil: O Periódico O Semanário (1956-64), de Leonardo Brito, mestre em HisUm jornal engajado tória Política pela UniversiCom tiragem inicial de dade do Estado do Rio de Ja60 mil exemplares e circuneiro-Uerj e professor efelação nacional, O Semanário Aguardo ainda a tivo do Departamento de atraía leitores de perfis discapa do livro que História do Colégio Pedro tintos, que, entretanto, se a Cláudia ficou de identificavam com o moviII. A obra foi lançada no dia me enviar 9 de dezembro no saguão mento nacionalista e popudo 9º andar do Edifício Herlar nos anos 1950 e 1960 e bert Moses, sede da ABI. apoiavam, entre outras Fruto da dissertação de questões, o monopólio estamestrado defendida por tal do petróleo, a Frente ParLeonardo Brito na Uerj em lamentar Nacionalista, o 2007, o livro resgata o contexto histórico plebiscito sobre o parlamentarismo, as do País e da imprensa brasileira a partir reformas de base propostas pelo Presida trajetória de oito anos de O Semanádente João Goulart. rio desde a data de sua fundação até o ano Suas críticas eram dirigidas ao lacerde 1964, quando a ditadura militar dedismo e à União Democrática Nacional terminou o fechamento da publicação, (UDN), definidos pelo jornal como “os assim como de outras vinculadas às esarquiinimigos a serem combatidos na querdas e aos movimentos sociais. Guanabara”, à conspiração golpista por Ao perfil panfletário, idealista e popuparte dos setores conservadores da socilar de O Semanário somou-se o talentoedade e à atuação do capital estrangeiro

Morel salva coleções Presente no lançamento do livro, o Presidente da ABI, Maurício Azêdo, salientou o papel de O Semanário na imprensa brasileira: “O trabalho do Professor Leonardo Brito constitui importante contribuição para o conhecimento e a lembrança de um dos mais destacados periódicos publicados no Brasil. O Semanário, fundado por um dos mestres do jornalismo brasileiro, Osvaldo Costa, exerceu um papel pedagógico muito importante para a conscientização de muitos segmentos da sociedade em relação ao interesse nacional. O Semanário foi-se engajando em temas de destaque como as Ligas Camponesas, criadas pelo Deputado Francisco Julião, e encerrou sua trajetória com o golpe militar de 1964, que não permitiu que sua última edição fosse impressa na Tribuna da Imprensa, como acontecia habitualmente. Além dessa violência, O Semanário sofreu outras que só não foram mais graves porque, de forma destemida, o combativo jornalista Edmar Morel foi à Redação para salvar arquivos e coleções do jornal, que só chegaram aos nossos dias graças a esta sua corajosa ação.”

“O Semanário tinha um público muito cativo e um potencial de mobilização política que me causou surpresa”

JORNAL DA ABI – COMO SURGIU A IDÉIA O SEMANÁRIO? Leonardo Brito – A proposta de escrever sobre este jornal surgiu há cerca de 6 anos, a partir do convívio com o jornalista e historiador Marco Morel. Fui aluno dele no curso de História da Uerj. Numa das muitas conversas que tínhamos, ele comentou que seu avô, o jornalista Edmar Morel, contribuía periodicamente para um jornal que desapareceu após o dia 31 de março de 1964 (dia do golpe que derrubou o ex-Presidente João Goulart). As memórias de infância do Marco remetiam a forma como o Edmar se preocupou em preservar em sua casa o acervo com todas as edições publicadas pelo jornal. Naqueles duros tempos de repressão a Redação do jornal foi arrombada e depre-

DIVULGAÇÃO

Em entrevista ao Jornal da ABI, Leonardo Brito falou sobre a relevância histórica de uma das mais longevas publicações nacionalistas do período.

DE ESCREVER SOBRE

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dada por militares e partidários da ditadura que se iniciava naqueles primeiros dias de abril de 1964. O Marco Morel sempre me sugeria que O Semanário era merecedor de uma pesquisa histórica. Um jornal que fez parte de uma imprensa nacionalista que não mereceu muita atenção por parte de nós, historiadores acadêmicos. É verdade que, falar em nacionalismo, nacional-desenvolvimentismo e reformas de base, nos anos 1950-60 está muito longe de ser novo. Mas houve um movimento nacionalista na sociedade brasileira, neste período, que apesar das aproximações, não era nem ligado ao PTB (antigo Partido Trabalhista Brasileiro), nem aos comunistas do PCB. Acho que daí vem a novidade da minha proposta. JORNAL DA ABI – COMO E EM QUANTO

Brito: Como ninguém ainda havia feito um trabalho de fôlego sobre O Semanário?

JORNAL DA ABI – QUE DIFICULDADES VOCÊ ENFRENTOU PARA PESQUISAR O MATERIAL?

Leonardo Brito – Poucas dificuldades, para dizer a verdade. O Edmar Morel teve até 1989, ano de sua morte, o denodo de zelar por todo o acervo em sua própria casa. Após sua morte, a família doou o acervo com todas as edições do jornal para a Biblioteca Nacional. A facilidade em se ter acesso ao acervo foi um dos pontos altos da pesquisa, e ao mesmo tempo intrigantes. Sempre que estava debruçado sobre o periódico, eu pensava: “Como ninguém ainda havia feito um trabalho de fôlego sobre esse jornal?”. Há também uma coleção completa, acredito eu, no Arquivo Edgar Leuenroth, na Unicamp. JORNAL DA ABI – QUEM VOCÊ ENTREVIS-

TEMPO FOI REALIZADA A PESQUISA?

TOU PARA DESENVOLVER O ESTUDO?

Leonardo Brito – A pesquisa foi desenvolvida em dois anos e meio, aproximadamente, entre os anos de 2005 e 2007.

Leonardo Brito – A metodologia aplicada à pesquisa não se constituiu em entrevistas ou relatos orais, mas na análise


dos editoriais publicados pelo jornal. Esbocei uma tentativa de entrevista com o jornalista Joel Silveira, que durante os primeiros anos de O Semanário foi um colaborador, mas ele morreu em 2007, antes que eu conseguisse qualquer contato. JORNAL DA ABI – QUE TIPO DE ORIENTAÇÃO VOCÊ RECEBEU PARA CONDUZIR A PESQUISA? Leonardo Brito – A difícil e atenta análise das fontes. O Marco Morel como orientador nesta pesquisa de mestrado sempre me sugeriu olhar atentamente as fontes, pois elas tinham muito a dizer. É óbvio que um trabalho desta natureza não é uma descrição de fontes. Um texto acadêmico precisa sempre dialogar com outros autores e com referências teóricas que o sustentam e que garantam o caráter científico da análise proposta. JORNAL DA ABI – QUAL É O GRANDE LEGADO DESTE JORNAL?

JORNAL DA ABI – QUAL A IMPORTÂNCIA DE O SEMANÁRIO PARA A HISTÓRIA DO PAÍS

JORNAL DA ABI – QUE JORNALISTAS FORAM IMPORTANTES PARA A HISTÓRIA DO

JORNAL DA ABI – QUAL O SIGNIFICADO ABI? Leonardo Brito – A idéia de lançar o livro na ABI foi minha, prontamente aceita pelo Marco Morel e pelo Presidente da entidade, Mauricio Azêdo, que desde o primeiro momento “abraçou” com muita satisfação a idéia. Faço um agrade-

DO LANÇAMENTO DE SEU LIVRO NA

cimento especial aos dois. Não conheço um lugar mais apropriado para o lançamento desta obra do que a ABI, pela sua relevância histórica na defesa da democracia, na História recente do País. Quero também prestar uma reverência especial a duas historiadoras que foram muito gentis ao prontamente aceitar o convite e a tarefa de apresentar o texto ao leitor nas capas desta primeira edição. Agradeço à Professora Alzira Alves de Abreu do CPDOC-FGV e à minha colega Professora Vera Bogéa Borges, do Departamento de História do Colégio Pedro II.

JORNAL?

Leonardo Brito – Osvaldo Costa, seu fundador. Um jornalista várias vezes citado por historiadores da imprensa, mas ainda pouco estudado; Edmar Morel, autor de matérias memoráveis no jornal sobre o financiamento ilegal de campanhas de parlamentares federais, nas eleições de 1962. Uma série de reportagens sobre a ingerência da Embaixada dos EUA no país e do Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática – órgão ligado a setores do empresariado brasileiro) culminou em uma CPI no Congresso Nacional que revelou uma rede ilegal de financiamento de campanhas políticas; o saudoso Barbosa Lima Sobrinho que, nos últimos dois anos do jornal, contribuiu com muita freqüência para O Semanário. Há outros que cito ao longo do livro. Destaco também a contribuição de Plínio de Abreu Ramos, um colaborador do jornal que, nos anos 1990, ao lado de Alzira Alves de Abreu, escreveu as primeiras impressões sobre O Semanário.

E PARA A IMPRENSA BRASILEIRA?

Leonardo Brito – Esta pergunta eu me fiz desde a época em que a idéia surgiu. Lembro-me que, de início, acreditava que O Semanário fosse uma publicação de circulação restrita ao Rio de Janeiro. A pesquisa me mostrou exatamente o contrário. O jornal possuía uma rede de distribuidores em várias capitais brasileiras e chegou, só no Rio, a ter uma tiragem de cerca de 60 mil exemplares. O Semanário foi uma espécie de outsider da imprensa brasileira nos 1950-60. Enquanto os ditos grandes jornais apontavam para um tipo de jornalismo muito influenciado pelo jornalismo americano, “objetivista”, O Semanário comportava-se como um “partido político”, ou seja, um jornal que evidenciava as suas posições políticas, ideológicas e eleitorais não apenas nos editoriais, mas em todas as matérias publicadas em suas páginas. Se me permite uma comparação, tomados os devidos cuidados e especificidades, O Semanário foi naquela época algo parecido com o que a Carta Capital, do Mino Carta é hoje. É óbvio que a Carta usufrui de uma estrutura muito maior do que O Semanário sonhou ter. A aproximação entre essas duas publicações, a meu ver, reside no fato de trazer ao leitor uma reflexão crítica com uma linha político-editorial definida. Acho que os estudantes de Comunicação e jovens jornalistas de hoje ainda conhecem muito pouco da História da imprensa brasileira da segunda metade do

mil exemplares. No início, a Redação funcionou em alguns endereços diferentes, mas o endereço consagrado nas páginas foi o da Avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio.

JORNAL DA ABI – QUE EVENTOS NOTICIOSOS FORAM MAIS EXPLORADOS PELA PUBLICAÇÃO.

QUAIS DESTES RESULTARAM EM

MAIOR REPERCUSSÃO?

Leonardo Brito – Embora o jornal também tratasse de assuntos relativos à agenda cultural, eventos no eixo Rio-SP, sem dúvida as matérias de maior repercussão eram da editoria de política. Os debates em torno dos projetos propostos, as disputas políticas partidárias e as crises políticas que ocorreram entre 1956 e 1964 foram as grandes manchetes da história do jornal. A tentativa de golpe contra a posse de Juscelino Kubitschek, em 1956. A renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República, em agosto de 1961 e o conseqüente veto dos militares ao Jango,vice-presidente, e as articulações de setores civis e militares que, entre 1961 e 1964, eram denunciadas quase semanalmente pelo jornal. JORNAL DA ABI – QUAL ERA O PERFIL DO LEITOR DE O SEMANÁRIO?

Leonardo Brito – Diversificado, mas um leitor de classe média das grandes cidades. Estudantes universitários, professores, jornalistas e intelectuais em geral que se alinhavam ao nacionalestatismo nos anos 1950 e às reformas de base do governo Jango. JORNAL DA ABI – QUAL ERA A TIRAGEM DO JORNAL E ONDE SE LOCALIZAVA A REDAÇÃO?

Cuba, contada por Jakobskind Em livro-reportagem sob o título Cuba, Apesar do Bloqueio, ele descreve fatos e cenas que não figuram na grande mídia. ALCYR CAVALCANTI

Leonardo Brito – O de ter sido um importante canal de interlocução entre segmentos da sociedade civil organizada e políticos de posições nacionalistas em grandes temas do debate público no País. É impressionante como esse debate era acalorado e mobilizador de setores médios urbanos esclarecidos. O Semanário tinha um público muito cativo e um potencial de mobilização política que me causou surpresa, no decorrer da pesquisa.

século XX. Os manuais de mídia e imprensa e uma boa parte dos cursos de Comunicação possuem uma preocupação maior em instrumentalizar o futuro jornalista para as tarefas do ofício e do dia-a-dia da Redação, e isto é até compreensível. A reflexão sobre o papel da mídia tem, a meu ver, nesses cursos um papel muito tangencial. As propostas de media criticism crescem, mas ainda são muito tímidas no Brasil.

POR R ENAN C ASTRO O jornalista Mário Augusto Jakobskind, correspondente do jornal uruguaio Brecha, lançou a segunda edição do livroreportagem Cuba, Apesar do Bloqueio (Booklink) no dia 14 de dezembro, no Salão Heitor Vila Lobos no 11º andar do Edifício Herbert Moses. Na obra, ele descreve fatos e cenas pouco divulgados sobre a realidade sociopolítica cubana ao longo das duas últimas décadas. A primeira parte do livro abrange o período entre 1959 e 1984; na segunda ele apresenta os acontecimentos a partir de 1984 até os dias de hoje. Jakobskind, que é membro do Conselho Deliberativo da ABI, diz que o objetivo da obra é revelar uma faceta do país pouco explorada pela grande mídia. “A cobertura jornalística de Cuba deixa a desejar, porque é baseada em não informação, quase sempre contrária ao regime cubano, e cheia de preconceito. Busquei fugir da mesmice e navegar contra o senso comum para mostrar outra realidade do país. As histórias foram vivenciadas em uma época em que chegar a Cuba era quase uma aventura”, diz Jakobskind. Um dos presentes no lançamento, o jornalista Maurício Azêdo, Presidente da ABI, falou sobre a importância do trabalho de Jakobskind. “Nosso companheiro Mário Augusto tem o costume de dizer que o livro dele inclui assuntos que não figuram no noticiário comum impresso e eletrônico. Ele tem razão, porque mostra aspectos políticos e sociais de Cuba com uma linguagem que foge

Jakobskind: A cobertura jornalística de Cuba é baseada em não informação.

do senso comum e que a gente não encontra nos noticiários impressos e televisivos corriqueiros. Por isso, o livro é uma grande contribuição ao conhecimento da realidade latinoamericana. Os povos se querem mais quando se conhecem mais”, afirmou Maurício. Disse Jakobskind que o grande mérito de seu livro é apresentar a informação com isenção e imparcialidade: “Melhor do que adjetivar é substantivar sem partidarismos, mostrar os fatos sobre um país que fez sua História. Para que o leitor possa julgar, ele precisa ter a informação”. A primeira edição de Cuba, Apesar do Bloqueio foi lançada em 1984, com o título Apesar do bloqueio, um repórter carioca em Cuba. Para lembrar o cinqüentenário da Revolução Cubana, Jakobskind lançou no Uruguai, em 2009, uma variante da obra: Apesar do Bloqueio, 50 Anos de Revolução.

Leonardo Brito – Algo em torno de 60 Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

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Aconteceu na ABI

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Agindo no deserto em que se transformam o Centro da Cidade e especialmente a região em que está localizada a sede da ABI, ladrões investiram duas vezes no começo de janeiro contra o Edifício Herbert Moses, do qual roubaram caracteres de bronze com os nomes de jornalistas que participaram do esforço para a construção da Casa, entre 1936 e 1938. A ABI registrou queixas na 12ª Delegacia de Polícia, que apenas anotou os seus relatos, sem realizar qualquer investigação. Na madrugada do dia 1º os ladrões levaram dez conjuntos de letras do painel com os nomes de 94 jornalistas homenageados pela ABI por sua contribuição à construção do Edifício Herbert Moses, alinhados sob a legenda “Esta Casa, ideal de duas gerações de jornalistas, erigiu-se pela força do enthusiasmo e tenacidade de Herbert Moses, assistida do espontâneo e decisivo apoio do Presidente Getúlio Vargas, da solidariedade dos consócios destacados os conselheiros” (seguem-se os nomes deles), situado na curva da parede lateral do hall térreo do prédio, que foi tombado em setembro de 1984 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional–Iphan. O furto foi registrado pela ABI na 5ª Delegacia Policial, com pedido de investigação que alcance os ferros-velhos instalados na Cidade, possíveis compradores da forte massa de metal constituída pelas letras, num total de 150 caracteres. As letras subtraídas pelos ladrões foram as dos nomes de Antenor Novaes, Arnon de Mello, pai do ex-Presidente e Senador Fernando Collor, Álvaro Trindade Cruz, Apparício Torelly, o Barão de Itararé, e Assis Memória, últimas mencionadas na primeira fila de homenageados. Foram levados também os caracteres de bronze dos nomes de Fernando Castro Rebello, Heliomar Carneiro da Cunha, Reis Vidal, Rodolpho de Carvalho e Vitorino de Oliveira, que fechavam a segunda relação de nomes. No segundo assalto, dez dias depois, os ladrões furtaram 210 letras de bronze com os nomes de outros associados da ABI que participaram do esforço de construção do prédio. O furto foi cometido por volta das 4 horas da madrugada. Situados em duas colunas sob uma inscrição que registra sua colaboração para a execução da obra, os caracteres foram arrancados presumivelmente com um pé-de-cabra, que não conseguiu retirar da parede alguns dos caracteres de um ou outro nome. Da primeira coluna foram levadas 126 letras, com os nomes de Edmir Pederneiras, Elmano Cardim, Francisco Galvão, Francisco Pessoa de Queiroz, Francisco Souto, Franklin Palmeira, Gabriel Bernardes, Gastão de Carvalho, Heitor Beltrão, Heitor Moniz, Hélio Silva e Ary Franco. Foram subtraídos da segunda coluna 84 caracteres com os nomes de Raphael Pinheiro, Raul Borja Reis, Rodolpho Motta Lima, Romeu Ribeiro, Satyro Rocha, Vivaldo Coaracy, Vladimir

Os letreiros da fachada do hall térreo da sede da ABI prestam homenagem aos jornalistas que participaram, entre 1936 e 1938, do esforço para a construção do prédio, sob a liderança de Herbert Moses.

Ladrões roubam letreiros da ABI Arrancados da fachada do hall térreo 360 caracteres de bronze dos nomes de jornalistas que participaram do esforço para a construção do Edificio Herbert Moses, entre 1936 e 1938. Bernardes e Edgar Costa. Do primeiro nome dessa coluna, Póvoas de Siqueira, os ladrões só conseguiram arrancar a letra O. Turnowski nada fez Após o primeiro furto, a ABI oficiou ao então Chefe da Polícia Civil, Allan Turnowski, pedindo empenho especial na apuração do crime. Turnowski nem respondeu à solicitação, feita nos seguintes termos:

“Senhor Chefe de Polícia, A Associação Brasileira de Imprensa dirige-se a Vossa Senhoria para solicitar seu interesse pessoal pela condução da investigação destinada a apurar o furto de que foi vítima na madrugada do dia 1º deste mês de janeiro, quando ladrões levaram do hall térreo de sua sede, situada na Rua Araújo Porto Alegre, 71, Centro, 150 caracteres de bronze com os nomes de dez jornalistas homenageados por sua participação no esforço de construção do

Edifício Herbert Moses, inaugurado em setembro de 1938 e tombado em 1984 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional–Iphan. A ocorrência foi comunicada pela ABI à 5ª Delegacia de Polícia, que fez o respectivo Registro no procedimento de nº 005-00113/2011-01, ao qual foram juntadas, a seu pedido, fotografias com as marcas dos caracteres furtados e a lista dos nomes que estes compunham. É natural a suposição de que os ladrões negociaram a massa de metal subtraída com ferros-velhos da Cidade ou do Estado do Rio de Janeiro, pois só estes teriam benefício econômico com o produto furtado. Daí nosso apelo a Vossa Senhoria para que a investigação alcance desde logo os ferros-velhos citados, antes que os caracteres sejam reduzidos a uma pasta metálica. Ficaremos gratos se Vossa Senhoria nos mantiver a par do andamento da investigação que solicitamos. Peço-lhe que aceite as expressões do nosso elevado apreço. Atenciosamente, (a) Maurício Azêdo, Presidente.”

Nossa memória ofendida Além dos nomes alcançados pelos roubos consumados no começo de janeiro, o painel do hall térreo tem duas fileiras de caracteres distribuídos em duas colunas, no alto, e outras duas logo abaixo. Os nomes da primeira fileira são os de Affonso de Magalhães, Alfredo João Louzada, Alfredo Neves, Álvaro Brandão, Álvaro Freire, Álvaro Moreyra, Ângelo Neves, Annibal Martins Alonso, Antônio Souza e Silva, Antônio Cícero, Armando Gonzaga, Arthur Guaraná, Aureliano Machado, Austregésilo de Athayde, Barbosa Lima Sobrinho, Bastos Tigre, Belfort de Oliveira, Belisário de Souza, Berilo Neves, Carivaldo Lima, Carlos Manhães, Carlos Maul, Carvalho Neto, Claudino Victor, Costa

Rego, Custódio de Almeida, Danton Jobim, Dario de Almeida Magalhães, Dario de Mendonça, Dunshee de Abranches, Edmir Pederneiras, Elmano Cardim, Francisco Galvão, Francisco Pessoa de Queiroz, Francisco Souto, Franklin Palmeira, Gabriel Bernardes, Gastão de Carvalho, Heitor Beltrão, Heitor Moniz, Helio Silva e Ary Franco. Abaixo desses nomes estão os de Horácio Cartier, Hugo Barreto, Jarbas de Carvalho, J. A. Pereira Rego, João Mello, Jocelyn Santos, Jorge Maia, José Guilherme, José Mattoso Maia Forte, Júlio Barbosa, Leão Padilha, Lincoln Nery, Lourival Fontes, Manuel Gonçalves, M. Lourenço de Magalhães, Mário Domingues, Mário

Nunes, Mário Tarquínio e Souza, Martins Capistrano, Mazzini Seroa da Motta, Mozart Lago, Nestor Guimarães, Octávio Tavares, Orlando Dantas, Oscar Costa, Oscar Fagundes, Oscar Sayão, Osmundo Pimentel, Oswaldo de Souza e Silva, Paschoal Ferrone, Paulo Filho, Pedro Timótheo, Póvoas de Siqueira, Raphael Pinheiro, Raul Borja Reis, Raul Pederneiras, Rodolpho Motta Lima, Romeu Ribeiro, Sátyro Rocha, Vivaldo Coaracy, Wladimir Bernardes e Edgar Costa. Na elaboração da lista ficou visível a preocupação de Moses de dar tratamento igual a estes seus companheiros: a lista principal e seus dois acréscimos registram os nomes em ordem alfabética.


HISTÓRIA

s 18 horas do dia 7 de julho de 1955 o auditório da ABI foi cenário de um acontecimento histórico da cinematografia no Brasil: a realização da primeira sessão do Setor de Cinema do Museu de Arte Moderna, com a abertura do ciclo 10 Anos de Filmes de Arte. Com uma sessão mensal durante todo aquele ano, estavam lançadas as bases para a criação da Cinemateca do Mam, que surgiria dois anos depois. O homem por trás da obra era Ruy Pereira da Silva, um jovem jornalista que, com sua personalidade aguerrida, se tornou destacado produtor cultural, atuante na promoção do cinema no Brasil e na divulgação da nossa arte no exterior. Foi a ABI, pela sensibilidade do então Presidente Herbert Moses, que primeiro abrigou os rompantes do moço irrequieto e talentoso.

À

O INVENTOR DA CINEMATECA Recluso numa bela mansão no Lago Sul de Brasília, onde se radicou em 1973, o jornalista Ruy Pereira da Silva guarda ali documentos, objetos e outras lembranças de seu longo idílio com o cinema, que teve seu ponto alto em 1955 no auditório da ABI. Com o apoio de Herbert Moses, Presidente da Casa, ele lançou então o embrião de uma instituição cultural de que se orgulha até hoje: a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. ENTREVISTA A TARCÍSIO HOLANDA

No início dos anos 50, o projeto de carreira de Ruy Pereira era a diplomacia. Apesar de não ter se tornado embaixador, como sonhava, seus dotes diplomáticos eram evidentes e estiveram a serviço da arte, tanto no contato desembaraçado com importantes profissionais e celebridades do cinema mundial, quanto com personalidades políticas de destaque do Brasil e do exterior. Muitos o auxiliaram em seus projetos. Um dos primeiros foi, em Paris, Henri Langlois, conservador da famosa Cinémathèque Française. Ruy já trabalhara como jornalista em veículos como os jornais O Globo, Diário de Notícias e Diário Carioca e a revista Rio, quando decidiu passar uns tempos na França, onde estudou o idioma da terra e “descobriu o mundo”, como diz nesta entrevista ao Jornal da ABI. De fato ele aprofundou os conhecimentos artísticos; foi arrebatado pelo impressionismo de Van Gogh, o que o levou à casa do último descendente do pintor, no interior da Holanda. O episódio mostra um pouco da personalidade obstinada de Ruy Pereira, que profere em certos momentos da entrevista frases como “Tem que ter garra, meu caro” e “Querer fazer é arregaçar as mangas e fazer”. O que mais o marcou na França, no entanto, foi o contato com a história do cinema mundial na Cinémathèque Française, instituição que lhe chamou a atenção pela grandiosidade e importância. É nesse momento da trajetória de Ruy que o empreendedor cultural começa a ser talhado a partir de uma idéia nada simples: organizar no Rio de Janeiro uma cinemateca nos moldes da francesa. Ao manifestar sua intenção a Henri Langlois, o problema é que o coroa pediu pra eu ligar pra ele daqui a alguns minutos Ruy foi instruído a procurar o crítico cinematográfico Paulo Emílio Sales Gomes quando retornasse ao Brasil. “O Paulo Emílio, o grande pioneiro do cinema, me deu a idéia de como começar a fazer um setor de cinema, não propriamente uma cinemateca, mas um setor de cinema”, recorda Ruy Pereira da Silva. “Também procurei o Raimundo Castro Maia, que me encaminhou à sede do Museu de Arte Moderna.” Lá, Ruy Pereira foi informado de que era a sétima pessoa que havia procurado o Museu com idéia semelhante. Ele recebeu carta-branca da Diretoria do Mam e, em seguida, procurou Herbert Moses, então Presidente da ABI, que se prontificou a ceder o auditório da instituição para as sessões do Setor de Cinema do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Enquanto as sessões mensais ocorriam ininterruptamente durante aquele ano de 1955, algo inédito no Rio até antão, Paulo Emílio seguia orientando Ruy Pereira. O passo seguinte era ter o projeto da Cinemateca do Mam aprovado pela Federação Internacional de Arquivos de Filmes. Mais uma vez entrou em cena Henri Langlois, que em 1956 convidou Ruy para a Assembléia da Federação Internacional de Arquivos de Filmes, ocorrida na cidade de Antibes, no Sul da França. Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

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FOTOS: ACERVO PESSOAL

O ator francês Daniel Gelin (à esquerda) com a bela modelo Danusa Leão e Ruy Pereira, no Festival Internacional do Filme realizado no Rio em 1952.

Sob as vistas do ator José Lewgoy, Ruy cumprimenta a atriz Yvette Mimeux no Festival Internacional do Filme do Rio de 1969. Na cena, von Sternberg e Roman Polanski.

Nas andanças pelo mundo, Renoir, De Sica, Fellini, Garbo Os encontros de Ruy Pereira em sua peregrinação a serviço do amor pelo cinema.

Um registro histórico que a Casa não possuía: o diretor norte-americano Frank Capra na ABI, ao lado de Moses e Ruy Pereira. De pé, o jovem crítico Carlos Fonseca.

“Consegui apoio do Herbert Moses, da Divisão Cultural do Itamarati, onde tinha boas relações, e da Diretoria do Mam para apresentar o projeto. Fui ao Correio da Manhã conhecer o Moniz Viana, que era considerado um dos maiores críticos de cinema do Brasil. Ele era muito difícil de lidar, mas começou me dando todo apoio. O resultado é que a Cinemateca do Mam foi aprovada como membro provisório. A partir do boletim de fevereiro de 1957, o Setor de Cinema recebeu o nome de Cinemateca do Museu de Arte Moderna.” As sessões passaram a ser quinzenais e Ruy Pereira sentiu a necessidade de organizar um grande festival de cinema no Rio de Janeiro, nos moldes do que fora promovido por Paulo Emílio Sales Gomes em São Paulo, em 1954 – considerado o primeiro festival internacional de cinema da América do Sul. Com os bons contatos que tinha nos principais estúdios cinematográficos do mundo, Ruy pôde realizar sua empreitada: entre 25 de junho e 30 de agosto de 1958, o festival A História do Cinema Americano esteve em cartaz com o apoio da Divisão Cultural do Itamarati e das respectivas Embaixadas do Brasil e de Washington. “Só para se ter uma idéia, esse foi o festival mais longo da História do cinema. Foram dois meses, com uma mostra competitiva fantástica e uma pré-estréia mundial. Foi um grande sucesso, tanto que fiquei muito conhecido. Até realizaram um almoço em minha homenagem.” Ruy Pereira recorda que o histórico Festival também contou com seminários em sua programação. No auditório do Ministério de Educação e Cultura, foram

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conferencistas Paulo Emílio Sales Gomes e o cineasta italiano Roberto Rossellini, que por sorte chegou ao Rio enquanto as atividades do Festival ocorriam. “Fui buscá-lo no aeroporto. É dele um dos autógrafos do catálogo, ao lado do de John Ford, que não dava autógrafo a ninguém. Trouxe também o então Diretor da Filmoteca de Nova York e a mulher que deu o nome ao Oscar, Margareth Widmark, que se tornou uma grande amiga. Quando ela viu a estatueta pronta, disse: ‘Nossa! É o meu tio Oscar ’.” O prestígio alcançado por Ruy Pereira acabou por provocar desavenças com Moniz Viana, que o havia acompanhado a Hollywood, após a Assembléia da Federação Internacional de Arquivos de Filmes, para os contatos necessários para a realização do Festival. O episódio acabou por provocar o afastamento de Ruy Pereira da Cinemateca do Mam, em outubro de 1958. Ele ficou contrariado pelo fato de Moniz Viana ter publicado em sua coluna uma alteração na direção da Cinemateca sem o consultar, motivado, talvez, por ciúmes. “Vaidoso do jeito que era, o Moniz tomou essa atitude influenciado por um crítico que era meu desafeto, pois eu o impedia de se meter nos assuntos da Cinemateca. O fato foi o estopim para eu e meu grupo nos desligarmos da Cinemateca. Eu comuniquei a todo mundo que estava saindo, sem dizer a verdade, apenas que estava indo tratar de outros assuntos. A Cinemateca estava fundada e meus substitutos continuariam sem manchar-lhe o nome. O Moniz Viana fez então o Festival do Cinema Francês e, dois anos depois, o Festival do Cinema Italiano.”

Terminada a Assembléia da Federação Internacional de Arquivos de Filmes, Ruy Pereira e Moniz Viana foram convidados para o Congresso dos Historiadores de Cinema, em Paris. Era a oportunidade de estabelecerem contato com mais profissionais que pudessem contribuir para a realização do festival A História do Cinema Americano. Em Paris, conheceram personalidades de destaque, como o diretor Jean Renoir, autor de famosos clássicos do cinema, , como A Grande Ilusão, A Besta Humana, A Regra do Jogo, A Carruagem de Ouro. “De lá fomos para a Itália, onde comecei a ter problemas com o Moniz Viana. Uma vez eu lhe disse que teríamos uma visita em tal lugar e ele se negava a ir, pois dizia que não fora convidado. Mas eu soube levá-lo na conversa e ele acabou indo a tudo, só faltou a alguns encontros. Em Roma, por exemplo, fui à Cinecittà, e ele não. Quando estive com Vittorio De Sica, ele também não foi.” Quando Ruy Pereira esteve no apartamento do cineasta Federico Fellini, porém, Moniz Viana o acompanhou. “Chegamos lá, Moniz, a esposa dele e eu, e nada de o Fellini aparecer. O Moniz se impacientou e disse que iria embora. No que retruquei: ‘Então você vai que eu ficarei aqui. Nem que eu durma, vou esperar’. Bom, a esposa do Muniz também resolveu ficar e ele acabou esperando. Quase duas horas depois, Fellini apareceu bocejando, pedindo desculpas. Ele realmente estava com sono, mas nos tratou muito bem. Quando ele soube que estávamos sem carro, fez questão de nos levar ao hotel, ele mesmo dirigindo.” De Roma partiram para Londres e, em seguida, para Nova York, onde foram recebidos pelo cineasta Elia Kazan. Por todas as cidades que passavam, percorriam os principais estúdios cinematográficos e estabeleciam contato com os principais diretores, atores e atrizes. Eram os preparativos para o festival da Cinemateca que homenagearia o cinema americano, em 1958, no Rio de Janeiro. Como não poderia deixa de ser, estiveram em Hollywood. Quando chegaram, Ruy Pereira telefonou para a atriz Janet Gaynor, que conhecera no Rio de Janeiro. Entusiasmada com a lembrança do amigo, ela convidou todos para um coquetel que ofereceria a alguns convidados no dia seguinte.

Ruy Pereira com o mestre do suspense Alfred Hitchcock, num intervalo das filmagens de Vertigo.

“Na celebração, Moniz Viana e eu conhecemos a atriz Norma Shearer, intérprete de Romeu e Julieta e que foi a minha primeira paixão, e o grande produtor David O. Selznik, de ...E o Vento Levou. Enfim, foi um desses momentos inolvidáveis e de grande importância, pois consegui apoio de todos eles para fazer o festival da Cinemateca.” Dentre todos os grandes do cinema mundial que Ruy Pereira conheceu a mítica atriz Greta Garbo foi o ponto excepcional de sua perambulação por estúdios e hotéis. “Estava em Paris, na época em que era estudante, quando encontrei uma senhora da alta sociedade do Rio de Janeiro. Ela me chamou e, como sabia que eu gostava de cinema, me disse que estava hospedada no mesmo hotel da Greta Garbo. Foi o bastante para eu estar lá no dia seguinte. Depois de duas horas no saguão do hotel, Greta Garbo saiu do elevador com um grande chapéu, acompanhada por uma amiga. Pedi um autógrafo, mas ela disse que não poderia dar.”


Descobridor do interesse por cinema do Presidente JK (à esquerda), Ruy conseguiu em 1960 um autógrafo de John Ford (ao centro). Em 1957, conversou com o ator Gary Cooper.

Juscelino, o cinéfilo desconhecido

Mostrando a arte do Brasil nos States

O Presidente viu no Palácio obras do Festival A História do Cinema Americano e pediu a projeção especial de um clássico: Cidadão Kane, de Orson Welles.

A serviço do Itamarati, Ruy leva a instituições norte-americanas criações de Djanira, Bruno Giorgio, Portinari, Pancetti.

Além de Ruy Pereira, outro que passava por problemas na Cinemateca era Paulo Emílio Sales Gomes, um dos responsáveis diretos por sua criação. Alegando intromissão indevida da Diretoria do Mam, Paulo Emílio retirou-se da filmoteca que dirigia no Museu e fundou a Cinemateca Brasileira, em São Paulo, instituição que nasceu independente, desvinculada de qualquer outra. Um dos que lamentaram o afastamento de Ruy Pereira da Cinemateca foi o então Presidente da República Juscelino Kubitschek. Os dois se conheceram por intermédio de Dona Sara Kubitschek, que certa tarde procurou insistentemente por Ruy na Cinemateca, impressionada com a magnitude do Festival A História do Cinema Americano. “Um dia eu cheguei à Cinemateca e me disseram que o secretário de Dona Sara havia me ligado várias vezes. Pensaram que fosse trote. Quando ele tornou a telefonar e eu atendi, o secretário identificou-se e disse que Dona Sara estava muito interessada no Festival e desejava que eu fosse ao Palácio Guanabara, para uma recepção. Mandaram um carro me buscar e fui muito bem recebido. Exibi alguns filmes da programação do Festival para o Juscelino, o que se tornou costume. Foi quando nos tornamos amigos.” Conta Ruy que o Presidente lhe pediu que projetasse Cidadão Kane, de Orson Welles. “Descobri então que Juscelino possuía uma cultura fantástica. Depois que se formou em Medicina, ele foi a Paris e depois ao Sul da França, com os recursos que a mãe lhe havia fornecido. Em seguida, tomou um navio que passou pela Sicília e pelo Norte do Egito, pois ele queria conhecer o início da civilização. Quando Dona Sara me convidou para a recepção, eu disse que não poderia jantar sem antes dizer ao Presidente que não havia votado nele. Na época eu era meio politicozinho de esquerda. Ele disse que se todos que o cercavam tivessem a mesma sinceridade, ele seria o homem mais feliz do mundo. Passei a admirá-lo.” Ruy já tinha vontade de produzir documentários quando conheceu JK, que, pelo incentivo que lhe deu, se tornou a mola pro-

pulsora de mais uma guinada em sua vida profissional. Numa viagem que fizeram a Brasília, em janeiro de 1959, JK propôs a Ruy que produzisse um documentário sobre a fundação da cidade. O hoje raro curta-metragem Brasília – Capital do Século entrou em cartaz em abril de 1959, um ano antes da inauguração da nova capital, cuja cerimônia originou outro filme: Brasília – Alvorada de Esperança, financiado pelo Banco do Brasil em transação recomendada pelo Presidente. Juscelino não apenas o incentivou na produção de filmes como o introduziu em algumas rodas sociais. Em 1961, quando estava hospedado no mesmo hotel que a família Kubitschek, em Nova York, para onde viajou a fim de converter seus filmes de 36 mm para 16 mm, exigência feita pelo Itamarati para editar cópias em vários idiomas, Ruy soube por Dona Sara que haveria um jantar em homenagem a JK em Los Angeles, oferecido por Eleonora Matos, ex-Miss Brasil. “Fui convidado e lembro que estava meia Hollywood nessa festa. Foi uma noite memorável. No dia seguinte, Juscelino e eu fomos aos estúdios da MGM, onde estava sendo rodado o filme O Grande Motim, com Marlon Brando.”

A viagem a Nova York era o ponto inicial de uma volta ao mundo que Juscelino pretendia fazer. Ruy Pereira, como amigo da família, aproveitou a carona, pois precisava dos serviços dos laboratórios cinematográficos da cidade. Lá, além de ter convertido o formato de seus filmes para vendê-los ao Itamarati e ter tido a oportunidade de ir à homenagem a JK, em Los Angeles, Ruy Pereira estreitou relações com o Embaixador João Paulo do Rio Branco, então Diretor do Escritório Comercial do Brasil em Nova York. Certo dia Ruy resolveu ir ao Consulado do Brasil para visitar a Consulesa Dora Vasconcelos e o Embaixador, bisneto do Barão do Rio Branco. Naquela tarde, recebeu a incumbência de levar ao Itamarati alguns pacotes de envelopes com projetos de pavilhões, nos quais seriam montadas diversas exposições internacionais. “Quando cheguei ao Rio de Janeiro, em 1962, percebi que o Itamarati não tinha como organizar aquilo. Falei ao Conselheiro, que coçou a cabeça quando viu do que se tratava: ‘Olha, tem um negócio aqui sobre arte moderna, você querendo eu posso ajudar’. Resumindo: listei os principais escultores e pintores e consegui, em poucas semanas, montar uma baita exposição de arte contemporânea com artistas como Portinari, Bruno Giorgio, Djanira e Pancetti, em galerias particulares.”

Recebido em Nova York em dezembro de 1957 pelo diretor Elia Kazan (à esquerda), no mesmo mês Ruy conheceu Sinatra e Tony Curtis no estúdio da Paramount em Hollywood.

Com o êxito, o Itamarati contratou uma firma para embalar as obras e remetê-las para os Estados Unidos. Em fevereiro de 1962, elas foram expostas na Universidade de Utah, em Salt Lake City, em coletiva intitulada Pop Art of Brazil. De lá a mostra seguiu para o pavilhão do Brasil na Feira Mundial de Seattle, no Noroeste dos Estados Unidos, inaugurada em 21 de abril daquele ano. “Estava acertado que o Presidente Kennedy iria visitar nossa ala, a mais visitada. Porém, ele não pôde ir, pois deveria fazer um importante discurso em Washington. Foi quando ele denunciou a existência de mísseis soviéticos em Cuba. Quem esteve lá foi o irmão dele, Robert Kennedy, que era Ministro da Justiça na época.” Em outubro, João Paulo do Rio Branco comunicou a Ruy a realização de nova exposição: desta vez na Universidade de Tulane, em Nova Orleans, no Sul dos Estados Unidos. Ao chegar, Ruy recebeu da direção da Universidade o convite para participar de uma mesa-redonda em um programa de televisão. “Percebi que havia um americano meio indócil. De repente, ele se levantou e disse que não estava interessado em falar sobre o Brasil porque tinha coisas mais importantes para fazer. Lembro de ter engrossado com ele. Dois dias depois, o Cônsul brasileiro me disse: ‘Temos que visitar o prefeito da cidade, que quer lhe conhecer’. Sabe quem era o prefeito? Era ele. No fim das contas, queria me agradecer por lhe ter dado uma lição de educação e gentileza. Contou-me ter passado a noite inteira lendo sobre o Brasil e a América Latina. Para demonstrar sua gratidão, sentenciou: ‘Reuni meu secretariado hoje e, por unanimidade, decidimos conceder-lhe o título de Cidadão Honorário de Nova Orleans. Aqui está a chave da cidade”. No ano seguinte, João Paulo do Rio Branco contratou Ruy Pereira como curador de exposições do Escritório Comercial do Itamarati em Nova York. Sua primeira incumbência foi preparar o pavilhão do Brasil na prestigiada Feira Internacional de Chicago, outro êxito em sua passagem como funcionário do Itamarati. Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

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O diretor alemão Fritz Lang com Ruy no I Festival do Filme do Rio, em março de 1965.

O criador da Riotur e recriador do Festival de Cinema de Brasília Como diretor de organismos públicos no antigo Estado da Guanabara e em Brasília, Ruy Pereira comandou inovações importantes, como o restabelecimento do Festival de Cinema de Brasília, que a Censura proibira durante três anos. Na volta ao Rio de Janeiro, em 1964, depois de desligar-se do Escritório Comercial do Itamarati em Nova York, Ruy Pereira decidiu produzir um filme em homenagem à cidade. O golpe militar já havia ocorrido, fato que não o afetou tanto. Apesar de ser da “resistenciazinha”, como diz, estava satisfeito porque Negrão de Lima, seu amigo, pôde assumir o Governo do Estado da Guanabara após se eleger no ano seguinte. “Ele e o Israel Pinheiro, eleito Governador de Minas Gerais, estavam boicotados. Só tomou posse porque o Castelo Branco, de cujo casamento com Dona Argentina Negrão de Lima foi padrinho, quis empossá-lo. Como ele sempre fora muito meu amigo, financiou o filme Rio – Maravilha do Mundo, que apresentei no festival de cinema que ocorreu na cidade naquele ano.” O média-metragem recebeu prêmio da Comissão de Auxílio à Indústria Cinematográfica-Caic, na época dirigida por Moniz Viana. Foi a oportunidade para reata-

A Grande Dama Margot Fonteyn foi a grande convidada, com o Royal Ballet de Londres, do espetáculo de inauguração do Ginásio de Brasília, em maio de 1973.

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Pereira passou a integrar a equipe do Governo Chagas Freitas. A criação da Riotur foi uma de suas primeiras iniciativas. A instituição, que englobava turismo, cultura e esporte, foi lançada em junho de 1972, no Congresso da Embratur (Empresa Brasileira de Turismo). “Com a criação da Riotur, o Chagas Freitas disse que eu passaria a presidi-la. Eu não estava com vontade de passar de Secretário a Presidente de empresa. E já estava um pouco cansado do temperamento dele, que era pessoa de difícil trato. Não gostava de receber as pessoas. Nem o Jimmy Carter ele quis receber.” Meses depois, Ruy Pereira ouviu de Chagas Freitas, que ele define como “um homem bem intencionado, mas muito fechado”, a seguinte missão: ‘O Governador do Distrito Federal, Hélio Prates da Silveira, está vindo ao Rio. Dê um jeito de recebê-lo. Diga que estou doente, que não posso’. Ruy Pereira programou um jantar no extinto restaurante Esquilos, na Floresta da Tijuca.

O conselho de Cordeiro de Farias “Quando estava em Brasília, no Congresso da Embratur, fui chamado ao antigo Palácio Buriti pelo Governador Hélio Prates da Silveira, que me convidou para assumir a direção da Fundação Cultural do Distrito Federal, cargo que aceitei. Transferi-me para Brasília em janeiro de 1973 e aqui estou até hoje.” Ainda no Rio de Janeiro, quando assumiu o Departamento de Certames da Secretaria de Turismo do Estado, Ruy Pereira teve que prestar depoimento ao antigo Serviço Nacional de InformaçõesSNI. Na ocasião, recebeu o seguinte conselho do Marechal Cordeiro de Farias: ‘Nunca brigue com militares. Fique ao lado deles para conseguir o que quiser’. Pelo menos em duas ocasiões as palavras do Marechal lhe serviram. A primeira delas na intervenção de Ruy Pereira para a libertação do cineasta Joaquim Pedro de Andrade, diretor do filme Macunaíma, então detido no Dops.

rem a amizade depois de sete anos de rompimento. “Quando estava no Palácio Guanabara, então residência oficial de Carlos Lacerda, para receber a honraria, o Moniz Viana pegou no meu braço e disse: ‘Que beleza o seu filme. Parabéns’. Voltamos a ser amigos. Quando acabou o Correio da Manhã, o Mam entrou em decadência e a mulher dele morreu, eu mantive um relacionamento amigo com ele, que passou a ficar solitário em seu apartamento.” “Aqui está a chave de seu Mercedes” Com o sucesso do filme, Ruy Pereira conquistou ainda mais prestígio na administração estadual. Em 1968, o Deputado Estadual Levi Neves convidou-o para assumir a Direção do Departamento de Certames da Secretaria de Turismo do Estado da Guanabara. Sua tarefa imediata foi a organização do Carnaval de 1969, o primeiro dos quatro que comandou enquanto ocupou cargos na Secretaria. “Fiquei horrorizado com o ambiente de corrupção que encontrei no Carnaval carioca. Certa vez, o Presidente do Salgueiro me procurou e disse: ‘Aqui está a chave do seu Mercedes Benz. Basta você colocar estes jurados aqui’.” A retomada da amizade com Moniz Viana logo veio acompanhada de um convite de trabalho. O crítico do Correio da Manhã era o segundo mais importante na hierarquia da direção do Instituto Nacional de Cinema e orquestrava a criação da Embrafilme, junto com Durval Garcia, Diretor do Instituto. O novo órgão teria como função principal a promoção do cinema brasileiro no exterior. Ruy Pereira aceitou a proposta e, com a permissão de Negrão de Lima, acumulou os cargos na Secretaria de Turismo e na direção da Embrafilme. Chagas e seu difícil trato Mobilizado para reeleger o Deputado Levi Neves nas eleições estaduais de 1970, Ruy Pereira estreitou relações com Chagas Freitas, candidato a Governador no mesmo ano. Passado algum tempo, Chagas o chamou em seu Gabinete para convidá-lo a assumir a Secretaria de Turismo, caso fosse eleito. A hipótese se confirmou e Ruy

Um privilégio de Ruy: viajar de Montevidéu ao Rio ao lado da estrela Ava Gardner.

Com Ava Gardner, sobre as nuvens POR MAURÍCIO AZÊDO A intensa atividade de Ruy Pereira da Silva como jornalista, cinéfilo e homem público proporcionou-lhe momentos prazerosos, graças à possibilidade de acesso a personalidades do cinema, como diretores, atores e atrizes, produtores, roteiristas, e autoridades das cidades e países onde se realizavam eventos. Nenhum desses momentos, porém, foi tão agradável quanto aquele em que pôde desfrutar do convívio, limitado e respeitoso, é claro, com a estrelíssima Ava Gardner (1922-1990), com quem viajou lado a lado, poltrona junto a poltrona, num vôo entre Montevidéu, capital uruguaia, e o Rio de Janeiro, após um festival de cinema. No esplendor de sua beleza – era celebrada como a mais bela dentre as mais lindas atrizes de Holywood – e no apogeu da

carreira, Ava vivia naquele ano de 1954 o sucesso internacional de A Condessa Descalça, de Joseph L. Mankiewicz, em que dividia a tela com Humphrey Bogart, o italiano Rossano Brazzi e Edmond O’Brien, que ganhou o Oscar por seu desempenho como um repórter descabeladamente cínico. Ela estava simplesmente deslumbrante. Ruy extasiava-se ao contemplá-la e ouvi-la. Ruy não era um tiete, como se diz agora, e sim um admirador dos bons filmes e de seus grandes intérpretes; conhecia a obra e a trajetória de diretores e atores; sabia da importância de cada um no campo da criação cinematográfica. Foi seu denso repertório de informações que o fez receber com as galas devidas o diretor norte-americano Frank Capra, italiano de


Fascinado pelo cinema europeu, Ruy quis conhecer os diretores René Clair, que o recebeu em sua casa, em Paris (à esquerda), e Julien Duvivier (à direita). Em 1997, em Salvador, coube-lhe entregar um troféu a Jorge Amado e Zélia Gattai.

origem, que veio ao Brasil para o festival A História do Cinema Americano, um dos mais destacados eventos organizados por Ruy. Capra (1897-1991) era festejado pelo fino humor de seus filmes e pela forma carinhosa com que mostrava as pessoas comuns das pequenas cidades americanas em filmes como Aconteceu Naquela Noite, de 1934; O Galante Mr. Deeds, de 1936; Do Mundo Nada se Leva, de 1938; Este Mundo é um Hospício, de 1944; A Felicidade Não se Compra, de 1947. A documentação de Ruy permitiu agora, somente agora, o acesso a uma informação de que não há registro na Casa: nessa visita ao Brasil, em 1959, Frank Capra esteve na ABI, onde conversou animadamente com o então Presidente Herbert Moses (1884-1972), que falava inglês com grande fluência, e o crítico cinematográfico Carlos Fonseca, outro jovem cinéfilo. Nas suas viagens ao exterior, Ruy visitava estúdios e, em um ou outro caso, até o escritório particular dos diretores que curtia. Ele esteve com Alfred Hitchcock (1899-1980) no estúdio da Paramount, em dezembro de 1957, quando o mestre do suspense filmava Vertigo. Também estavam no estúdio da Paramount dois jovens atores, que filmavam Só Ficou a Saudade, título original da produção: Frank Sinatra (1915-1998) e Tony Curtis (1925-2010) que posaram com Ruy. Nesse mesmo dezembro de 1957 Ruy abalava-se a ir a Nova York, onde o diretor Elia Kazan (1909-2003) o recebeu em seu escritório. Kazan já havia produzido o melhor de sua obra, como Uma Rua Chamada Pecado, em 1951; Sindicato de Ladrões, em 1954; Vidas Amargas, em 1955, motes para a conversa com que distinguiu o jovem visitante. Nesse dezembro intenso, Ruy esteve também no estúdio da Fox, onde conheceu Gary Cooper (1901-1961), a quem admirava desde Sargento York, de 1941, o citado O Galante Mr. Deeds, de Capra, de 1936, Matar ou Morrer, de Fred Zinnemann (1907-1997), de 1952. Cooper, que

morreria precocemente, com apenas 60 anos, filmava então A Casa das Amarguras. Foi também em outro estúdio, o da Columbia, em outubro de 1960, num intervalo da filmagem de Terra Bruta, outro título sem tradução conhecida, que Ruy conheceu pessoalmente um dos maiores monstros-sagrados do cinema norte-americano e mundial: John Ford (1895-1973), que não lhe regateou um autógrafo. O périplo cinematográfico de Ruy Pereira da Silva não se esgotava nas andanças pelos estúdios de Hollywood, em Los Angeles, ou por escritórios como o de Elia Kazan, em Nova York. Ele sabia da importância do cinema europeu, principalmente o feito na França e na Itália. Em novembro de 1957, antes daquele fecundo dezembro nos Estados Unidos, ele esteve em Paris na casa do diretor René Clair (18981981), cultuado pelos clássicos que fez: História de um Chapéu de Palha, de 1928; Sob os Tetos de Paris, de 1930; O Silêncio é de Ouro, de 1947; As Grandes Manobras, de 1955. Iguais homenagens prestou, também em Paris, a Jean Renoir, o mestre de A Grande Ilusão, de 1937; A Besta Humana, de 1938; A Regra do Jogo, de 1939, A Carruagem de Ouro, de 1953, bem como a Julien Duvivier (18961967), autor de O Pequeno Mundo de Dom Camilo, de 1952, ainda que este não tivesse a expressão de Renoir e Rene Clair. O fascínio pelo cinema italiano levou-o a procurar os mestres Vittorio De Sica (19011974) e Federico Fellini (1920-1993), em programação a que se opôs o crítico Antônio Moniz Viana, seu companheiro nessa viagem, como Ruy contou na entrevista a Tarcísio Holanda. Foi de um diretor europeu, o austríaco Fritz Lang (1890-1976), que Ruy Pereira da Silva recebeu uma das maiores distinções de sua carreira como diretor de documentários cinematográficos. O autor de M., O Vampiro de Dusseldorf, de Marlene Dietrich redigiu do próprio punho uma mensagem

de elogios ao média-metragem Rio Maravilha do Mundo, de Ruy e Carlos Fonseca, premiado no I Festival Internacional do Filme do Rio de Janeiro, em março de 1965. Outro europeu que acolheu com carinho o jovem crítico Ruy Pereira da Silva foi o italiano Alberto Lattuada (1914-2005), que o recebeu na sede da Unitalia, em Roma, em novembro de 1957. Eram igualmente europeus dois diretores que Ruy e o ator José Lewgoy (1920-2003) festejaram no II Festival Internacional do Filme do Rio, em março de 1969: o austríaco Josef Sternberg (1894-1969), diretor de O Anjo Azul, de 1930, e responsável pela criação do mito de Marlene Dietrich como mulher fatal, e o polonês Roman Polanski (1933- ), que começara a se destacar com obras como Repulsa ao Sexo, de 1965, A Dança dos Vampiros, de 1967, e O Bebê de Rosemary, de 1968. Junto deles, a atriz californiana de nome francês Yvette Mimieux (1942- ). Nos festivais e em outros eventos que promoveu, Ruy Pereira da Silva pôde privar do convívio, efêmero, é certo, de personalidades das artes, da cultura e da vida política nacional e internacional, como a Primeira-Ministra da Índia Indira Gandhi (1917-1984), na recepção que ela ofereceu no Palácio Hyderabad, em dezembro de 1969, às delegações estrangeiras que participavam do Festival de Cinema de Nova Délhi. Contou também com as atenções da Grande Dama Margot Fonteyn (19191991), do Royal Ballet de Londres, antes e depois do espetáculo de inauguração do Ginásio de Brasília, em 1º de maio de 1973, e mereceu o carinho do escritor Jorge Amado (1912-2001) e de sua esposa, a também escritora Zélia Gattai (1916-2008), quando Ruy entregou ao autor de Terras do Sem Fim e de Gabriela, Cravo e Canela o troféu comemorativo do encerramento, em 29 de setembro de 1997, da Etapa de Salvador do Festcine 100. Longevo – fez 88 anos em janeiro passado, dos quais 64 como sócio efetivo da ABI –, Ruy Pereira da Silva revê essas cenas e esses encontros sem saudade, sem lamentar o tempo que passou e que ele viveu intensamente. Mas é com amargura e certa tristeza que verifica que todos esses personagens já estão em outra dimensão.

“Eu era Diretor do Festival de Cinema de 1969, junto com o Moniz Viana. Quando cheguei ao Hotel Copacabana Palace, a delegação francesa estava em pé de guerra porque o Joaquim Pedro tinha sido preso. Com apoio do Secretário de Justiça e do Chefe do Gabinete Militar do Governador Negrão de Lima, fui à Rua da Relação, onde era o Dops. Argumentei que a delegação francesa ameaçava ir embora, o que ocasionaria a desistência das demais, prejudicando, assim, a imagem do Brasil no exterior. Por fim, conseguimos libertá-lo e o Festival ocorreu sem problemas.” A segunda ocasião em que o conselho do Marechal Cordeiro de Farias o auxiliou refletiu-se no bom trânsito que passou a ter no Serviço de Censura do Ministério da Justiça, graças a um acaso. Num dos coquetéis que freqüentava, Ruy Pereira foi abordado por uma senhora que, ao saber que ele era Diretor da Fundação Cultural, queria recomendar-lhe o trabalho de um amigo pintor. Enquanto conversavam, Ruy soube que ela era esposa do então Ministro da Justiça Alfredo Buzaid. “Eu disse a ela que gostaria muito de conhecer o Ministro e recebi dela o número do telefone direto do Gabinete dele. Marquei uma visita e lhe disse que o Brasil passava por um problema absurdo que ele poderia resolver: a censura. Ele me mandou ao Serviço de Censura, onde passei a ter boas relações.” A volta do festival com aval de Golbery Relações essas que lhe permitiram reativar o Festival de Cinema de Brasília, criado por Paulo Emílio Sales Gomes em 1965 e interrompido pela Censura. Quando houve a mudança do Governo de Hélio Prates da Silveira para o de Elmo Serejo Farias, Ruy Pereira foi avisado de que deveria aguardar instruções da nova administração acerca da sua permanência ou não no cargo de Diretor da Fundação Cultural do Distrito Federal. Alguns dias depois da posse, Elmo Serejo lhe comunicou que sua permanência lhe agradava. “Informei-lhe que aceitava com a condição de que ele, grande amigo que era do General Golbery do Couto e Silva, eminência-parda do Governo Geisel, reativasse o Festival de Brasília. Em 1975, ele me chamou e disse que tinha uma boa notícia para me dar. Até hoje lembro: ‘Pode convocar a imprensa e anunciar a volta do Festival’. Depois de três anos retomamos as atividades, que permaneceram ininterruptas.”

Montagem dos textos: Bernardo Costa Fotos e reproduções: Chiaro Trindade Tratamento de fotos: André Gil e Francisco Ucha Decupagem da gravação: Celeste Cintra

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DIVULGAÇÃO

POLÊMICA

O

ano de 2010 foi impactante para a mídia. Fez tremer de medo os governos. Expôs, de forma clara como nunca, as estreitas relações entre grandes órgãos de imprensa e o poder. Laços costurados por interesses comuns, muitas das vezes escusos. O público teve acesso a informações antes camufladas – veja só – talvez exatamente pelo fato de serem de evidente interesse público. O autor dessas façanhas foi o jornalista australiano Julian Assange, o principal editor e porta-voz do WikiLeaks – organização que publica em seu site documentos, fotos, vídeos e dados confidenciais, vazados de Governos ou empresas. O resultado dessa operação? Saias-justas, batalhas judiciais e desconforto em escala mundial. E um bem-vindo debate sobre o papel da imprensa. E suas práticas contraditórias. Fundado em 2006, o WikiLeaks publicou, sobretudo ao longo do ano passado, inúmeros documentos confidenciais do Governo dos Estados Unidos, com forte repercussão internacional. Estão na lista desde vídeos de ataques norte-americanos no Iraque, que fizeram vítimas civis, entre os quais dois jornalistas da Reuters, e cópia do polêmico manual de instruções para tratamento de prisioneiros na prisão militar norte-americana de Guantánamo, em Cuba. Em outros documentos, surgem relatos de acordos entre órgãos de comunicação e governos, nas mais diferentes esferas, ora com o intuito de camuflar informações, ora para influir no campo político, como no caso do financiamento norte-americano para a mídia oposicionista da Venezuela. O Brasil, é claro, não ficou à margem deste processo. Há, sim, documentos sobre o País. E mais do que isso. Em janeiro de 2011 o próprio Assange estreitou seus laços com o Brasil, concedendo uma entrevista a internautas brasileiros. A espécie de coletiva à distância foi organizada pela jovem jornalista investigativa independente Natália Viana, que tem coordenado com a imprensa nacional a publicação dos documentos divulgados pelo WikiLeaks referentes ao Brasil – tais como os telegramas secretos das embaixadas. Além disso, ela produz reportagens independentes para o site da organização. “Como estou trabalhando com o WikiLeaks na divulgação dos documentos relativos ao Brasil, a conversa com o Julian tem fluído normalmente. Nós sempre discutimos projetos, batemos papo. Quando falei dessa idéia, ele gostou muito. Acho que o Julian sente, tendo sido a vida toda um ativista da liberdade da internet, que a comunicação não deve ficar só restrita aos veículos oficiais. A internet abre uma série de possibilidades, e o WikiLeaks trabalha nessa trincheira. A idéia de dar uma entrevista para o público brasileiro, de acordo com as perguntas mais recorrentes, bateu bem com a proposta do WikiLeaks, que cada vez mais quer falar diretamente com as pessoas, com o mínimo de intermediação”, explica Natália Viana. Dentre 350, 12 filtradas

A pauta enviada a Julian Assange foi, assim, elaborada de forma peculiar. Internautas enviaram 350 perguntas para 20 Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

O WIKILEAKS SEM SEGREDOS

(Uma entrevista sobre a entrevista) P OR P AULO CHICO

O Jornal da ABI conversa com Natália Viana, jornalista colaboradora do WikiLeaks no Brasil. Ela publicou em seu blog, no dia 26 de janeiro, entrevista com Julian Assange, porta-voz desse site, que tem divulgado documentos secretos que tiram o sono de governos e da mídia. No processo de (des)construção da polêmica entrevista é possível conhecer um pouco mais de Julian e entender melhor o barulho provocado pelo WikiLeaks e suas revelações. o blog de Natália, que fez a seleção das 12 a serem respondidas, seguindo critérios como temas mais relevantes e questões mais freqüentes. “Eu sou a jornalista colaboradora do WikiLeaks no Brasil. Isso significa que fui convidada para escrever matérias em português e inglês, com base nos documentos, além de desenvolver uma estratégia de divulgação, pensar nos melhores veículos, procurar as pessoas mais indicadas e confiáveis para essa empreitada. Também cuido de retirar nomes de pessoas que possam sofrer algum perigo à sua segurança. Senti que precisava de um blog no Brasil para unificar toda essa ação. Foi o que propus à CartaCapital, e eles toparam.” Repercussão e diversidade de temas

A entrevista de Assange foi publicada no blog de Natália, hospedado no site da revista CartaCapital, no dia 26 de janeiro. “Julian Assange dar uma entrevista para internautas brasileiros é notícia. Seria notícia mesmo se a entrevista não fosse interessante, rica e divertida – afinal, muitas entrevistas dele a dezenas de veículos de imprensa do mundo têm sido reproduzidas pelos sites noticiosos brasileiros. Mas a entrevista em questão foi interessante, revelou coisas sobre o entrevistado que ajudam a compor na cabeça das pessoas a imagem de quem é o fundador do WikiLeaks, afinal. E fala sobre o Brasil. Desde o lançamento dos documentos diplomáticos dos Estados

Unidos ele tinha dado uma entrevista – uma apenas – a um grande jornal brasileiro. Nada mais”, afirmou Natália, que segue em seu relato. “A entrevista de Assange foi publicada, simultaneamente, às 10h da manhã, por 23 blogs que toparam fazer parte da iniciativa, uma espécie de ‘blogaço’. A repercussão foi bastante boa, no Twitter, no Facebook e em diversos blogs. Já os sites de notícias online passaram boa parte do dia ignorando o assunto. Havia, é claro, certa desconfiança com relação à entrevista – até mesmo dos internautas. Afinal, que critérios seriam usados? Quem garantia que não se tratava de um golpe de marketing do WikiLeaks? E quem é essa tal Natália Viana para decidir que perguntas seriam feitas e que a entrevista seria mesmo real? Recebi diversos comentários apontando para isso.” E nem só para isso. Apesar de a entrevista realizada trazer diversos temas contundentes, como manipulação de informações e dúvidas sobre as fontes que abastecem o WikiLeaks, Natália Viana foi vítima, no próprio blog, de crítica postadas nos comentários dos internautas. Houve quem considerasse a entrevisa ‘fraca’, isto é, ‘morna’, quase ‘fria’ diante do calor do assunto. Para outros, foi repetitiva. A maioria dos comentários, no entanto, felicitou a jornalista pela iniciativa – e também pelo resultado final alcançado. “Eu reajo muito bem a essas críticas. Acho bom que haja discussão, porque a

coisa fica ainda mais democrática. Mas é claro que quando você é um jornalista fazendo seu trabalho há critérios que leva em conta, algo que você só aprende com a experiência. Eu sabia que ao decidir por tais e tais perguntas estava sujeitando minha reputação ao escrutínio público e que poderia ser criticada. No final, acho que a repercussão foi melhor do que eu esperava. Sou libriana, o que faz toda escolha ser particularmente dolorosa. Escolhi um mix entre perguntas mais repetidas, temas de maior interesse e perguntas às quais eu sabia que o Julian daria uma resposta interessante – como sobre ser de esquerda e sobre a eleição do criador do Facebook pela revista Time”, explica Natália, que, críticas à parte, é a vencedora do Troféu Mulher Imprensa deste ano, na categoria “Repórter de Site de Notícias”, em votação popular. A relação com todas as 350 perguntas feitas pelos internautas também foi publicada pelo blog, e é tão interessante quanto a entrevista propriamente dita. A diversidade de temas apresentados mostra o quanto o WikiLeaks aguçou a curiosidade das pessoas. Quer ver só? Informações que poderiam ter alterado o rumo das eleições presidenciais de 2010, denúncias de corrupção, terrorismo, queixas de consumidores sobre grandes empresas, teorias conspiratórias, descobertas secretas na Medicina, dados sigilosos sobre ovnis e extraterrestres, derrubada da exigência do diploma de Jornalismo, ataque à Onu no Iraque, acidente envolvendo o Legacy e o avião da


Gol em 2006, atentado do 11 de Setembro nos EUA, posição do Governo brasileiro em relação a Cesare Battisti, fraudes em eventos esportivos, e até mesmo especulações sobre o resultado final do BBB 11 foram temas explorados nas perguntas. Novos modelos de comunicação e jornalismo

Natália considera que o WikiLeaks tem cumprido um papel importantíssimo, que é trazer de volta a relevância da fundamentação de documentos – e isso vale em especial para o Brasil. Além disso, amplia a possibilidade de qualquer pessoa denunciar coisas erradas, de maneira anônima e, por isso, segura. A fundação não nasceu com documentos das embaixadas, mas tem um histórico de centenas de documentos importantíssimos que já lhe foram repassados e publicados no site. É um trabalho inovador, e por isso mesmo controvertido. Estaria, então, o WikiLeaks desempenhando, melhor do que a imprensa, o papel de investigação e denúncia? “Acho o WikiLeaks excepcional. Mas é um exagero dizer que a grande imprensa não está fazendo investigação. Há muita gente boa, tanto na grande imprensa, quanto na esfera independente, fazendo um bom trabalho. Na verdade, o jornalismo investigativo está passando por uma grande crise por causa da crise dos jornais, que sempre foram os primeiros a fazer um trabalho mais aprofundado. Há menos recursos e se coloca menos dinheiro. Nós estamos falando de um modelo tradicional, que está em xeque. Mas estão surgindo novos modelos, como os centros de jornalismo investigativo, com jornalistas independentes que bancam seu próprio trabalho”, diz. Natália, que fez mestrado em Radiojornalismo no Goldsmiths College, na University of London, considera que o jornalismo investigativo não está em desuso, e sim se reinventando. “Eu mesma, junto com um grupo de jornalistas aqui de São Paulo, estou fundando um núcleo de reportagens independentes, a Pública (apublica.org). Nossa idéia é estabelecer um centro de reportagens aprofundadas, de fôlego, que a grande imprensa e a imprensa alternativa não têm pernas para fazer. Tudo em nome do bom jornalismo, que prima pelo interesse público. O futuro da comunicação passa pelos novos modelos de jornalismo, e de financiamento, inclusive. É por isso que eu faço sempre questão de me colocar como jornalista ‘independente’. Estamos em uma era incrível, em que a tecnologia possibilita você ter uma Redação internacional, conectada ao mesmo tempo, de diferentes lugares do mundo. É incrível. As possibilidades são infinitas, e a Pública aposta nisso”, anuncia. Os documentos e informações do WikiLeaks divulgados por aqui têm encontrado espaço sobretudo na Folha de S. Paulo e em O Globo. Aliás, a parceria da fundação com estes dois grandes jornais brasileiros, tidos como conservadores, foi questionada numa das perguntas enviadas a Julian Assange. Na prática, como os jornais têm se saído na divulgação desses documentos?

“Tenho discutido muito isso com alguns jornalistas dos jornais parceiros. A impressão que eu tive, e que eles também tiveram, é que pela ‘temperatura’ do material e pela necessidade de publicálo o mais rápido possível, a cobertura acabou pecando um pouco no lado investigativo. Os documentos estão longe de ser irrelevantes. Eles ilustram passagens importantes – como é o caso da reunião em que autoridades argentinas demonstram preocupação sobre o programa nuclear brasileiro – e dão dicas muito interessantes, que devem ser seguidas. Por exemplo: se há ações de preocupação com terrorismo no Brasil, isso é algo que os jornalistas têm que ir atrás. Espero que a partir de agora eles tenham a oportunidade de fazer um trabalho mais elaborado com o material que, afinal, é aberto a todos.” Afinal, quem tem medo do WikiLeaks?

Se não há muito o que fazer, na esfera legal, contra a divulgação de documentos pelo WikiLeaks, uma opção dos Governos tem sido acuar o próprio Julian Assange. Em agosto de 2010, um mês depois da divulgação de documentos secretos do Exército norte-americano sobre a guerra do Afeganistão, a Justiça da Suécia expediu dois mandados de prisão contra Assange, por crimes sexuais. A acusação é a de que, durante uma sessão de sexo consensual, seu preservativo se rompeu, tendo sido retirado – o que na Suécia é equivalente a estupro, com pena de até dois anos de prisão. Após breve período de detenção, Assange cumpre liberdade condicional em Londres, à espera de possível extradição. De fato, quem se sente mais acuado e ameaçado pelo WikiLeaks? Os governos ou a imprensa? Por que algumas pessoas vêem em Assange a figura de um terrorista high tech? “A imprensa, sem dúvida, é quem se sente mais ameaçada. Mas isso vem do modelo que ela segue, que é um modelo em crise. O WikiLeaks mostrou um caminho novo e tem tido uma excelente avaliação do público. Eu acho muito engraçadas as tentativas de desmoralizar o Julian por parte da imprensa – por exemplo, veja o livro que o The Guardian publicou e que de nada vai adiantar. O Julian é um cara excepcional com uma excelente idéia, só isso. Quem vai ser contra?”, questiona Natália, autora do livro-reportagem Plantados no Chão , lançado pela Conrad Editora. Apesar de parceira, ela, no entanto, não se arrisca a prever o futuro do WikiLeaks: “Se eu pudesse, hoje, fazer uma pergunta ao Julian, a partir de minha própria curiosidade, e não da seleção de perguntas dos internautas, perguntaria justamente isso: qual vai ser o futuro do WikiLeaks? Como a organização pensa em se remodelar depois do Cablegate? Mas, como eu converso bastante com ele, sei que ele jamais responderia a essa pergunta, porque é um estrategista nato. O próprio Julian jamais abriria essa resposta. Então, não sou eu que vou te responder...”, diverte-se.

Os principais pontos da entrevista Diversos veículos de comunicação brasileiros publicaram, desde o dia 26 de janeiro, a entrevista concedida por Julian Assange, fundador do site WikiLeaks, a blogueiros brasileiros, a partir da seleção de perguntas feita pela jornalista Natália Viana, colaboradora do WikiLeaks, que desde dezembro hospeda seu blog no site da revista CartaCapital. Blog do Nassif, Viomundo, Nota de Rodapé, Maria Frô, Trezentos, Fazendo Média, FAlha de S.Paulo, O Escrevinhador, Blog do Guaciara, Observatório do Direito à Comunicação e Blog da Dilma foram alguns dos canais de internet que também publicaram as respostas do jornalista australiano às 12 perguntas selecionadas. O Jornal da ABI reproduz os principais pontos da entrevista:

CRÍTICAS À PARCERIA COM A FOLHADE S.PAULO E O GLOBO “Trabalhamos com grupos de jornalistas ou de pesquisadores de direitos humanos que têm uma audiência significativa. Muitas vezes isso inclui veículos de mídia estabelecidos; mas também trabalhamos com alguns jornalistas individuais, veículos alternativos e organizações de ativistas, conforme a situação demanda e os recursos permitem. Uma das funções primordiais da imprensa é obrigar os Governos a prestar contas sobre o que fazem. No caso do Brasil, que tem um Governo de esquerda, nós sentimos que era preciso um jornal de centro-direita para um melhor escrutínio dos governantes. Em outros países, usamos a equação inversa. O ideal seria podermos trabalhar com um veículo governista e um de oposição.”

MANIPULAÇÃO DA INFORMAÇÃO “A manipulação das informações pela mídia é a mais perigosa, porque quando um Governo as manipula em detrimento do público e a mídia é forte, essa manipulação não se segura por muito tempo. Quando a própria mídia se afasta do seu papel crítico, não somente os Governos deixam de prestar contas, como os interesses ou afiliações perniciosas da mídia e de seus donos permitem abusos por parte dos Governos. O exemplo mais claro disso foi a guerra do Iraque em 2003, alavancada pela grande mídia dos Estados Unidos.”

POR QUE CONFIAR NO WIKILEAKS? “O WikiLeaks tem uma história de quatro anos publicando documentos. Nesse período, até onde sabemos, nunca atestamos ser verdadeiro um documento falso. Além disso, nenhuma organização jamais nos acusou disso. Temos um histórico ilibado na distinção entre documentos verdadeiros e falsos, mas nós somos, é claro, apenas humanos e podemos um dia cometer um erro”.

O PODE MUDAR PRÁTICAS GOVERNAMENTAIS E EMPRESARIAIS? “Os Estados e as megacorporações mantêm seu poder sobre o pensamento individual ao negar informação aos indivíduos. É esse vácuo de conhecimento que delineia quem são os mais poderosos dentro de um Governo e quem são os mais poderosos dentro de uma corporação. Assim, o livre fluxo de conhecimento de grupos poderosos para grupos ou indivíduos menos poderosos é também um fluxo de poder, e portanto uma força equalizadora e democratizante na sociedade.”

IMPACTOS E RESPONSABILIDADE “O WikiLeaks é uma das organizações globais mais responsáveis que existem. Prestamos muito mais contas ao público do que Governos

nacionais, porque todo fruto do nosso trabalho é público. Somos uma organização essencialmente pública; não fazemos nada que não contribua para levar informação às pessoas. O WikiLeaks é financiado pelo público, semana a semana, e assim eles ‘votam’ com as suas carteiras. Além disso, as fontes entregam documentos porque acreditam que nós vamos protegê-las e também vamos conseguir o maior impacto possível.”

ASILO NO BRASIL “Eu ficaria, é claro, lisonjeado se o Brasil oferecesse ao meu pessoal e a mim asilo político. Nós temos grande apoio do público brasileiro. Com base nisso e na característica independente do Brasil em relação a outros países, decidimos expandir nossa presença no País.”

AMEAÇAS “Nós estamos determinados a continuar a despeito das muitas ameaças que sofremos. Acreditamos profundamente na nossa missão e não nos intimidamos nem vamos nos intimidar pelas forças que estão contra nós. Minha maior proteção é a ineficácia das ações contra mim. Por exemplo, quando eu estava recentemente na prisão por cerca de dez dias, as publicações de documentos continuaram.”

CABLEGATE “Se eu tiver que escolher um só telegrama, entre os poucos que eu li até agora – tendo em mente que são 250 mil – seria aquele que pede aos diplomatas americanos obter senhas, dnas, números de cartões de crédito e números dos vôos de funcionários de diversas organizações – entre elas a Onu.”

ELEIÇÃO NA TIME “A revista Time pode, claro, dar o título de ‘Homem do Ano’ a quem ela quiser. Mas para mim foi mais importante o fato de que o público votou em mim numa proporção 20 vezes maior do que no candidato escolhido pelo editor da revista. Eu ganhei o voto das pessoas, e não o voto das empresas de mídia multinacionais. Isso me parece correto. Também gostei do que disse o Saturday Night Live (programa humorístico da tv americana) sobre a situação: “Eu te dou informações privadas sobre corporações de graça e sou um vilão. Mark Zuckerberg, o eleito, dá as suas informações privadas para corporações por dinheiro – e ele é o ‘Homem do Ano’.”

HOMEM DE ESQUERDA? “Enquanto houver desequilíbrio de poder entre as pessoas e os governantes, nós estaremos do lado das pessoas. Isso é geralmente associado com a retórica da esquerda, o que dá margem à visão de que somos uma organização exclusivamente de esquerda. Não é correto. Somos uma organização exclusivamente pela verdade e justiça – e isso se encontra em muitos lugares e tendências.”

HOLLYWOOD “Eles podem produzir muitos filmes sobre o WikiLeaks, já que quase uma dúzia de livros está para ser publicada. Eu não estou envolvido em nenhuma produção de filme no momento. Mas se nós vendermos os direitos de produção, eu vou exigir que meu papel seja feito pelo Will Smith. O nosso porta-voz, Kristinn Hrafnsson, seria interpretado por Samuel L Jackson, e a minha bela assistente por Halle Berry. E o filme poderia se chamar WikiLeaks Filme Noire.”

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Liberdade de imprensa ARI PEIXOTO

“A

cabo de falar com meu filho, Samy Adghirni, repórter da Folha de S.Paulo, enviado especial ao Egito. A narrativa, por telefone celular, é de um cenário devastador. Do sétimo andar do Hotel Hilton, ele assistiu, na varanda do quarto, aos enfrentamentos violentos entre as forças antagônicas ao regime decadente do ditador Hosni Mubarak: pedradas, linchamento, chuva de coquetéis molotov, incêndios, sirenes de ambulâncias, tanques em movimento, gritos de Allah Akbar (Deus é grande).” Este relato, publicado na internet, é, evidentemente, de uma angustiada mãe, que teme pela integridade do filho. Ao mesmo tempo, é uma análise acadêmica. Afinal, Zélia Leal Adghirni é jornalista. E professora. O quase desabafo de Zélia – doutora em Comunicação e professora da Universidade de Brasília há mais de 20 anos, com passagens profissionais por jornais como Estado de S.Paulo e Folha da Tarde –, traduz o clima de preocupante insegurança que cercou o trabalho dos correspondentes internacionais no Egito e na Líbia – para citar apenas os países onde as manifestações e os conflitos foram mais expressivos – e chamaram mais a atenção da mídia. Uma sensação de constante ameaça à imprensa pairava no ar. Por vezes, surgiam ações restritivas ao trabalho dos repórteres, como o confisco de material e a suspensão do acesso à internet. Nos casos mais radicais, ocorreram prisões arbitrárias e agressões físicas. Inclusive a brasileiros. Repórter experiente com passagens por zonas de conflito como Iraque, Irã, Iêmen, Síria e Palestina, Samy Adghirni disse que nunca se sentiu tão ameaçado como no Egito. “Eram duas marés humanas, que avançavam uma contra a outra, sem nunca se misturar, feito água e óleo”, escreveu na Folha de S.Paulo em depoimento sobre o cenário na Praça Tahrir, no Cairo. Essa descrição, é claro, só fez aumentar a apreensão de Zélia, cá do outro lado do Atlântico. “Depois de ter o quarto invadido e parte do material de trabalho apreendido, Samy mudou de hotel. Trocou o Hilton pelo Intercontinental. Contou que os jornalistas estavam preferindo ficar na periferia, pois a zona central da capital egípcia tornou-se muito perigosa. A palavra de ordem entre os profissionais é manter-se próximos, solidários, cuidar um do outro. Adeus concorrência. Nesta hora, o que importa é a vida. Sem renunciar à notícia”, escreveu Zélia em seu post Quando os Jornalistas são Notícia, publicado no dia 3 de fevereiro no site www.sul21.com.br. “A verdade é que os jornalistas correram perigo. Houve até espancamento e facadas. Alguns foram presos e obrigados a deixar imediatamente o país, como os repórteres brasileiros Corban Costa, da Rádio Nacional, e Gilvan Rocha, da TV Brasil. No final do dia, chegou a notícia da agressão ao jornalista da Zero Hora Luiz Antônio Araujo. Na batalha para teste-

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O jornalista Ari Peixoto na Praça Tahrir, no Cairo, no dia mais difícil da cobertura: a partir daí começou a perseguição aos jornalistas estrangeiros.

Repórter, profissão perigo! Profissionais da imprensa sofreram censura, apreensão de material e até mesmo agressões físicas no Egito. Em coberturas como essa, além de produzir matérias, jornalistas têm outro desafio: sobreviver. POR P AULO C HICO

munhar e reportar os fatos, todos estão expostos à brutalidade dos agentes da repressão. Ou da guerra das facções, contra ou a favor do ditador. Diante da situação de risco, a palavra de ordem era dissimular a identidade. Nunca revelar ser jornalista. Esconder câmeras e gravadores”, continuou Zélia, que fez uma análise da situação enfrentada pelos colegas profissionais da imprensa. “Não é normal que jornalistas virem notícias – eles são pagos para fazer notícias. E notícia é tudo aquilo que quebra a superfície lisa do cotidiano. É o desvio, não o padrão. É o homem mordendo o cachorro. No Egito de hoje, o boicote aos correspondentes é notícia porque reve-

la uma das faces mais hediondas dos regimes não-democráticos: a censura aos meios de comunicação. ‘Volte meu filho’. Esse é o pedido natural de qualquer mãe, mesmo sendo mãe jornalista. ‘Aproveite que seu hotel está perto do aeroporto’. Mas ele quer ficar, é o seu trabalho, a sua paixão. Ou sua missão? Esqueci de ensinar ao meu filho o que ensino aos meus alunos da UnB: O jornalismo é uma profissão altamente letal. Cuidado!”, sentenciou. Já de volta ao Brasil, Samy resumiu a experiência pela qual passou no Egito. “Fiquei dez dias. Houve momentos extremamente perigosos, nos quais trabalhar se tornava algo secundário diante do

esforço para escapar ileso. Essa cobertura foi peculiar, pois a obrigação de produzir boas matérias tinha de ser constantemente ajustada à necessidade de sobrevivência. Cobrir uma revolução in loco supõe acima de tudo falar com cidadãos prós e contras, autoridades, acadêmicos, religiosos, políticos e artistas. Falei com vários simpatizantes do regime antes de eles se tornaram muito hostis a jornalistas estrangeiros. Mas os protagonistas da revolução eram, obviamente, os manifestantes oposicionistas, quase sempre amáveis e dispostos a falar com a imprensa”, disse ao blog Novo Em Folha, da própria Folha de S.Paulo. A experiência de Luiz Antônio Araújo Editor de Cultura e repórter especial da Zero Hora, Luiz Antônio Araújo tem longa trajetória na cobertura de guerras e conflitos internacionais. “Isso não foi uma opção, aconteceu. Acho que a cobertura de guerra, ou qualquer outra internacional, é tão importante quanto as locais. E todo jornalista deveria ter estas experiências. O que eu gosto é de coberturas no Oriente Médio. A região me fascina desde menino, quando ouvia ou via notícias de lá. Acho que é uma região que desperta a curiosidade das pessoas, ela povoa a imaginação. O objetivo do jornalista que acompanha a região deve ser o de tentar dissipar essa nuvem de incompreensão que existe sobre ela.” Autor do livro Binladenistão - Um Repórter Brasileiro na Região Mais Perigosa do Mundo – escrito após a cobertura da guerra do Afeganistão, iniciada em 2001 – ele, é claro, acompanhou de perto o auge dos recentes conflitos no Egito. E não escapou ileso: “Fui agredido, empurrado, levei socos, pontapés nas canelas. Só consegui manter a integridade física tirando o passaporte e dizendo ‘eu sou brasileiro’.


REUTERS/ANNIS BEHRAKIS

Próximo à Praça Tahrir, centro nervoso do movimento que culminou com a deposição de Hosni Mubarak, manifestantes contrários ao Governo entram em choque com partidários do ditador. Abaixo, populares cercam um soldado em frente ao prédio da tv estatal, no Cairo. ARQUIVO PESSOAL

REUTERS/DYLAN MARTINEZ

O repórter Samy Adghirni ao lado de sua mãe, a jornalista e professora Zélia Leal Adghirni, disse que nunca se sentiu tão ameaçado como quando cobriu a revolução egípcia. Abaixo, o retorno ao Brasil do repórter Corban Costa e do cinegrafista Gilvan Rocha.

AGÊNCIA BRASIL

Os manifestantes levaram a minha máquina fotográfica e tentaram roubar meu passaporte. Até que um militar interveio. Então, fui empurrado até um galpão que está sob o controle do Exército e presenciei as cenas mais chocantes desta cobertura. Eu vi, pelo menos, três pessoas feridas com gravidade.” Para o jornalista, que mantém o site www.luizantonioaraujo.com.br, a paixão pela notícia é algo irresistível. E o sentimento de companheirismo, nestas situações extremas, ajuda a encarar os riscos: “Testemunhar a História ao vivo é um sonho de todos os que, um dia, decidimos ser jornalistas. Isso é ainda mais impressionante quando assistimos a um acontecimento absolutamente novo, imprevisto, que subverte a sabedoria convencional, como ocorreu no Egito. Mesmo sendo impossível nomear todos os colegas de quem recebi solidariedade, faço questão de citar os brasileiros Samy Adghirni, da Folha de S.Paulo, Fernando Duarte, de O Globo, e Jamil Chade, de O Estado de S.Paulo, que me auxiliaram quando fui agredido por mubarakistas no dia 3 de fevereiro.” Luiz Antônio não gosta muito da expressão ‘correspondente de guerra’, freqüentemente utilizada para designar os colegas que, assim como ele, correm o mundo atrás de conflitos armados. “Prefiro dizer repórter. No caso do Egito, não foi uma guerra. Foi pior, pois o país está vivendo uma revolução social. A gente nunca sabe onde está pisando. Acho que o jornalista que participa deste tipo de cobertura tem que ter a visão do que é realmente um conflito e dos riscos que este oferece. Deve ser muito ético, pois a isenção numa hora dessas é primordial. É necessário contextualizar o momento para ajudar o público a entender o que está acontecendo. Também é preciso ter convicção de que sua vida é sempre mais importante do que qualquer reportagem. Este tipo de cobertura não é turismo”, afirmou ao Jornal da ABI. Na prática, contudo, os cuidados numa pauta em área de conflito no exterior não diferem muito da postura a ser adotada, por exemplo, no cotidiano da violência das ruas do Brasil: “A maioria dos jornalistas mortos em serviço se dedica à cobertura local, como foi o triste caso do meu conterrâneo Tim Lopes, em 2002. E os mandamentos do melhor jornalismo – informar com precisão, contextualizar os fatos, ouvir os dois lados, interpretar – valem na Praça Tahrir e no Complexo do Alemão”, diz o repórter do Zero Hora, que, de volta ao Brasil, destaca a importância do olhar

brasileiro sobre esses acontecimentos históricos. “Não só creio que a imprensa brasileira fez um bom trabalho no Egito como estou convicto de que ler reportagens apuradas e escritas por brasileiros em situações como essa é um direito do nosso público leitor. Não há nisso nenhum preconceito em relação à CNN, à BBC e às agências internacionais, cujo trabalho acompanho cotidianamente e admiro. Sustento apenas que nós, brasileiros, temos direito à informação de primeira mão”, disse ele, que, a exemplo da experiência do Afeganistão, não descarta a possibilidade de transformar em livro suas experiências de repórter no Egito. Mais agressões a brasileiros Citados por Luiz Antônio Araújo, Fernando Duarte, de O Globo, e Jamil Chade, de O Estado de S.Paulo, também tiveram que deixar o Hotel Hilton, após terem seus quartos invadidos – exataJornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

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Liberdade de imprensa

A população utilizou a internet para divulgar em tempo real os acontecimentos no Egito. O fotógrafo Charles Onians publicou no Flickr imagens que registram a revolta do povo no Centro de Cairo e os protestos reprimidos a bala e gás lacrimogênio (fotos acima e à esquerda). Em Alexandria, segunda maior cidade do Egito, a fotógrafa amadora e artista plástica egípcia Dina Saleh também usou esse site para mostrar a alegria das pessoas depois da vitória.

mente como ocorreu com Samy Adghirni, repórter da Folha de S.Paulo. Segundo Jamil Chade, seis homens, três deles armados, invadiram o quarto do hotel próximo à Praça Tahrir, epicentro das manifestações contra o regime de Hosni Mubarak. Os oficiais procuraram câmeras fotográficas. Sem encontrá-las, disseram que era proibido tirar fotos da varanda. Perguntados do motivo da proibição, não responderam. E foram embora. O repórter Fernando Duarte elaborou para O Globo um relato cronológico – no 26 Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

horário local – dos confrontos na capital egípcia entre manifestantes da oposição e partidários de Mubarak. O quarto do jornalista foi invadido por seguranças. Fernando foi obrigado a parar de gravar imagens do tumulto na Praça Tahrir. E proibido de ir para as sacadas do hotel. Às 15h45m do dia 2 de fevereiro, ele escreveu: “Manifestantes tentam invadir o Hotel Hilton, que fica nas proximidades da Tahrir e abriga boa parte da imprensa internacional, incluindo este que vos escreve”. O informe seguinte já confirmava a invasão. “Meu quarto é invadido por quatro seguranças do Ramsés Hotel ordenando o fim de imagens dos tumultos. Depois de ver o Exército invadir o 24º andar para confiscar câmeras da Al-Jazeera na terça-feira, obedeço sem um pio”, relatou às 18h25 do dia 2 de fevereiro, para voltar à ativa logo em seguida. “Mesmo uma espiadela do lado de fora do hotel é perigosa o suficiente. Um colega britâ-

nico acaba de voltar da rua com o couro cabeludo sangrando”. Eram 21 horas. Naquele mesmo dia 2, os brasileiros Corban Costa, repórter da Rádio Nacional, e Gilvan Rocha, cinegrafista da TV Brasil, foram presos, vendados e tiveram os passaportes e equipamentos apreendidos. Os dois profissionais, vinculados à EBC (Empresa Brasileira de Comunicação), viajaram até o Cairo para fazer a cobertura da crise política no país, mas não chegaram a produzir reportagens. No trajeto entre o aeroporto e o hotel, o táxi no qual estavam foi parado em uma barreira policial. Antes disso, conta Gilvan Rocha, ain-

da no aeroporto, a viagem já havia começado tensa. “Tinha uma barreira de fiscalização e na bolsa do Corban havia cartões de memória. Perguntaram se éramos jornalistas. Dissemos que sim. Quando abri a mala já foram pegando tudo e disseram que o material só seria devolvido quando nós voltássemos para o Brasil. Fomos fazer uma cobertura jornalística e viramos a notícia”. Conduzidos à delegacia, ambos passaram a noite em uma sala sem janelas e sem acesso à água. “Foi uma sensação horrível. Não se sabe o que vai acontecer. Em um primei-


REUTERS/ASMAA WAGUIH

ro momento, achei que seríamos fuzilados porque nos colocaram de frente para um paredão. Mas, graças a Deus, isso não aconteceu”, afirmou Corban, que, na companhia do colega, retornou ao Brasil em 5 de fevereiro. Ao Jornal da ABI, em entrevista concedida no dia 24 de fevereiro, portanto já depois de superado o natural clima de tensão, Gilvan Rocha fez um balanço da experiência no Egito. “As lembranças que tenho do episódio, evidentemente, não são boas. Imagine só ficar em poder de pessoas com armas de alto calibre por 18 horas, depois ter os olhos vendados. Tudo isso sem justificativa... Tudo o que passou pela minha cabeça é que ali seria o fim. Essa é uma experiência que não gostaria que se repetisse em minha vida! E a lição que tirei de tudo isso é dar mais valor à minha família e aos meus amigos. À vida, enfim”, avaliou o cinegrafista da TV Brasil, que, apesar dos percalços, diz estar pronto para novas coberturas. “Participaria, sim, de reportagens em outras áreas de conflito. Quem trabalha na área de jornalismo e gosta do que faz – como eu – sente-se muito realizado nestas coberturas, apesar dos riscos.”

ZEINOBIA/FLICKR

Herbert: Uma festa cívica Correspondente da TV Record e colunista do Jornal Opção em Tel Aviv, Israel, Herbert Moraes chegou a ser detido pela polícia política do Egito, além de ter ficado praticamente isolado no Hotel Sheraton, no Cairo. Praticamente impossibilitado de trabalhar, Herbert voltou para Israel. Mas, não descansou enquanto não retornou à Praça Tahrir, palco central das manifestações populares no Egito. “O sucesso do correspondente depende de energia pessoal e do apoio do grupo para o qual trabalha. Felizmente, tenho apoio integral da Record e de meus colegas no Brasil”, acredita o repórter. “Milhões de egípcios descobriram que são agentes ativos e que podem retirar do poder aquele que, em três décadas, se tornou a vanguarda do atraso do país e líder da comissão de frente do enriquecimento de seu grupo político e militar. Tratase de uma festa cívica. As famílias levaram todos os seus integrantes para a comemoração. Vi crianças, adolescentes, velhos. Parece que todos se sentem mais seguros. Insegurança sentiam só com o Governo de Mubarak”, relatou o repórter em depoimento ao Jornal Opção. O fato de morar em Israel e ir para o Egito tornou o trabalho de Herbert ainda mais perigoso. Os dois países têm um acordo de paz, mas vivenciam uma relação fria. E com um visto de trabalho com carimbo de Israel, numa terra onde os israelenses são odiados, a situação fica ainda mais complicada. “Mesmo com o passaporte brasileiro, o que muitas vezes nos países do Oriente Médio é um salvo-conduto, a entrada não foi nada fácil. Depois de

passar pelo serviço de imigração egípcio, a missão seguinte era arrumar um carro que me levasse para o centro da cidade. A distância é de 25 km, mas o aeroporto estava vazio. Só havia alguns jornalistas que vieram no mesmo vôo e funcionários. Uma imagem surreal. Já estive no Egito outras vezes, e ver um dos aeroportos mais confusos e lotados do mundo completamente vazio foi uma experiência e tanto.” O mundo árabe, aliás, segue envolto em revoltas populares. Após as manifestações que depuseram os ditadores da Tunísia e do Egito, ocorreu o agravamento do quadro de conflitos na Líbia, com a população marcando posição contrária ao regime de Muammar Kadafi. A população do Iêmen protestou contra seus governantes, no poder há décadas. O mesmo ocorreu no Bahrein – fato que levou ao cancelamento do Grande Prêmio de Fórmula 1 no país, marcado para o dia 13 de março e que abriria a temporada 2011 da categoria. Ari Peixoto e sua adrenalina Há dois anos no Oriente Médio, como correspondente da TV Globo, Ari Peixoto falou de sua experiência no Egito à repórter Natália Castro, em matéria publicada na Revista da TV, de O Globo. “Cheguei ao Cairo na sexta-feira, 28 de janeiro. Lembro bem que o trajeto do aeroporto até o hotel, na beira do Nilo, foi tranqüilo. Tranqüilo até demais mesmo numa sexta, o dia sagrado para os muçulmanos. Havia muita polícia nas ruas, o que pareceu normal, por causa dos protestos. O que eu definitivamente não esperava era a recepção: instalados

Na festa da vitória na Praça Tahrir, no Cairo, a multidão se misturou aos tanques do Exército.

no hotel, fomos testemunhas de um confronto entre manifestantes e policiais, que usaram gás lacrimogêneo para dispersar a multidão. E nós, no 17º andar, 50 metros acima do solo, mais ou menos, não conseguíamos sair à varanda. O ar ficou irrespirável”, contou ele, dando mais detalhes da aventura. “No dia 2 de fevereiro, chegamos à praça no momento em que a batalha entre opositores e partidários de Mubarak começou. O cenário foi aquele a que todo o mundo assistiu com transmissão direta pelas televisões: cenas de selvageria, pedras voando de um lado para o outro, cavalos e camelos avançando sobre a multidão, gritos, correria e gente ferida. Lembro bem que estava fazendo um flash ao vivo para a Globonews quando houve um estampido, uma correria. Também corri para me proteger,

Terror contra os jornalistas Em apelo internacional para que cessassem os ataques contra jornalistas no Egito, o Presidente da Federação Internacional dos Jornalistas-FIJ, Jim Boumelha, denunciou em 4 de fevereiro: o conjunto de agressões: “Alguns jornalistas foram presos, outros espancados e suas câmeras danificadas. Outros foram raptados. Recebemos relatos de agressões a jornalistas da BBC, CNN, CBS e de vários meios de comunicação europeus, como a TV2 dinamarquesa, televisão suíça, enviados especiais do rádio e da televisão pública espanhola, RTVE, os jornais espanhóis ABC e El Periódico, o diário belga Le Soir, Associated Press, o canal russo Zvezda, a difusão pública do TRT da Turquia, televisão polaca TVP, a TV Al Arabiya, além do fechamento dos escritórios da Al-Jazeera, entre outros”. Uma das denúncias mais graves, publicada em 11 de fevereiro, dava conta de que a jornalista Lara Logan, uma das mais conhecidas correspondentes internacionais da rede americana CBS, foi violentada quando cobria as comemorações da queda de Mubarak. “Logan foi cercada e, então, brutal e continuamente violentada e espancada, antes de ser salva por um grupo de mulheres, ajudadas por cerca de 20 soldados egípcios”, revelou comunicado oficial da empresa de comunicação. Também a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão) repudiou os atos de violência cometidos contra jornalistas estrangeiros, entre eles os brasileiros, com o objetivo de impedir a cobertura das manifestações de opositores do governo do Egito. “Esses atos constituem grave violação aos princípios de liberdade de expressão e de imprensa. Organizações internacionais contabilizam 30 prisões, 26 ataques e oito apreensões de equipamento de jornalistas em apenas dois dias. Muitas dessas ações foram promovidas pelas forças de segurança do Estado, o que as torna ainda mais condenáveis”, frisou o texto, divulgado no dia 4 de fevereiro e assinado pelo Presidente da Abert, Emanuel Soares Carneiro

mas não parei de falar. Foi instintivo... Por uns poucos minutos me perdi do David Cohen, meu cinegrafista. Voltamos a nos encontrar no meio daquele caos e, a partir daquele momento, por causa do nervosismo das pessoas, seria complicado gravar com a câmera da Globo. Decidimos, então, usar o celular do David”, recorda Ari Peixoto. A equipe ficou na Tahrir por pouco tempo – o suficiente para ver que a situação era muito grave. E que era preciso chegar logo ao hotel em segurança, para poder gerar as imagens de alto teor jornalístico. “Este foi, sem dúvida, o dia mais difícil e estressante da cobertura, e um divisor de águas, porque a partir daí começou a perseguição dos ativistas pró-Governo aos jornalistas estrangeiros. Redobramos os cuidados e a atenção. Sair com a câmera na mão, jamais. Houve dias de só sair com o celular para não chamar a atenção. Deixei até de usar o nosso motorista, que é egípcio, para não prejudicá-lo. Também no quarto do hotel, me cerquei de cuidados para não deixar equipamentos à vista. Trazia sempre comigo todos os contatos para emergência, como os telefones da Embaixada do Brasil e de colegas brasileiros que estavam na cobertura.” Ari, que começou na profissão como repórter de rádio, disse estar acostumado com a adrenalina de entrar ao vivo, na hora em que o fato está acontecendo, como fez por diversas vezes no Jornal Nacional e em outros telejornais da emissora: “Essa é uma sensação maravilhosa, é escrever uma página da história... Depois do resultado de um trabalho bem feito, a gente esquece os limites, as dificuldades, os perigos e curtimos a satisfação de ter passado a mensagem para quem está vendo. E nisso não conta cansaço; nem dormir três, quatro horas por noite. Cansa, mas é bom demais. Afinal, não é todo dia que a gente tem a chance de estar num dos berços da civilização, um país que é um livro de História ao ar livre. No futuro, além de múmias, pirâmides e faraós, a História do Egito também vai registrar a Revolução da Praça Tahrir. E eu poderei dizer que vi de perto a emoção dos egípcios na luta por um mundo melhor.” Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

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Liberdade de imprensa

“Uma função do jornalista é publicar o que ainda não foi publicado ou o que não querem que seja publicado” Membro da 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio e estudioso de questões relacionadas com a liberdade de informação, o Desembargador Fernando Foch entende que o jornalista tem o direito de publicar até mesmo informações sob sigilo, porque o dever de protegê-las é de quem determinou o segredo, e não do profissional de imprensa.

“QUEM QUISER QUE GUARDE AS SUAS INFORMAÇÕES” “Se o jornalista tem acesso à informação, ainda que esteja sob sigilo, ele pode e deve publicá-la. Uma das funções do jornalista é publicar o que ainda não foi publicado ou que não deve nem querem que seja publicado. Eu passei muitos anos da minha vida atrás da informação que não queriam que fosse divulgada. Quem quiser que guarde as suas informações, pois o jornalista está atrás delas. Ele tem que estar, a sociedade precisa que ele esteja.” A constatação é do Desembargador Fernando Foch de Lemos Arigony da Silva, que antes de entrar para a magistratura foi jornalista. Foch entende inadmissível qualquer tipo de controle à imprensa. “A imprensa é absolutamente livre, o que não quer dizer que seja absolutamente irresponsável. Aliás, ela não é irresponsável, pois responde por danos que, eventualmente, cause”, diz. Em entrevista concedida à revista Consultor Jurídico em seu gabinete, o Desembargador afirmou que há maneiras de dar proteção às pessoas envolvidas em ações judiciais sem precisar impedir a imprensa de divulgar informações constantes nos processos. “Os processos são públicos, mas é possível impor a eles segredos de Justiça. A própria Constituição prevê isso.” Entretanto, explica, o sigilo no processo não significa que os veículos de comu28 Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

DIVULGAÇÃO

Em longa entrevista de repercussão no meio judiciário, o Desembargador Fernando Foch, da 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, sustentou que “uma das funções do jornalista é publicar o que ainda não foi publicado ou que não deve nem querem que seja publicado”. Foch, que é membro do Conselho Deliberativo da ABI, foi entrevistado para o site especializado Consultor Jurídico pela jornalista Marina Ito, que o questionou sobre temas como liberdade de expressão e liberdade de imprensa, atuação do Poder Judiciário em litígios sobre essas matérias e a legislação penal do País. Ao todo, foram cerca de 30 perguntas, formuladas com competência e senso de oportunidade. “A jornalista Marina Ito demonstrou ser uma profissional muito qualificada”, disse Foch ao ABI Online. A entrevista é reproduzida a seguir, com a introdução feita pela jornalista Marina Ito e intertítulos da Redação do Jornal da ABI O Desembargador Fernando Foch diz que não há mistério no direito de resposta: basta aplicar a Constituição e o Código Civil.

nicação estão proibidos de publicar as informações sigilosas. “Eu não posso proibir a imprensa de publicar. O que posso é, licitamente, dificultar”, diz. No caso do polêmico site WikiLeaks, Foch afirma que cabe ao Estado manter o sigilo. “Outros jornais, inclusive do Brasil, estão divulgando essas informações. Se entender que seria ilícito, seria aplicado a esses outros veículos? Não vejo como.” Defensor ferrenho da liberdade de expressão, Foch trabalhou na Folha da Manhã, na Folha de S. Paulo, na TV Globo, no Última Hora. Também foi assessor de imprensa do Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, na época Seabra Fagundes. “Embora tenha vivido momentos angustiantes, principalmente no decorrer da ditadura, foi uma excelente experiência de vida”, avalia. Ele conta que trabalhou durante muitos anos no que, na época, era chamado de direitos humanos. “Cobria a igreja, a Ordem dos Advogados, tinha contato com o pessoal da Anistia. Foi uma experiência boa também para conhecer a nossa realidade social.” Foi na época da ditadura, relembra, ao ver jornalistas sendo cassados e impedidos de trabalhar, que, apavorado, começou a pensar em um plano B. “Nesse processo de escolher uma alternativa à

minha paixão, que era a imprensa, encontrei um livro de Direito do professor Caio Mário da Silva Pereira, que um amigo havia esquecido na minha casa. Comecei a ler e achei o texto maravilhoso. Gostei do conteúdo. Tinha achado meu plano B.” Foch formou-se em Direito pela Faculdade Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1977. “Fiz o curso de Direito sem grandes pretensões, até porque, como eu dizia para os meus colegas, jamais viveria disso. Eu ia viver da imprensa enquanto fosse possível. Assim foi.” Em 1984, Fernando Foch ingressou na magistratura. “Confesso que senti vontade de voltar várias vezes, porque realmente é um mundo fascinante, dinâmico. É muito interessante ver as coisas acontecerem”, disse.

“A NORMA CONSTITUCIONAL GARANTE O DIREITO DE RESPOSTA”

ÇÃO.

O SENHOR CONCORDA? É PRECISO TER LEI DE IMPRENSA? Fernando Foch — Não vejo nenhuma necessidade de uma Lei de Imprensa, nem mesmo para regular o direito de resposta. Se uma nova lei surgir, não será nada inconstitucional. Mas não há necessidade de uma. Nós temos a norma constitucional que garante o direito de resposta e o Código Civil que garante a reparação de qualquer dano. Como está escrito no voto condutor desse acórdão [do Supremo], que não foi unânime, mas é histórico, a imprensa não pode sofrer censura de forma alguma. A lei foi declarada inconstitucional porque o espírito dela era todo repressivo. Eu sempre me recusei a aplicar a Lei de Imprensa depois da Constituição de 5 de outubro de 88 e fiquei muito feliz quando o Supremo concluiu que ela não tinha sido recepcionada. E não foi mesmo. UMA

CONJUR – O SENHOR RESOLVIA OS CASOS QUE PEDIAM INDENIZAÇÃO POR EVENTUAIS DANOS CAUSADOS PELA IMPRENSA SOMEN-

CONJUR – O SUPREMO DECIDIU, NA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 130, QUE A LEI DE IMPRENSA NÃO FOI RECEPCIONADA PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. ALGUNS ENTENDEM QUE, COM ESSA DECISÃO, QUESTÕES COMO O DIREITO DE RESPOSTA FICARAM SEM REGULAMENTA-

CONSTITUIÇÃO? Fernando Foch – Simplesmente pelo Código Civil e pela Constituição, aplicando o princípio da dignidade da pessoa humana, e com a reparação dos danos causados à honra, à vida privada e à intimidade. É o suficiente. Não precisa de

TE ATRAVÉS DA


nenhuma lei repressiva à atividade da imprensa. Nunca tive dificuldade em aplicar o texto constitucional e o Código Civil para resolver conflitos do tipo.

“O JUIZ NÃO É INTÉRPRETE DELE MESMO; É INTÉRPRETE DA SOCIEDADE” CONJUR – NAS DECISÕES RELACIONADAS À IMPRENSA, O JUDICIÁRIO COSTUMA PONDERAR ENTRE O DIREITO À PERSONALIDADE E O DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO.

ESSA PONDE-

RAÇÃO NÃO É MUITO SUBJETIVA?

Fernando Foch – Com certeza, é subjetiva. Mas o juiz não decide segundo a sua subjetividade; ele deve decidir segundo a subjetividade do homem médio. O juiz não é intérprete dele mesmo; é intérprete da sociedade. Essa subjetividade seria muito perigosa se o juiz julgasse segundo o que ele acha ou o que pensa. Muitos juristas não aceitam a ponderação de interesses, e eu até concordo, em parte, com eles. Mas para solucionar problemas concretos, que se apresentam no dia-a-dia, a ponderação de interesses ainda é uma solução viável. Se há um programa de televisão, como já tivemos casos parecidos, que invade a privacidade e a intimidade de uma atriz e divulga essas informações, vou ponderar o que está em jogo. Qual o valor mais importante: a intimidade daquela atriz dentro do seu apartamento ou é a liberdade de informação? Nesse caso, vai prevalecer como mais importante uma decisão que privilegie a intimidade da atriz. No entanto, se a imprensa tem acesso a uma filmagem de um político colocando dinheiro de corrupção nas meias, evidentemente que a privacidade e a intimidade toda vai ceder. O importante, nesse caso, é a liberdade de imprensa, porque o que está em jogo é um valor mais caro à sociedade, que é uma administração rígida, sem corrupção, honesta, voltada para o bem comum.

a preocupação de fazer a modulação de acordo com quem causou e com quem sofreu o dano. CONJUR – É UMA BOA SOLUÇÃO? Fernando Foch – Não me parece que seja a melhor, porque dignidade é dignidade, honra é honra. Mas é a mais viável. Não acharam ainda uma maneira melhor de indenizar que não leve em consideração essa diferença. Eu não vi nenhum caso de condenação a favor de um magistrado que, pelo menos à primeira vista, parecesse uma proteção. É mais ou menos dentro da normalidade da aplicação desses critérios. Fica um pouco mais alto do que a média, por força da posição que o magistrado ocupa. Isso também não quer dizer que, em um caso ou outro, não haja exageros. É possível que sim, mas, em geral, não é o que tenho observado.

“A CENSURA PRÉVIA FERE O COMANDO CONSTITUCIONAL” CONJUR – OUTRA SITUAÇÃO QUE COSTUMA SURGIR SÃO DECISÕES JUDICIAIS QUE PROÍBEM A PUBLICAÇÃO DE UMA NOTÍCIA ANTES MESMO DE A REPORTAGEM TER SIDO PUBLICADA. ISSO É CENSURA PRÉVIA ?

Fernando Foch – Na minha opinião, é censura prévia. Posso falar tranquilamente, porque não tenho nenhum caso. Eu estou falando como um cidadão, que, por acaso, é um magistrado. É censura prévia, pois fere o comando constitucional do artigo 220 da Constituição Federal, que não admite qualquer forma de censura a imprensa. A imprensa é absolutamente livre, o que não quer dizer que seja absolutamente irresponsável. Aliás, ela não é irresponsável, pois responde por danos que, eventualmente, cause. A censura, na minha opinião, é inadmissível. CONJUR – NO CASO DE PROCESSOS CRIMINAIS, HÁ QUEM DEFENDA A PROIBIÇÃO DE PUBLICAÇÕES QUE POSSAM PREJUDICAR O

SÃO OS CASOS QUE CHAMAM A ATEN-

“A INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL NÃO É UM PRÊMIO LOTÉRICO”

ÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA, COMO O DO GO-

CONJUR – EM DIVERSOS CASOS DE INDENIZAÇÕES CONTRA JUIZ, OS VALORES FORAM MAIS ELEVADOS SE COMPARADOS AOS DEMAIS CASOS. O JUIZ ACABA SE COLOCANDO

JULGADO DE ACORDO COM O QUE ESTÁ

LEIRO

BRUNO OU DOS NARDONI. O SENHOR

ACHA QUE É POSSÍVEL A RESTRIÇÃO DE PU BLICAÇÕES PARA GARANTIR QUE O RÉU SEJA

NOTÍCIA NA HORA DE DECIDIR?

Fernando Foch – Essa valoração da indenização do dano moral é complicada. O juiz tem uma relevância política – não no sentido partidário – e tem uma condição social. Não posso dar uma indenização que deixe de acarretar uma compensação, inclusive, material. Eu não posso condenar a pagar a ele R$ 500 ou R$ 1.000. Se há uma pessoa extremamente humilde que cai no ônibus, depois de um dia de trabalho, e passa por aquela situação constrangedora, também não posso condenar a pagar a ele R$ 10 mil ou R$ 20 mil, porque não estaria compensando, mas tornando a indenização um prêmio lotérico em que o ilícito passa a ser o desejável. Eu não vejo espírito de corpo quando há uma situação em que um juiz julga processo movido por outro juiz. Percebo

ESPAÇO NO MUNDO VIRTUAL PARA SE EXPRESSAR.

Fernando Foch – Também não. Se o jornalista tem acesso à informação, ele pode publicar, ele deve fazer isso. A operação clandestina que a Presidência dos Estados Unidos da América promoveu contra os democratas [o caso Watergate derrubou o Presidente Nixon], era sigilosa. Eu não acho que a imprensa americana poderia ser proibida de divulgar. Uma das tarefas do jornalista é publicar o que ainda não foi publicado ou que não deve ser publicado.

LOSAS EM RELAÇÃO À RESPONSABILIDADE DE

CONJUR – OU QUE NÃO QUEREM... Fernando Foch – Com certeza. O jornalista trabalha assim. Eu passei muitos anos da minha vida atrás da informação que não queriam que fosse divulgada. Quem quiser que guarde as suas informações, pois o jornalista está atrás delas. Ele tem que estar, a sociedade precisa que ele esteja. CONJUR – COMO O SENHOR ANALISA A WIKILEAKS DE DOCUMENTOS SECRETOS DA DIPLOMACIA AMERICANA? Fernando Foch – Não sei bem como é o Direito americano. Do ponto de vista do Direito brasileiro, não consigo ver ilicitude. Cabe ao Estado manter o sigilo. A função dos meios de comunicação é divulgar. Não vejo, absolutamente, nada condenável do ponto de vista da liberdade de informação. Outros jornais, inclusive do Brasil, estão divulgando essas informações. Se entender que seria ilícito, seria aplicado a esses outros veículos? Não vejo como.

PUBLICAÇÃO PELO

“CENSURA É ALGO BANIDO NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA” CONJUR – ALGO QUE TEM SE DISCUTIDO COM INTENSIDADE, INCLUSIVE, JÁ HÁ UM MO-

RÉU.

NO PAPEL DAQUELE QUE FOI ALVO DE UMA

O JORNALISTA DE DIVULGAR INFORMAÇÃO SIGILOSA ?

NOS AUTOS ?

Fernando Foch – Os processos são públicos, mas é possível impor a eles segredo de Justiça. A própria Constituição prevê isso. Decretado o segredo de Justiça, os dados do processo não podem ser divulgados, o acesso ao processo é mais restrito. Só terão acesso aos autos as partes, os procuradores, o Ministério Público, o juiz. É preciso ter um motivo para decretar o sigilo. Mas decretá-lo não significa proibir a imprensa de divulgar, eventualmente, o que há no processo sob sigilo. Não se pode impedir que a imprensa, com suas fontes – o sigilo da fonte é garantido na Constituição –, divulgue informações que estejam no processo. Eu não posso proibir a imprensa de publicar. O que posso é, licitamente, dificultar. Porque, quando se decreta segredo de Justiça, evidentemente, o trabalho de divulgação do processo fica mais difícil. CONJUR – NÃO SE PODE PROIBIR, ENTÃO,

ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO RIO, DIZ RESPEITO AOS CONSELHOS DE COMUNICAÇÃO. O SENHOR ACHA QUE ESSES C ONSELHOS PODEM SER CONSIDERADOS INCONSTITUCIONAIS? Fernando Foch – Se esses Conselhos, de certa forma, implicarem controle de conteúdo ou de exercício da função, eles serão necessariamente inconstitucionais. Não pode haver controle. Acho muito difícil que eles escapem dessa situação, porque ainda que não controlem o conteúdo, vão controlar, de certa forma, o exercício. Esse tipo de controle implica censura. E censura é algo que está banido na ordem jurídica brasileira. VIMENTO NESSE SENTIDO NA

MAS AINDA HÁ QUESTÕES NEBU-

CADA UM NESSE PROCESSO .

QUANDO UM

LEITOR QUE FAZ UM COMENTÁRIO CONSIDERADO OFENSIVO , QUEM RESPONDE É O COMENTARISTA OU O VEÍCULO QUE DIVULGOU?

Fernando Foch – Na internet, responde o responsável pelo canal que está sendo utilizado. A internet, realmente, é uma mídia mais ágil, nova, de conceitos ainda não muito solidificados, por isso a compreensão ainda é um pouco difícil. A internet tem algo extraordinário, pois é o instrumento do direito de informar, e não apenas do direito de ser informado. Dizem que é através da rede que se fura bloqueios à informação em Cuba, na China, no Irã. É mais difícil impedir, censurar, coibir a divulgação de informações. O controle fica muito difícil. Mas, desde que se tenha uma fonte que se identifique ou uma publicação eletrônica, não há dificuldade alguma em relação à responsabilidade civil. É como se fosse um veículo impresso. CONJUR – O SENHOR JÁ RELATOU UM CASO EM QUE CONDENOU O AUTOR DE UM ARTIGO A INDENIZAR UMA PESSOA, MAS NEGOU O PEDIDO DO OFENDIDO PARA QUE FOSSE RETIRADO O ARTIGO DA INTERNET.

PODE

FALAR MAIS SOBRE ESSA DECISÃO ?

Fernando Foch – Agora que esse caso já não está mais comigo, posso comentar. Na verdade, nós, da 3ª Câmara, restauramos o direito de se publicar o artigo, em nome da liberdade de imprensa. Não poderíamos impedir que o site, que é de notícia do mundo dos criadores de cavalos, publicasse o que bem entendesse. Publicar um artigo é um direito constitucionalmente assegurado. Ficou provado nos autos que havia uma animosidade entre a vítima e o autor do artigo, além de haver uma intenção de denegrir a honra do indivíduo que entrou com a ação de indenização. O que nós fizemos foi confirmar a sentença quanto à indenização e até aumentamos o valor para reparar o dano causado pelo artigo. E corrigimos a proibição, que estava na sentença, de que o artigo fosse veiculado. Mantivemos o artigo no site, pois ele tem todo direito de publicar. CONJUR – MAS PERMITINDO QUE O ARTIGO CONTINUASSE NO AR SEM UMA RESSALVA, POR EXEMPLO, DE QUE O JUDICIÁRIO CONDENOU O AUTOR DAQUELE ARTIGO A INDENIZAR O OFENDIDO, NÃO SERIA MANTER O DANO?

CONJUR – O CONTROLE JUDICIAL ATRAVÉS DAS AÇÕES DE REPARAÇÃO DE DANOS É SUFICIENTE PARA DAR UMA RESPOSTA A EXCESSOS PRATICADOS PELOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO ?

Fernando Foch – Sim. Se a imprensa causa dano, ela responde por isso. O que não se pode é impedir que ela se manifeste. Se não causar o dano, não sofrerá nenhuma consequência.

“A INTERNET É INSTRUMENTO DO DIREITO DE INFORMAR” CONJUR – A INTERNET MUDOU A COMUMAIS PESSOAS PASSARAM A TER

NICAÇÃO .

Fernando Foch – Se o autor da ação tivesse pedido que se colocasse essa ressalva no artigo, muito provavelmente ele seria atendido, porque é uma forma de direito de resposta. Não está na lei, mas não é preciso que esteja. Está escrito na Constituição que é assegurada a liberdade de expressão, mas também é assegurado o direito de resposta. Isso é uma resposta. O autor não fez o pedido. E, para nossa felicidade, o Judiciário só pode prover o que é pedido. É uma limitação do poder. No dia em que o juiz puder, licitamente, dar mais do que se pede, a única saída é o aeroporto, porque a liberdade vai ter morrido. Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

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Liberdade de imprensa “ESTAMOS CONFUNDINDO A FUNÇÃO DO JUDICIÁRIO COM A IMPRENSA” CONJUR – O EXTINTO PROGRAMA LINHA DIRETA, DA TV GLOBO, AO JUNTAR MATERIAL PARA RECONTAR O CASO DA CHACINA DO VIGÁRIO GERAL SE DEPAROU COM UMA AÇÃO JUDICIAL , MOVIDA POR UM DOS HOMENS ACUSADOS DE PARTICIPAÇÃO NO CRIME E QUE FOI ABSOLVIDO PELA JUSTIÇA.

tamente para uma realidade imaterial; aquilo é para a vida das pessoas. Eu tive uma escola muito boa, que foi ser jornalista em uma ditadura. Falar sempre, tentar conseguir veicular a sua opinião, ainda que nas entrelinhas ou contando com o cochilo do censor.

“ISENÇÃO NÃO É DEIXAR DE DAR OPINIÃO”

O TJ ENTENDEU

QUE O PROGRAMA NÃO PODERIA INCLUIR O

CONJUR – ALGUMAS DECISÕES JUDICIAIS

NOME DESSE HOMEM, POR ENTENDER QUE

ENTENDEM QUE O JORNALISTA TEM QUE IN-

TRAZER À TONA ESSA HISTÓRIA EM RELAÇÃO

FORMAR , NÃO PODE COLOCAR A OPINIÃO

A UMA PESSOA QUE JÁ HAVIA SIDO ABSOLVI-

DELE EM RELAÇÃO À NOTÍCIA.

DA PODERIA PREJUDICÁ-LA.

Fernando Foch – Ele pode dar opinião. Isenção não é deixar de dar opinião. Isenção é mostrar os dois lados de uma mesma realidade. Deixar de ter opinião é muito complicado. Quem não tem opinião? O juiz não tem opinião sobre o que julga? Não existe nenhuma atividade humana que não se passa uma percepção qualquer. Por que o jornalista não pode opinar? Não vejo motivos. Acho que ele tem que opinar. O importante seria garantir a todas as pessoas o direito de externar sua opinião. Como fazer isso? Hoje, há alguns facilitadores, como a internet.

O SENHOR CON-

CORDA COM ESSE TIPO DE RESPOSTA?

Fernando Foch – Eu não teria decidido da mesma maneira. Com todas as ressalvas, licenças e vênias, entendo que nós estamos confundindo a função do Judiciário com a da imprensa. O Judiciário absolveu e tece sobre a pessoa absolvida um manto de esquecimento. O Judiciário não toca mais no assunto, mas a imprensa pode tocar. São coisas distintas. Eu não posso, portanto, estender a obrigação de baixar esse manto de esquecimento sobre a pessoa absolvida à imprensa. O fato existiu, a imprensa tem todo o direito de se reportar ao fato. Esse programa recriava casos famosos, mostrando a situação dos acusados, condenados, dos envolvidos. Tem todo direito. Diferente seria se o programa apresentasse o absolvido como condenado. CONJUR – COMO O SENHOR AVALIA, HOJE, A IMPRENSA?

Fernando Foch – A imprensa me decepciona um pouco. Eu não tenho visto uma imprensa muito crítica ou investigativa. Talvez isso seja resultado de uma política industrial. Eu a sinto um pouco menos vibrante. Por outro lado, há a redução do número de veículos, dos jornais, por exemplo. O Jornal do Brasil praticamente deixou de existir. Isso me deixa um pouco preocupado, pelo risco de a imprensa perder sua capacidade crítica e informativa. E há, ainda, a questão do mercado de trabalho para jornalistas. As Redações estão muito reduzidas e se fala muito em notícias de assessoria de imprensa. CONJUR – UMA DAS CARACTERÍSTICAS DE

CONJUR – O SENHOR FOI JORNALISTA DURANTE MUITO TEMPO, INCLUSIVE NA ÉPOCA DA DITADURA. ACHA QUE ESSA EXPERIÊNCIA CONTRIBUI PARA A VISÃO E DEFESA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO QUE TEM HOJE ? Fernando Foch – Com certeza. Eu sou testemunha e vítima do que é viver uma ditadura. É uma experiência trágica. Eu me sinto roubado. Foram alguns anos em que vivi no medo, na incerteza, mas também na coragem de driblar os perigos e tentar fazer valer aquilo em que acredito, no caso, os valores da democracia e da liberdade. A influência é enorme. E esse testemunho de vida ajuda a compreender que é preciso que os canais da liberdade se comuniquem para que nós não corramos o risco de cair em uma outra aventura ditatorial. Vista de perto, a ditadura é dolorosa, mas ajuda a compreender o que deve ser feito para evitar essa tragédia.

“SEABRA FAGUNDES, HOMEM DE EXTRAORDINÁRIA CORAGEM”

SUAS DECISÕES É A DE CHAMAR A ATENÇÃO PARA QUESTÕES MAIS PROFUNDAS QUE ENVOLVEM A SOCIEDADE E, MUITAS VEZES, ACABAM SENDO LEVADAS AO JUDICIÁRIO.

O SENHOR

COSTUMA FAZER CRÍTICAS NAS SUAS DECISÕES.

Fernando Foch – É. Eu, realmente, não renuncio a pensar e a escrever. E eu acho que, quando estou escrevendo para o jurisdicionado tenho o dever de expressar as minhas opiniões até para que ele possa discordar. Mas eu não consigo deixar de me indignar. Se você tem um canal para comunicar a sua indignação, deve usá-lo. Porque se não você passará em branco pela vida. Às vezes, quem sabe, até exagero um pouco. Eu tenho o cuidado de não correr em excesso de linguagem. Mas não dá para deixar de expressar minha opinião. E não é descabido fazer isso na decisão judicial, porque a decisão incide na pessoa humana, não é uma coisa que eu estou jogando abstra30 Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

CONJUR – O SENHOR TAMBÉM FOI ASSESOAB. COMO FOI ESSE PERÍODO? Fernando Foch – Quando eu deixei a Folha de S. Paulo, depois de 10 anos como repórter especial do jornal, o Seabra Fagundes me convidou para ser assessor de imprensa. Fiquei muito honrado com o convite. A OAB era muito firme nas suas posições políticas de luta pela democracia, tanto que sofreu um atentado, em que morreu a [secretária] Lida Monteiro. Quando ocorreu o atentado, eu, como assessor de imprensa, redigi a nota com a reação da OAB a esse ato terrível. Recebi a incumbência de interpretar o pensamento que marcou uma reunião de notáveis, com vários advogados famosos, na sala da Presidência da Ordem. A minha experiência com o Seabra Fagundes, homem de extraordinária coraSOR DE IMPRENSA DA

gem, comprometido com a liberdade e a democracia, foi marcada por esse episódio dramático na história brasileira.

ca um direito mais principiológico, ou seja, muito mais pautado pelos princípios constitucionais do que pela regra fria da lei infraconstitucional.

CONJUR – É VERDADE QUE O SENHOR ESTAVA AO LADO DA SALA ONDE A BOMBA EXPLODIU?

Fernando Foch – Sim. A Dona Lida trabalhava na sala ao lado. Ela era uma figura queridíssima, estava na OAB há 30 anos, era uma senhora muito distinta, educada, discreta. A bomba era para o Seabra Fagundes, mas ela, sempre muito fiel e dedicada, abria toda a correspondência. Terrível.

“DIÁLOGO JUDICIÁRIO E IMPRENSA INEXISTE” CONJUR – O SENHOR PRESIDE O FÓRUM DE DIREITO À INFORMAÇÃO E DE POLÍTICA DE

COMUNICAÇÃO SOCIAL DO PODER JUDICIÁRIO . NO INÍCIO DE NOVEMBRO , O F ÓRUM PROMOVEU UM ENCONTRO ENTRE O JORNALISTA A NCELMO G OIS, DE O G LOBO , E DESEMBARGADORES. COMO O SENHOR AVALIA O DIÁLOGO ENTRE IMPRENSA E JUDICIÁRIO? Fernando Foch – Esse diálogo simplesmente não existe ou, se existe, é extremamente ineficaz por força de preconceitos que são nossos, do Judiciário, e também da imprensa. No entanto, uma democracia não se faz sem as duas forças: a liberdade de imprensa e o Poder Judiciário. No fundo, magistrados e jornalistas buscam o mesmo ideal, que é a liberdade, de maneira que nada justifica que nós conservemos um estado de incomunicação. Isso é um desserviço à sociedade. Eu acho que o Judiciário e imprensa devem dialogar com ampla transparência de ambas as partes. Nós precisamos conhecer como pensa, o que interessa e como funciona a imprensa. Por outro lado, a imprensa deve conhecer o que temos de bom e desvendar, eventualmente, o que nós temos de ruim. Tem que haver um desarmamento de ambas as partes.

“ACABOU O TEMPO DO JUIZ QUASE COMO UMA DIVINDADE” CONJUR – O TEMPO DO JUIZ INTOCÁVEL ACABOU?

Fernando Foch – Sim, acho que esse tempo do juiz quase como uma divindade, intangível, acabou. Não há mais lugar para isso. E é o que temos visto. Quando percebemos uma preocupação com a efetividade, com a prestação jurisdicional rápida, estamos sentindo os anseios das pessoas. A sociedade já não se conforma com o processo lento. O ideal de Justiça de uma sociedade não é o processo formal. Temos que solucionar os conflitos. CONJUR – O SENHOR FALOU SOBRE OS O JUIZ TAMBÉM ACA-

ANSEIOS DA SOCIEDADE.

BA ANALISANDO ALGUNS CASOS CUJA DECISÃO VAI CONTRA O SENSO COMUM, O QUE ACARRETA CRÍTICAS DA POPULAÇÃO.

O SENHOR ACHA

QUE O JUIZ ESTÁ PREPARADO PARA LIDAR COM A PRESSÃO DA OPINIÃO PÚBLICA?

Fernando Foch – Acho que é um problema de comunicação. O que a opinião pública não sabe sobre o Judiciário é culpa do próprio Judiciário. A opinião pública não sabe, por exemplo, que o juiz tem que se pautar pelo ideal de justiça que está na Constituição. Ele não pode sair desse ideal. Às vezes, vejo uma decisão que está, rigorosamente, pautada no ideal de justiça da Constituição, mas que não corresponde ao que o juízo coletivo espera. Mas, se não corresponde, é porque nós não explicamos bem o que está acontecendo. Acho que, se nós informássemos melhor, seríamos melhor compreendidos. CON JUR – ESSE DESCOMPASSO SE DÁ, PRINCIPALMENTE, QUANDO O JUIZ ENTENDE

CONJUR – NA SUA OPINIÃO, OS JUÍZES

QUE NÃO HÁ REQUISITOS PARA UMA PRISÃO,

AINDA TÊM AQUELA IDÉIA DE QUE SÓ SE FALA

ENQUANTO A POPULAÇÃO ENTENDE QUE O

NOS AUTOS OU ISSO TEM MUDADO?

ACUSADO DEVE SER PRESO.

Fernando Foch – Isso tem mudado bastante. Se sou juiz de uma Corte Constitucional, não posso emitir certas opiniões políticas mais sensíveis, porque eu poderei ser chamado a julgar um caso nesse contexto. Mas o juiz não deve ficar encastelado em uma torre de marfim. Ele tem que ter uma participação social maior, pode expressar e deve expressar sua opinião e interagir com outros setores da sociedade. Não quer dizer que, agindo assim, vá antecipar julgamentos. Também não quer dizer que eu esteja condenando a proibição que temos de falar sobre os casos concretos que estão entregues a nós. Tenho os processos sobre a minha mesa e não posso falar sobre eles. Alguns são sobre temas em que as minhas posições são conhecidas. Quem está no meio forense sabe como eu penso em determinados casos. Saberá em tese, mas, no caso concreto, não posso falar. É um compromisso com a imparcialidade, mas isso não quer dizer que eu tenha feito um voto de silêncio e de alienação pelo que está a minha volta. O Judiciário tem que ser mais pró-ativo, porque, hoje, se apli-

Fernando Foch – Essa questão tem um problema seríssimo. Realmente, a nossa legislação penal e processual penal não corresponde ao que a sociedade quer. E a nossa legislação, que não é obra do juiz, é leniente. Não estou advogando a cadeia em qualquer crime, e sim uma legislação mais rigorosa para crimes mais graves. Mas ainda assim é difícil, porque nós atacamos os problemas não pelas causas, mas pelos efeitos. Precisamos de estrutura para manter um sistema carcerário digno, que não seja esse depósito degradante de presos. Além disso, temos um furor legiferante absurdo. Se a pessoa mata outra no meio da rua, comete um crime afiançável. Mas, se ela for na floresta da Tijuca e matar um tico-tico, estará cometendo um crime inafiançável. Isso é legislar por legislar; quebra a coerência do sistema. Não há como esperar compreensão do homem comum para esse tipo de situação. A jornalista Marina Ito é correspondente da Consultor Jurídico no Rio de Janeiro. O texto da entrevista foi publicado pelo Consultor Jurídico em 12 de dezembro passado.


O Mubarak de Mato Grosso do Sul Tal como o antigo ditador do Egito, o Governador André Puccinelli veda aos servidores do Estado o acesso a críticas que lhe fazem na internet. O jornal eletrônico Midiamax, da cidade de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, denunciou à ABI que o acesso ao veículo foi bloqueado aos servidores públicos estaduais. Segundo a direção do veículo, a página do jornal na internet (www.midiamax.com.br) não pode ser acessada a partir de computadores conectados ao servidor do Governo estadual, que repete em território brasileiro o sistema de censura adotado no Egito pelo ditador Hosni Mubarak. Em junho do ano passado, o Midiamax ficou vários dias fora do ar por causa de ataques virtuais. Há suspeitas de que o episódio se deu em represália às denúncias de falta de transparência do Governo do

Estado na gestão dos recursos públicos. O caso gerou a abertura de um inquérito na Polícia Federal, e a solidariedade da ABI, reclamando por liberdade de imprensa. De acordo com a Redação do Midiamax, o acesso à internet nas secretarias, autarquias e órgãos vinculados ao Governo é administrado pela Superintendência de Gestão de Informação-SGI, responsável pelo provimento de infra-estrutura tecnológica para o Poder Executivo estadual. Para o Midiamax “causa surpresa e espanto a constatação de que o Governo do Estado proíbe que seus servidores leiam notícias de um jornal específico, enquanto os demais concorrentes estão dispensados de tal tratamento”.

A direção do Midiamax pediu que a ABI auxilie mais uma vez o jornal a encontrar os meios ideais para contornar a situação, “que tem provocado prejuízos ao livre e democrático acesso à informação pela coletividade”. Em atenção ao apelo, a ABI dirigiu o seguinte email ao Governador André Puccinelli: “É com grande desconforto que a Associação Brasileira de Imprensa se dirige a Vossa Excelência para lamentar e condenar a grave violação da liberdade de informação assegurada pela Constituição da República cometida por seu Governo através da Superintendência de Gestão de Informação, a qual se transformou num organismo que fere também a vedação constitu-

cional à discriminação de qualquer natureza, como a de que é vítima agora o jornal eletrônico Midiamax. Informações chegadas à ABI dão conta de que seu Governo proíbe que os servidores do Estado de Mato Grosso do Sul tenham acesso ao noticiário do jornal eletrônico Midiamax, enquanto os demais concorrentes desse veículo gozam com justiça da liberdade de informação garantida pela Constituição. A ABI espera que Vossa Excelência determine a imediata cessação das violências em curso, em respeito ao Estado Democrático de Direito que a Carta Magna de 1988 instituiu. Cordialmente (a) Maurício Azêdo, Presidente da ABI”.

A Voz do Brasil, além de ser o programa mais antigo do rádio brasileiro, cumpre uma função da mais alta relevância neste país continente. Em longínquos rincões dos Estados o acesso à informação se dá exatamente através da Voz do Brasil e no horário estabelecido há mais de 70 anos, ou seja, de 19 as 20 horas. Não se pode deixar de mencionar que o programa acumula três prêmios de jornalismo e é reconhecido como canal de acesso a informações preciosas e objetivas sobre o Governo, o Estado e a cidadania. Quem ouve A Voz do Brasil percebe muitas informações relevantes que não são apresentadas nos telejornalões. Ao contrário do que afirmam os proprietários de estações de rádio, A Voz do Brasil tem boa audiência. Segundo pesquisas, o maior índice ocorre nas Regiões Nordeste e Centro-Oeste, onde dois terços dos entrevistados pelo DataFolha disseram que ouvem regularmente A Voz do Brasil . Então, por que tanta mobilização contra, se muitos brasileiros nos mais diversos rincões só têm acesso à informação através da Voz do Brasil ? Por que tirar a fonte? Preferem os proprietários que os brasileiros se informem somente por seus noticiários, muitos deles deixando a desejar?

Por estas e muitas outras razões, apesar do silêncio dos grandes veículos de comunicação, que volta e meia dão espaço para os proprietários de rádio criticarem A Voz do Brasil, é fundamental que entidades representativas da sociedade brasileira, que não se dobram aos anseios do patronato, se manifestem. É o caso, por exemplo, de a Diretoria da Federação Nacional dos Jornalistas-Fenaj se manifestar em defesa da Voz do Brasil , até porque em seu último congresso, em agosto do ano passado, em Porto Alegre, a entidade aprovou tese em favor da continuidade do programa informativo no mesmo horário de sempre. Embora a pressão do patronato seja grande, a flexibilização não está decidida. Se a sociedade brasileira não for informada sobre o que está se passando no Congresso e ficar calada, os opositores da Voz do Brasil terão conquistado o que almejam há tempos. Mas se os senhores parlamentares que iniciaram os trabalhos agora em fevereiro refletirem um pouco mais, verão finalmente que a flexibilização não interessa ao povo brasileiro nem aos que entendem que o jornalismo é fundamental para o processo democrático. Para evitar a flexibilização do horário da Voz do Brasil é necessária a mobilização popular, com informação à opinião pública sobre tema tão relevante.

Querem sufocar A Voz do Brasil POR MÁRIO AUGUSTO JAKOBSKIND Neste período de férias e festas, quando os brasileiros não estão atentos aos acontecimentos e de um modo geral a mídia funciona a meio vapor, o Legislativo e o Executivo empurram na maciota questões no mínimo polêmicas e que deveriam passar por uma ampla discussão até serem transformadas em lei. Um desses pontos aprovados a toque de caixa é a decisão tomada pela Comissão de Ciência e Tecnologia do Senado de flexibilizar A Voz do Brasil . Ou seja, os parlamentares aprovaram que o mais antigo programa informativo do rádio brasileiro não precisará ir ao ar no horário estabelecido de 19h às 20h. Se os plenários do Senado e da Câmara dos Deputados, antes também a Comissão da Câmara, aprovarem, A Voz do Brasil poderá ser apresentada em outros horários. Só as rádios públicas continuarão no horário atual. Na verdade, o que os parlamentares mais desejam é acabar de uma vez por todas com A Voz do Brasil . Um detalhe: muitos desses políticos estão legislando em causa própria, ou seja, são proprietários de veículos de comunicação, o que é totalmente ilegal, pois a legislação brasileira proíbe que parlamentares sejam proprietários de veículos de comunicação. Na nova Legislatura 61 parlamentares são proprietários de veículos de comunicação, afora os que passaram a propriedade para “laranjas”. A flexibilização do horário é um sofisma, porque na prática representará o início do fim da Voz do Brasil , o que é desejado há tempos pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão-Abert. Tanto assim que em determinado momento o patronato do setor convocou até Caetano Veloso para falar contra A Voz do Brasil.

Flexibilização do horário? Quem vai fiscalizar se as mais de 5 mil emissoras de rádio em todo o País estarão de fato transmitindo em horários diferenciados? É óbvio que as emissoras privadas vão driblar a exigência. E ninguém vai reclamar e tudo ficará por isso mesmo. Não se trata de um exercício de futurologia, mas sim uma realidade advinda da prática neste tipo de questão. O esquema contra A Voz do Brasil é sofisticado. Na I Conferência Nacional de Comunicação-Confecom, realizada em dezembro de 2009, por exemplo, o patronato ganhou alguns aliados – que se dizem representativos dos movimentos sociais e que militam em áreas da comunicação – para a tese de flexibilização da Voz do Brasil . Um dos argumentos utilizados pelo patronato midiático é de que a obrigatoriedade da Voz do Brasil ocorre na esfera privada. O argumento não procede, até porque é importante lembrar que o espectro eletromagnético das emissoras de rádio e televisão pertence ao Estado brasileiro, que concede aos empresários o funcionamento das emissoras. O espaço em questão não é privado, como tentam demonstrar erradamente os proprietários à opinião pública. Isto é: TV Globo, Record, SBT etc. não são canais privados, que pertencem ao Estado brasileiro e podem ser teoricamente retirados se deixarem de cumprir algumas exigências determinadas pela legislação. Mas a renovação vem sendo automática, porque se por algum motivo não conseguirem gritarão que estão sendo objeto de censura ou algo do gênero. E terão apoios das mais diversas entidades, entre quais a Sociedade Interamericana de Imprensa-Sip.

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Liberdade de imprensa

Justiça manda União pagar por agressão Violência contra repórter-fotográfica é punida quase 12 anos depois. A 5ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região condenou a União a pagar uma indenização no valor de R$ 50 mil à repórter-fotográfica Elizabeth Sheila Campos Chagas, que trabalha como freelancer da Editora Abril. A multa refere-se à agressão física e verbal cometida contra a repórter por soldados do Exército durante a cobertura da festa de réveillon no Forte de Copacabana, em 1999, no Rio de Janeiro. Elizabeth fotografava atos de brutalidade dos militares contra um colega do Jornal do Brasil quando foi agredida. Eles queriam impedir que o fotógrafo do JB registrasse a queda de um toldo sob o qual estariam abrigadas autoridades convidadas, entre as quais o então Presidente Fernando Henrique Cardoso. No inquérito policial militar instaurado para apurar o caso, a União alegou que não havia provas técnicas que com-

Rússia liberta jornalista brasileiro O jornalista brasileiro Solly Harold Boussidan, que estava preso na Rússia desde o dia 28 de janeiro, foi libertado no dia 1º de fevereiro pelas autoridades do país. Ele é colaborador do jornal O Estado de S. Paulo e foi detido sob a acusação de exercer a profissão sem autorização. Boussidan disse que entrou na Rússia com visto de turista, mas informou às autoridades a sua profissão. Ele foi detido após visitar a cidade de Sochi, em busca de informações sobre os Jogos Olímpicos de Inverno de 2014. Suas credenciais foram questionadas pelas autoridades locais, que o obrigaram a cumprir até dez dias de prisão enquanto aguardava deportação. Ele ficou preso no centro de detenção de refugiados na Geórgia, com direito a apenas uma refeição por dia e sem tomar banho. Solly Boussidan classificou a sua prisão como “injusta e totalmente arbitrária” e criticou a decisão do juiz encarregado do caso: “Ele não levou em consideração o fato de que o Ministério das Relações Exteriores da Rússia se dispôs a emitir o credenciamento necessário”, reclamou. O Itamarati informou que, através da Embaixada do Brasil na Rússia, vai tentar a revogação da deportação de Boussidan.

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provassem a agressão e que os integrantes da Polícia do Exército-PE agiram “no estrito cumprimento do dever legal, com o intuito de manter a ordem e garantir a segurança do local”. O relator do processo, Desembargador federal Castro Aguiar, discordou e ressaltou em seu voto que o constrangimento sofrido pela repórter “é incontestável, uma vez que os referidos acontecimentos encontram-se amplamente documentados no inquérito policial militar e nos depoimentos acostados nos autos”. Diante de provas consideradas irrefutáveis, em seu voto o Desembargador afirma que fica caracterizada a responsabilidade civil da União “pelos atos ilegais e violentos praticados por seus agentes, e que por isso impõe-se sua condenação ao pagamento de indenização por dano moral, uma vez que houve lesão física e moral da autora”.

Polícia da Bahia prende as informações Veículos de comunicação da Bahia denunciam que a Secretaria de Segurança Pública do Estado restringiu a divulgação de ocorrências policiais na região após a publicação de matérias na imprensa sobre a escalada da violência em Salvador, onde foram registrados 30 casos de homicídio desde o início de janeiro, sendo 18 casos em apenas 24 horas. Informou o site Bahia Notícias que a Central de Telecomunicações das Polícias Civil e Militar, responsável pelos registros de ocorrências policiais no Estado, estaria proibida de passar informações para a imprensa. O jornal A Tarde, o principal do Estado, informou que a Secretaria de Segurança teria comunicado que os dados passariam a ser divulgados na internet, através da Superintendência de Telecomunicações. Entretanto, revelaram jornalistas, o site da Secretaria não exibe as informações, e os delegados estariam proibindo o atendimento a repórteres. A determinação teria sido estampada em cartazes nas delegacias. “Há seis dias, jornalistas que trabalham na Bahia travam uma árdua luta para garantir o direito de receber informações sobre as ações de segurança pública e os registros de ocorrência”, afirma o jornal Correio. Em entrevista ao jornal, a Secretaria de Segurança alegou que “não determinou mordaça alguma aos delegados e que os casos estão disponíveis para a imprensa”.

Jornalista agredido em Arraial do Cabo

Equipe da RBS é agredida e ameaçada

Agindo a mando de terceiros, como represália a denúncias publicadas pelo jornal, um homem branco ainda não identificado agrediu com socos e pontapés o jornalista Santiago Monteiro, fotógrafo e proprietário da Tribuna dos Municípios de Arraial do Cabo, na Região dos Lagos do Estado do Rio. A violência foi denunciada à ABI em email enviado no dia 4 de fevereiro por um dos integrantes da equipe do jornal, Luiz Antônio Oliveira. De formato standard e com circulação diária em toda a Região dos Lagos, no Médio Paraíba, na Costa Verde e no Norte do Estado do Rio, a Tribuna dos Municípios tem criticado a forma de governar do Prefeito Anderson Cardoso de Brito, conhecido como Andinho, a quem acusa de irregularidades e desídia, como a falta de infra-estrutura do Município, o abandono de praças públicas e falta de manutenção dos postes da iluminação pública, que já provocaram a morte de pessoas por eletrocução. “Governantes que há algum tempo atrás não tinham bem algum agora andam de carros importados”, diz a denúncia encaminhada à ABI. A agressão a Santiago Monteiro ocorreu na porta da Tribuna dos Municípios, que tem gráfica própria e completa 20 anos de fundação no dia 26 deste mês de fevereiro.

Uma equipe da RBS TV, afiliada da TV Globo em Santa Catarina, foi agredida e ameaçada no dia 6 de janeiro em Indaial, no Vale do Itajaí, onde realizava reportagem sobre uma denúncia do Ministério Público contra cinco empresários acusados de boicotar um shopping atacadista na cidade de Brusque. O repórter Francis Silvy foi agredido com socos no rosto e ameaçado sob a mira de uma arma, juntamente com o cinegrafista e o auxiliar, quando gravavam cenas externas no estacionamento do shopping. A equipe foi surpreendida por um dos proprietários do imóvel, o filho dele e um segurança. Armados com uma pistola, eles tentaram impedir o trabalho de reportagem e iniciaram a agressão. Para barrar a saída do carro da reportagem, fecharam um dos portões do estacionamento e quebraram o vidro traseiro do veículo. Os profissionais da RBS apresentaram queixa na Delegacia e se submeteram a exame de corpo de delito.

Apelo a Beltrame Solidária com Santiago, a ABI enviou mensagem ao Secretário de Segurança Pública do Estado, José Mariano Beltrame, pedindo providências para a realização de investigação visando à identificação e punição do agressor e seus mandantes. Diz a mensagem: “A Associação Brasileira de Imprensa encarece a Vossa Senhoria providências para a realização de investigação visando à identificação e punição do autor da violência contra o jornalista Santiago Monteiro, diretor da Tribuna dos Municípios de Arraial do Cabo, agredido a socos e pontapés no dia 4 passado por um homem branco que agiu a mando de terceiros, como represália a denúncia feita pelo jornal sobre irregularidades na administração municipal. Esse episódio constitui grave violação da liberdade de imprensa e não pode passar sem pronta e enérgica resposta das autoridades do Estado.”

Protestos Em comunicado oficial, a Associação Catarinense de Emissoras de Rádio e Televisão-Acaert repudiou a violência contra os profissionais e manifestou apoio e solidariedade à equipe. Também a Associaçao Catarinense de Imprensa-ACI condenou a agressão, em declaração do seguinte teor: “A Diretoria e o Conselho Superior da Associação Catarinense de Imprensa manifestam irrestrita e total solidariedade aos profissionais da RBS-TV, ao mesmo tempo que repudiam a lamentável e criminosa agressão sofrida por sua equipe de reportagem nesta quinta-feira, 6 de janeiro, quando investigava denúncias envolvendo empresários no Município de Indaial. Injustificável a atitude dos empresários, que revelaram falta de condições para conviver numa sociedade democrática. Há meios civilizados de garantir o direito ao contraditório e à defesa de todo cidadão que se sentir ofendido ou injustiçado. A ACI reforça seu compromisso com a imprensa livre e democrática. Florianópolis, 6 de janeiro de 2011. (a) Róger Bitencourt, Presidente em exercício da ACI; Déborah Almada, Vice-Presidente da ACI; Osmar Schlindwein, Presidente do Conselho Superior.”

Entidades repudiam ataques a jornalistas A organização não-governamental Repórteres Sem Fronteiras-RSF denunciou os ataques a dois veículos de comunicação registrados no México nos primeiros dias deste mês de fevereiro. No domingo, dia 9, duas granadas foram lançadas contra a sede da rede Televisa, em Piedras Negras, no Estado de Coahuila, mas os artefatos não chegaram a explodir. Dois dias depois, várias granadas foram lançadas contra as instalações do jornal Norte, no Sul de Monterrey, NuevoLeon. Ninguém ficou ferido. No Paraguai, a Sociedade Interamericana de Imprensa-Sip divulgou nota repudiando a violência contra a rede de TV Channel 9, em Assunção, um dia após a explosão de uma bomba de origem caseira na sede da emissora. As autoridades paraguaias investigam ainda a

origem de uma carta enviada à emissora contendo ameaças aos veículos de comunicação locais. De acordo com a agência Efe, a carta alerta que a imprensa é “um objetivo militar do Exército do Povo ParaguaioEPP e que será castigada por ser “cúmplice e protetora do atual Governo”. O Presidente da Sip, Gonzalo Marroquín, afirmou que “o ataque à emissora foi um ato profundamente repugnante e condenável contra a liberdade de expressão dos cidadãos e da imprensa”. No Brasil, a Rádio Sim (93.7 FM), de Mantena, MG, foi atacada com explosivos na noite do dia 13 de janeiro. A Policia local informou que os equipamentos foram destruídos e, na mesma noite, a residência do proprietário da emissora foi alvejada por cinco tiros.


Direitos humanos

A OEA CONDENOU O BRASIL Como era previsível, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos, condenou o Estado brasileiro pela morte e sumiço dos corpos de 62 militantes da Guerrilha do Araguaia.

O Brasil foi considerado culpado pelo desaparecimento de 62 pessoas envolvidas na guerrilha do Araguaia, entre os anos de 1972 e 1974, durante a ditadura militar. O julgamento foi anunciado no dia 16 de dezembro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San José, na Costa Rica. A possibilidade de condenação do Estado brasileiro foi antecipada pelo Jornal da ABI em sua Edição nº 354, de maio de 2010, cuja primeira página tinha esta manchete: Brasil réu na OEA. De acordo com a sentença, o Estado brasileiro “é responsável pela violação do direito à integridade pessoal de determinados familiares das vítimas, entre outras razões, devido ao sofrimento ocasionado pela falta de investigações efetivas para o esclarecimento dos fatos”. No Brasil a decisão foi saudada por entidades de defesa dos direitos humanos, como a ABI, o Grupo Tortura Nunca Mais e a OAB, cuja Seccional do Rio de Janeiro lançara em abril passado a Campanha pela Memória e pela Verdade, reclamando a abertura dos arquivos da repressão política da ditadura militar (1964-1985). A iniciativa conta com o apoio da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. O Presidente da Seccional da OAB/RJ, Wadih Damous, disse que a decisão vai reforçar a luta da entidade e que a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos deixa o Brasil em “uma posição desconfortável” porque a questão dos desaparecidos políticos é um gargalo da História recente do País. Damous criticou também a decisão do Supremo Tribunal Federal, em abril de 2010, que, por sete votos a dois, se manifestou contra a revogação da anistia para agentes dos órgãos de repressão

MARCELLO CASAL JR./ABR

P OR J OSÉ R EINALDO M ARQUES

mento, como conseqüência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de direitos humanos”. O Tribunal julgou que a Lei de Anistia, 6.683/79, é incompatível com o que determina a Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. De acordo com a sentença, com base no Direito Internacional, “a Corte Interamericana concluiu que as dispo-

sições da Lei de Anistia que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana e carecem de efeitos jurídicos”. Para Wadih Damous a iniciativa da Corte Interamericana de Direitos Humanos merece aplauso, porque atendeu à expectativa dos democratas. “Vamos ver agora como o Estado brasileiro se comporta diante dessa decisão”, declarou.

Um tremendo carão no Supremo Foi esse o sentido da decisão da OEA, diz a ABI. Wadih Damous: Vamos ver como o Estado brasileiro se comporta diante dessa decisão.

acusados de cometer crimes comuns durante a ditadura militar: “O Brasil até hoje não resolveu esse momento da sua História, não se tem notícias dos desaparecidos e mortos. Isso deixa o País em uma posição desconfortável, inclusive por causa, também, da infeliz decisão do STF, que entendeu que a Lei de Anistia abrange os torturadores”, afirmou Damous. Uma lei incompatível O Tribunal da Corte Interamericana de Direitos Humanos entendeu que a Lei da Anistia não pode continuar prejudicando as investigações que podem levar à identificação dos responsáveis pelos desaparecimentos. Segundo a sentença, o Brasil “descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instru-

A ABI divulgou no dia 15 de dezembro uma declaração de aplauso à decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos-OEA que condenou o Brasil por não ter punido os responsáveis pelas mortes e desaparecimentos ocorridos na guerrilha do Araguaia entre 1972 e 1974. Diz a declaração da ABI: “A Associação Brasileira de Imprensa aplaude a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos–OEA de condenar o Brasil por não ter punido os autores dos numerosos crimes de homicídio e de desaparecimento de cadáveres cometidos durante a Guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1974. Essa decisão da OEA constitui uma importante contribuição a luta travada no País para a punição dos autores desses crimes e para a revelação, em sua inteireza, dos autores desses delitos, quais foram suas vítimas e em que circunstânci-

as ocorreram. O Estado nacional está na obrigação de cumprir as determinações da OEA, sob pena de seus responsáveis se tornarem cúmplices dos delitos alcançados pela manifestação da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Adotada por sete juízes estrangeiros e um juiz ad hoc brasileiro, a decisão da OEA constitui também uma censura grave ao Supremo Tribunal Federal do Brasil, que em abril passado, com base num infeliz voto do então Ministro Eros Grau, pretendeu passar uma borracha sobre o passado e instituir a impunidade dos crimes que motivaram o pronunciamento da OEA, provocado pelo Centro Pela Justiça Internacional– Cejil, Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo, que há anos vêm lutando pela justiça sonegada pelo Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 2010. (a) Maurício Azêdo, Presidente”

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Direitos humanos Desaparecidos políticos: um inventário do que se sabe

Paulo Abrão agora também na Secretaria de Justiça Presidente da Comissão de Anistia foi convocado para assumir mais um encargo no Ministério da Justiça.

O professor e advogado Paulo Abrão, 35 anos, é o novo titular da Secretaria Nacional de Justiça, indicado pelo Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. A nomeação, publicada no Diário Oficial da União do dia 24 de janeiro, foi recebida com aplausos por quantos acompanham a trajetória de Abrão desde que o então Ministro da Justiça Tarso Genro o convocou para dirigir a Comissão de Anistia. Abrão foi mantido na presidência da Comissão de Anistia e vai acumular as duas funções. A Secretaria Nacional de Justiça, que engloba os Departamentos de Estrangeiros-Deest; o de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação-Dejus e o de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional-DRCI, tem por objetivo coordenar a política de justiça no Brasil, por meio da articulação com os demais órgãos federais e com o Poder Judiciário, o Poder Legislativo, o Ministério Público, os Governos estaduais, agências internacionais e organizações da sociedade civil. O órgão é responsável por assuntos relacionados à nacionalidade, naturalização e ao regime jurídico dos estrangeiros, bem como a classificação indicativa de obras audiovisuais (filmes, programas de televisão, dvd, bluray, jogos eletrônicos, de interpretação, mostras e festivais de filmes e vídeos. A Secretaria coordena a política nacional sobre refugiados e da promoção de ações no combate ao crime organizado e à lavagem de dinheiro; cria medidas para o enfrentamento do tráfico de pessoas e recupera ativos desviados por corrupção e outros atos ilícitos. Trabalho na Comissão Desde abril de 2007 Paulo Abrão está à frente da Comissão de Anistia, responsável por encaminhar ao Ministro da Justiça o parecer sobre a apreciação dos pedidos de reparação formulados por perseguidos políticos e demais pessoas atingidas por atos de exceção durante o período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988. A Comissão é formada por 24 conselheiros nomeados com vínculo direto ao Gabinete do Ministro da Justiça. Entre 2007 e 2010, foram criadas políticas de preservação da memória histórica e de educação para a democracia e os direitos humanos, como as Caravanas da Anistia, o projeto Marcas da Memória e o Memorial da Anistia do Brasil, centro de pesquisa e documentação em construção na cidade de Belo Horizonte. Nesse período foi colocada 34 Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

BRIZZA CAVALCANTE/AGÊNCIA CÂMARA

POR CLAUDIA S OUZA

O desempenho de Abrão na Comissão de Anistia credenciou-o para mais um cargo.

pela primeira vez, e de forma oficial pelo Estado brasileiro a discussão sobre o alcance da Lei de Anistia de 1979, em relação aos crimes de lesa-humanidade, como a tortura. Paulo Abrão é mineiro de Uberlândia, onde nasceu em 11 de junho de 1975. É professor licenciado da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e professor convidado do curso de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Brasília, doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2009), especialista em Direitos Humanos e Processos de Democratização pela Universidade do Chile (2010) e mestre em Direito pela Unisinos (2000). É também juiz do Tribunal para a Justiça Restaurativa em El Salvador (2009). Ele integrou a missão brasileira para a implantação da Universidade de Cabo Verde na África (2006), é membro do conselho editorial de diversas revistas científicas e organizador das obras Assessoria Jurídica Popular (Edipucrs), Diálogos em Direito Público (Edipucrs) e Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Americano (Universidade de Coimbra/MJ). Abrão ocupa a Secretaria Nacional de Justiça no lugar de Pedro Vieira Abramovay, que pediu exoneração do cargo no dia 21 de janeiro. A assessoria do Ministério da Justiça afirmou que Abramovay recebeu uma proposta de trabalho fora do Governo e por isso não assumiria o cargo de Secretário Nacional Antidrogas (Senad), para o qual fora indicado. A ver-

dade, porém, é que o Ministro José Eduardo Cardozo não gostou de uma entrevista em que Abramovay, sem consultá-lo, defendeu penas mais brandas para os pequenos traficantes. Nas drogas, Paulina A Senad, órgão que passou a fazer parte da estrutura do Ministério da Justiça no dia 10 de janeiro, será comandada pela assistente social Paulina do Carmo Arruda Vieira Duarte, 53 anos, no lugar do General-de-Divisão Paulo Roberto Yog de Miranda Uchôa. Especializada em psicologia social, mestre e doutora em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Paulina atua na Senad desde o início do Governo Lula, em 2003. Em 2007, assumiu o cargo de SecretáriaAdjunta do órgão. Paulina afirmou que a Senad pretende fortalecer o Plano Nacional de Enfrentamento ao Crack e outras drogas, promover a articulação entre as ações dos Ministérios da Saúde e do Desenvolvimento Social para o tratamento e a ressocialização de usuários; da Polícia Federal, no policiamento de fronteiras, e das Polícias estaduais, no combate ao tráfico urbano. Em parceria com o Conselho Nacional de Justiça, a Senad pretende capacitar os Juizados Especiais Criminais e as Varas da Infância e da Juventude para melhorar a comunicação com os usuários de drogas.

Reunidas em livro as informações que foi possível levantar sobre as vítimas da ditadura cujos corpos ainda não foram encontrados. P OR ALCYR CAVALCANTI

A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a Comissão de Anistia da Ordem dos Advogados do Brasil-Seção do Estado do Rio de Janeiro e os Deputados Alexandre Molon (PT-RJ) e Marcelo Freixo (PSOL-RJ) lançaram na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro-Alerj o livro Habeas Corpus - Que se Apresente o Corpo - A Busca dos Desaparecidos Políticos no Brasil. O livro sistematiza e resume as informações que foi possível colher ao longo de décadas a respeito da possível localização dos restos mortais de vítimas da ditadura, muitas vezes com datas e dados contraditórios entre si. O mérito cabe inteiramente ao esforço heróico dos familiares das vítimas, ex-presos políticos e ativistas que resistiram a décadas de portas fechadas, descaso, omissões e ameaças e até mesmo morte, como foi o caso de Zuzu Angel, mãe de Stuart Angel. Trata-se de uma obra dedicada a todos os que não esmoreceram e lutam até hoje para cultuar seus mortos. O passo mais abrangente foi o envio ao Legislativo em maio de 2010 do projeto de lei que institui uma Comissão Nacional da Verdade para esclarecer as violações de direitos humanos ocorridas nos 21 anos de regime ditatorial. O reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura já está consolidado. A mesa dos trabalhos foi composta pelo Ministro Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo Vanucchi; pelo Deputado Alexandre Molon (PT-RJ); Dira Paes, do Movimento de Humanos Direitos; Wadih Damous, Presidente da OAB-RJ; Paulo Abrão, Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça; Deputado Pedro Wilson (PT-GO); e Doutor Marco Antônio, representante da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos. Durante o evento, foi inaugurada exposição fotográfica em homenagem ao Deputado Rubens Paiva, um dos muitos desaparecidos durante o regime militar. Alcyr Cavalcanti, jornalista e professor, é membro do Conselho Deliberativo da ABI.


DIVULGAÇÃO

CRIATIVIDADE

A distração de Niemeyer: trabalho Aos 103 anos, Oscar Niemeyer não pára. Continua à frente de diversos projetos arquitetônicos e ainda aplica seu poder de criação em outras áreas, como a revista Nosso Caminho. E o samba. POR P AULO C HICO Aposentadoria? Nem pensar! Oscar Niemeyer vive seus 103 anos como sempre, isto é, em plena atividade. Como se não bastasse, além de projetos na sua área, como a nova sede da Fundação Oscar Niemeyer, inaugurada em dezembro de 2010, em Niterói, o mestre da arquitetura empresta seu talento a novas formas. Em sua última internação hospitalar, mostrou seu lado compositor, com o samba Tranqüilo com a Vida, feito em parceria com o enfermeiro Caio Almeida e, posteriormente, finalizado pelo jovem músico Eduardo Krieger. Sempre incansável, ele se revela entusiasmado com a revista Nosso Caminho, seu empreendimento na área editorial. “O trabalho me distrai. Quando vou fazer um projeto passo horas pensando nele. Para mim não é sacrifício. Cada problema que aparece é um esforço para resolver, e me agrada muito que eu ainda consiga fazer isso. O lançamento da oitava edição de Nosso Caminho, realizado em dezembro, marcou o seu segundo ano de existência. Os destaques desse número especial são o projeto de um centro cultural concebido para Avilés, na Espanha, diferentes trabalhos recentes que elaborei para o estrangeiro, incluindo o Museu de Arte Contemporânea, a ser construído em Ponta Delgada, nos Açores, e um aquário que desenhei para Búzios, além de artigos e crônicas sobre política, artes plásticas e ciência”, diz Niemeyer.

A Nosso Caminho corresponde a um antigo desejo de Niemeyer, que divide a direção editorial com a esposa, Vera Lucia. A revista é uma publicação trimestral e trilíngue – em português, com encarte em espanhol e inglês. Oscar participa ativamente das reuniões de pauta e escreve artigos e crônicas. O objetivo é atender aos interesses de estudantes e professores dos cursos de Arquitetura, além de divulgar projetos recentes de grandes arquitetos brasileiros e textos sobre esse campo de formação profissional. Também fazem parte da publicação artigos sobre as mais diversas áreas de conhecimento, como política, filosofia, literatura, artes plásticas e economia. Nesse número especial, além da publicação de projetos e croquis, a revista contou com a participação de importantes colaboradores, como o ex-Presidente de Cuba, Fidel Castro, que assina o artigo DIVULGAÇÃO

Um dos novos projetos de Niemeyer será construído no Casaquistão.

especial O Inverno Nuclear e a Paz. O escrico tempo para a leitura, que é um hábito tor uruguaio Eduardo Galeano escreveu ininterrupto e que busco estimular atraEl Reino Mágico e o próprio Niemeyer vés da revista que Vera e eu editamos com assina a crônica Por que Alfredo?. o maior interesse. E cuidar de sua edição “Ele gosta de manter a cabeça ocupaenvolve muitas tarefas”, confirma ele. da o tempo todo. Por isso nunca pensou Exemplares de Nosso Caminho podem em parar de trabalhar”, explica Vera ser solicitados pelo site (www.revista Lucia, com quem o arquiteto se casou nossocaminho.com.br) ao custo de R$ 30 em segredo aos 98 anos e que foi sua por exemplar. Vale destacar que a revista principal auxiliar por mais de dez anos. foi concebida nos moldes da Módulo, Talvez o que mais desperte a atenção publicação lançada por ele em 1955, exdos leitores da Nosso Caminho seja mestinta durante a ditadura militar, e que mo a oportunidade de entrar em contavoltou a circular entre 1975 e 1989.) to com estados brutos da arte. Isto é, Na composição em parceria com seu projetos ainda inéditos, muitos deles enfermeiro e Eduardo Krieger, a letra em plena execução, de Oscar Niefala sobre a simplicidade do carioca que meyer. Na edição anterior, já tinham vive na favela, sem perder a esperança no sido publicados quatro projetos inédifim das injustiças sociais. Os versos retos: a Câmara Municipal de Poços de Caldas, a UniversidaT RANQÜILO COM A VIDA de da Música e de Artes de AraOscar Niemeyer/Caio Almeida/Eduardo Krieger raquara, o Memorial a Ulisses Guimarães em Rio Claro e o Hoje em dia minha vida vai ser diferente Tribunal de Contas de RoraiCalça de pijama, camisa listrada, sandália no pé ma. Niemeyer ainda se dedica Andar pela praia vou fazer toda manhã a outras tarefas, como a consE até moça bonita vai ter se Deus quiser trução de uma igreja em Petrópolis e a reforma do SambódroVou parar nos cafés pra ouvir historinhas mo do Rio de Janeiro. Coisas da vida que um dia vão ter que mudar Nem a idade nem os probleQuero ser mulato que sabe a verdade mas que o levaram ao hospital E que ao lado dos pobres prefere ficar por várias vezes nos últimos anos – em 2010 passou por E assim vou eu duas cirurgias, para a retirada Tranqüilo com a vida da vesícula e de um tumor no À espera da noite já solta no ar cólon do intestino – impedem Como um manto de estrelas com que se anuncia que Niemeyer trabalhe norE se multiplica nas águas do mar malmente. “Por que seria diferente com Da minha favela eu olho os grã-finos o trabalho? Ele vive tranquilaMorando na praia, de frente pro mar mente, tem uma dieta normal Não devemos culpá-los e segue tomando seu vinho. A São prestigiados única mudança é que parou de Que um dia entre nós vão voltar a morar fumar há alguns meses”, garante Vera Lucia. O próprio Niemeyer, que afirma trafletem o humanismo do ativista que se balhar pelo menos oito horas por dia, remantém fiel ao comunismo, mesmo conhece que o volume de trabalhos asapós a queda do Muro de Berlim e do fim sumidos não tem diminuído nem a da União Soviética. Vera Lucia se apresquantidade de pessoas que o procuram sa em afirmar que esta não é a primeira para falar sobre arquitetura. O resultainvestida de Niemeyer no universo do é que ele nem sempre consegue dar musicial. “Em 1962 ele lançou uma canconta e responder a todas as solicitações ção que chegou a ser conhecida como o feitas por e-mail. Samba do Arquiteto”, conta. “Não deixo de acompanhar, com todo Nas pranchetas, nas composições e nas o cuidado, o desenvolvimento dos meus páginas da revista, Oscar Niemeyer segue projetos, muitos em fase de execução adiseu caminho. Fecundo. Genial. Em pleantada. Infelizmente, tem sobrado pouna atividade. Tranqüilo com a vida. Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

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FOTOGRAFIA

Thomaz Farkas

A Caravana

UM LOBO EM PELE DE FOTÓGRAFO Aos 86 anos, um dos maiores fotógrafos do País lança livro com fotos inéditas, expõe trabalhos históricos, elogia a tecnologia digital mas continua de Rolleiflex a tiracolo. “Profissional? Eu nunca fui fotógrafo profissional. Nunca recebi pagamento nenhum por nenhuma fotografia que eu tivesse feito. Sempre fui amador. “ Esta afirmação feita ao Jornal da ABI, por mais estranha que possa parecer, é de Thomaz Farkas, simplesmente um dos maiores fotógrafos do Brasil, em todos os tempos. Fotógrafo, sim. Mas amador. E talvez esta seja uma boa oportunidade para resgatar o verdadeiro significado desta palavra: amador, aquele que ama o que faz. Nestes tempos de profissionalismo exacerbado, de uma soberba supostamente profissional que tem feito despencar a qualidade da nossa imprensa, vale lembrar o verdadeiro significado de “fazer com amor”. Com uma qualidade surpreendentemente “amadora” que pode ser verificada na exposição Thomaz Farkas: Uma Antologia Pessoal, em cartaz até 3 de abril no Instituto Moreira Sales de São Paulo. A mostra abrange mais de 40 anos de produção, expondo tanto fotografias já conhecidas do público, como raridades inéditas garimpadas pelos filhos João e Kiko, e também pela curadoria do IMS, cujo acervo abriga nada menos que 34 mil imagens clicadas por Farkas. Além da exposição, a curadoria também rendeu um belíssimo livro homônimo deste fotógrafo que alega ter “hipossulfito de sódio no sangue” e que faz questão de explicar: “É um produto químico que se usa na fixação da fotografia, após a revelação. Meu pai tinha uma loja de material fotográfico, a Fotoptica, que foi onde tudo começou. Sempre fui fotógrafo na minha vida”, conta Farkas. Uma vida iniciada em Budapeste, Hungria, em 1924. Ainda criança, aos seis anos de idade, Thomaz Jorge Farkas imigra com a família para São Paulo. Na verdade, seu pai estava retornando ao Brasil para reassumir a loja “onde tudo começou”, que havia fundado anos antes. Na cidade que começava a se agigantar, uma obra enorme, onde centenas de operários movimentavam toneladas de ferro e cimento nas encostas de um belo vale, chamou a atenção do jovem Thomaz. Era neste monumental canteiro de obras que ele e seus amigos, autodenominados de “Esquadrilha Invencível”, iam brincar com suas intrépidas bicicletas. Demorou algum tempo para que todo aquele cimento, ferro e lama se transformasse no Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, o popular Pacaembu. “Eu sempre morei perto do Pacaembu”, lembra Farkas. “Fotografei toda a 36 Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

FRANCISCO UCHA

P OR C ELSO S ABADIN

Farkas e sua inseparável e fotogênica cadelinha durante seu depoimento para o Jornal da ABI.

construção e a inauguração do estádio por puro interesse pessoal. Fiquei amigo dos porteiros e entrava sem pagar, tanto para fotografar, como para torcer”. Por qual time? “Corinthians”, revela com leve sorriso. Ainda adolescente, Farkas se associa ao Foto Cine Clube Bandeirantes, importante centro de difusão da cultura visual de São Paulo, ponto de encontro de fotógrafos, cineastas e estudantes. Viaja aos Estados Unidos e conhece ao vivo fotógrafos que aprendeu a admirar enquanto folheava revistas importadas. De volta a São Paulo, continua a fotografar, sempre por conta própria, a vida sociocultural da cidade, registrando balés, esportes, cenas do cotidiano e o DIVULGAÇÃO

crescimento da capital paulista. Expõe em salões e galerias até ganhar, aos 25 anos, sua primeira individual: Estudos Fotográficos, no Museu de Arte Moderna de São Paulo-Mam. Sete de suas imagens entram para o acervo do Museum of Modern Art-MoMa de Nova York. Nos anos 50, o amador vira professor de fotografia. E no Museu de Arte de São Paulo-Masp. Demonstra também interesse por cinema, em parte motivado pela experiência da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, cujos estúdios na vizinha São Bernardo do Campo visitava com alguma freqüência. Com toda esta inclinação e talento para as artes visuais, era evidente que Thomaz Farkas acabasse se graduando, em 1953, em... Engenharia Mecânica e Elétrica na Politécnica da Usp! Como assim? Explica-se: na conservadora São Paulo quatrocentona, cursos de Comunicação e similares não eram vistos com bons olhos pelas famílias tradicionais. Fotografia, cinema, artes, teatro... tudo podia ser muito pitoresco e divertido, mas não eram profissões de gente “de bem”. Talvez até por isso o Grêmio Politécnico da Usp, naquele momento, acabou se transformando num intenso centro de produção cultural, alavancado por dezenas de estudantes que, assim como Farkas, viviam uma inquietação artística que precisava ser canalizada para outras atividades. Era comum que aqueles futuros engenheiros promovessem, por exemplo, ciclos de cinema polonês alternativo.

Esse clima cultural somado com a inquietação natural de Farkas fez dele um produtor de cinema. “O que me motivou a conhecer novos cineastas brasileiros e a financiar documentários foi o meu interesse em viajar e conhecer o Brasil. E eu, como herdeiro da Fotoptica, provavelmente era a única pessoa com condições para isso”, diz Farkas, sem nenhuma falsa modéstia. Cria-se então um movimento de enorme importância no cenário cultural brasileiro que recebeu o nome de “Caravana Farkas”. Durante os anos 1960 e 1970, capitaneados pelo “herdeiro da Fotoptica”, diversos cineastas passam a mapear as mais variadas regiões de um Brasil de profundas diferenças e transformações. Entre eles, Eduardo Escorel, Maurice Capovilla, Francisco Ramalho Jr., Paulo Gil Soares, Geraldo Sarno, Affonso Beato, hoje trabalhando na Europa, e até Vladimir Herzog ajudando na produção. “O grupo andava pelo Brasil, em peruas, filmando tudo. Nós tínhamos as idéias, mas não os roteiros prontos. Alguns geógrafos ajudavam na programação daquilo que nos interessava mais de perto. Por causa de custos, filmávamos em preto e branco e em 16 milímetros, porque para fazer colorido era necessário mandar revelar no exterior, o que sairia muito caro. Eu era filho único, meu pai sempre me apoiava muito e me deixava usar o dinheiro da loja”, explica Farkas. A experiência foi fundamental para o fotógrafo e agora produtor: “Para mim, conhecer o Brasil era muito importante. Mesmo tendo chegado aqui muito criança, não há como negar que eu era estrangeiro, e como estrangeiro eu queria muito conhecer o País que eu havia adotado. Com a Caravana, viajei muito, gostei muito do Norte e do Nordeste, acompanhei de perto as mudanças de clima, percorri todo o Sul, o Sudeste, me encantei com as plantações de café. Me apaixonei pelo Brasil. Esta descoberta do País foi muito marcante e muito importante para mim”, afirma. A empreitada rendeu 19 documentários, vários deles premiados em festivais nacionais e internacionais. Todos de fundamental importância para o estudo da cultura brasileira e cultuados por pesquisadores. Assim como acontece até hoje com boa parte dos bons filmes feitos no Brasil, esses documentários também não foram exibidos nos nossos cinemas. As projeções ficaram restritas a escolas, universidades, cineclubes e cinematecas; jamais chegaram ao grande público. Em 1969, Farkas passa a lecionar fotografia na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo-Eca/ Usp, onde desenvolve tese de doutorado sobre os métodos de realização de seus documentários. No ano seguinte lança a revista Fotoptica, abrindo espaço para ensaios de fotógrafos brasileiros e estrangeiros. Essa janela de exposição é ampliada ainda mais com a inauguração, em 1979, da Galeria Fotoptica, pioneira na divulgação e comercialização de fotografias no País. Em 1993 assume a direção da Cinemateca Brasileira de São


FOTOS DESTA PÁGINA: THOMAZ FARKAS/ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES

Paulo e em 1997 lança o livro Thomaz Farkas, Fotógrafo, simultaneamente à exposição homônima no Masp. Já no novo século, em 2005, a Pinacoteca do Estado de São Paulo inaugura a exposição Brasil e Brasileiros no Olhar de Thomaz Farkas, que apresenta pela primeira vez imagens coloridas feitas nas décadas de 1960 e 1970. No ano seguinte, parte dessas fotos é reunida no livro Thomaz Farkas, Notas de Viagem. O custo do ingresso para visitar a nova exposição, Thomas Farkas: Uma Antologia Pessoal, é a mesma quantia que Farkas recebeu profisionalmente em sua carreira de fotógrafo “amador”: nada.

Foto tirada em 1964 na várzea do Rio Tietê durante filmagens do documentário Subterrâneos do Futebol, do qual Thomaz Farkas foi fotógrafo. Abaixo, uma visão da escadaria da Galeria Prestes Maia, ambas em São Paulo.

CLIC RÁPIDO COM THOMAZ FARKAS A DITADURA MILITAR PREJUDICOU A FOTOGRAFIA NO BRASIL? Não muito. A Polícia era muito vagabunda.

CINEMA BRASILEIRO: O momento é muito bom, com todo mundo trabalhando, todo mundo com um filme pra fazer. Mas hoje eu me interesso pelo cinema brasileiro como público, não como profissional.

SUSTENTO PESSOAL: Eu só tive um único emprego remunerado na vida: trabalhar na Fotoptica.

FOTOGRAFIA DIGITAL: Acho ótimo que hoje qualquer criança possa ter uma máquina digital, dessas pequenas, porque isso desenvolve o senso artístico da pessoa. A fotografia é muito importante na vida de todos.

SUA CÂMERA, HOJE: É a velha Rolleiflex. Sempre saio com ela, até hoje. Continuo fotografando sempre. Não comprei câmera nova, mas se comprasse seria digital.

DEFINA FARKAS: Farkas? Significa “lobo” em húngaro...

Acima, a primorosa estética de uma foto no Mirante do Trianon, em São Paulo. Ao lado, salto ornamental na piscina do Estádio do Pacaembu, do qual Farkas era vizinho. Ambas as fotos são de 1945. No Rio de Janeiro, no ano seguinte, Farkas clicou a sombra de seu amigo, o fotógrafo José Medeiros, conseguindo um efeito de grande plasticidade (acima, à direita).

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EXPOSIÇÕES ocalizado na Rua Marquês de São Vicente, 476, na Gávea, o Instituto Moreira Sales-IMS deveria fazer parte do roteiro obrigatório de visitas para cariocas e turistas. Não apenas pela bela casa sinuosa, mas sobretudo pelo que conserva em seu interior. Fundado em 1990 pelo banqueiro e Embaixador Walther Moreira Sales, morto em 2001, o IMS desenvolve e promove programas culturais. Seu acervo reúne cerca de 550 mil fotografias, 100 mil músicas, biblioteca com 400 mil itens e pinacoteca com mais de 3 mil obras. Pois o Instituto abre suas portas e abriga três exposições imperdíveis, que exploram video-retratos produzidos pelo artista norte-americano Robert Wilson, flagrantes dos foliões e do Carnaval carioca e os retratos da Família Imperial brasileira. Nos três casos, a entrada é franca; a classificação, livre.

Imagens em três atos

L

A noite de abertura da exposição contou com a exibição do documentário ArtIn-Progress (sobre a produção dos Video Portraits) e a palestra do crítico de arte Rodrigo Naves. “Os registros do artista têm algumas coisas muito próximas da pop art, pois ele trabalha, por vezes, com ícones da cultura, em imagens de altíssima definição. Há cenas que lembram um pouco Andy Warhol, com pequenas sutilezas de iluminação e movimento, reconquistando a capacidade de interpretação. O trabalho dele provoca a rediscussão disso, pois parte de imagens muito poderosas e, por meio de códigos, nos traz a capacidade de olhar novamente o mundo”, contextualiza Rodrigo Naves, que é também conselheiro de artes visuais do IMS e historiador. A exposição é formada por 14 videoretratos em alta definição, produzidos pelo artista norte-americano, considerado de vanguarda no teatro e nas artes visuais. Produzidos a partir de uma parceria entre Robert Wilson e a Voom HD Networks, extinta empresa dedicada a canais de tv em alta definição, os Video Portraits são retratos de celebridades e anônimos caracterizados por um formato que vai além da fotografia e inclui elementos do cinema e do teatro, além da literatura e da música. As criações de Wilson possuem uma linguagem de movimentos mínimos e coreografados, somados a arranjos cenográficos sofisticados. Nascido em 1941, em Waco, Texas, Robert Wilson foi educado na Universidade de Texas e no Brooklyn’s Pratt Institute, onde desenvolveu interesse por arquitetura e design. Estudou pintura com George McNeil em Paris e, mais tarde, trabalhou com o arquiteto Paolo Soleri no Arizona. Mudou-se para Nova York na metade dos anos 1960. Na exposição em cartaz no IMS, há video-retratos de artistas como o chinês Zhang Huan, que permanece imóvel com um enxame de borboletas ao seu redor; e dos atores Brad Pitt, Winona Ryder e Johnny Depp, exibidos em telas de até 1,5 metro de altura. Robert Wilson recebeu por duas vezes os Prêmios Rockefeller e Gugge38 Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

P OR P AULO CHICO VIDEO PORTRAITS DE ROBERT WILSON SÃO PRODUZIDOS POR DISSIDENT INDUSTRIES INC.

VIDEO PORTRAITS DE ROBERT WILSON

O Instituto Moreira Sales, no Rio de Janeiro, promove três exposições que revelam ao público o poder das imagens do norte-americano Robert Wilson e registros históricos do Carnaval carioca e da Família Imperial brasileira.

Porto, interpretada por Orlando Silva; Tem Gato na Tuba, de 1947, de Alberto Ribeiro e João de Barro, gravada por Nuno Roland; Teu Cabelo Não Nega!, de 1931, dos Irmãos Valença e Lamartine Babo, cantada por Castro Barbosa, entre muitas outras marchinhas, que farão parte da exposição como música-ambiente, dando o clima típico de carnaval. Os visitantes podem ver edições especiais de publicações da época, como a revista O Cruzeiro, assim como partituras de importantes compositores brasileiros, como Lamartine Babo. “Sem dúvida, essa é uma exposição que homenageia o folião e o Carnaval, sendo montada com o mesmo espírito festivo que caracteriza essa festa popular”, diz Sérgio Burgi.

RETRATOS DO IMPÉRIO E DO EXÍLIO nheim. Em 1986, foi o único indicado ao Prêmio Pulitzer em drama, por The Civil Wars. A França nomeou-o Comendador de Artes e Letras em 2002. Em 2009, foi premiado com o Hein Heckroth Price pelo seu Projeto Gieben e a Medalha de Artes e Ciências de Hamburgo. Matthew Shattuck e Noah Khoshbin são os curadores da mostra, que já passou por Berlim, Milão, Nova York, Moscou, Miami, Praga, São Paulo e Porto Alegre.

ATÉ QUARTA-FEIRA! O FOLIÃO E O CARNAVAL CARIOCA Com curadoria do Coordenador de Fotografia Sérgio Burgi e do consultor do IMS Paulo Roberto Pires, essa mostra oferece um panorama documental e histórico do Carnaval do Rio de Janeiro desde os anos 1910 até meados da década de

1950. Sob o ponto de vista do folião, foram reunidas 50 imagens de importantes fotógrafos do acervo do Instituto que já registraram o Carnaval da cidade – entre eles Augusto Malta, Marcel Gautherot, José Medeiros, Carlos Moskovics e Peter Scheier. “Sobretudo o período documentado pelo Augusto Malta é muito rico. Nos anos 1940 e 1950, a fotografia começou a ter um perfil de documentação jornalística. Nas fotos que fazem parte da exposição – que, não por acaso, está em cartaz justamente no período de Carnaval –, é possível ver flagrantes do antigo carnaval de rua que, após a decadência iniciada nos anos 1980, renasce no Rio. Há registros ainda sobre os grandes bailes e o início da profissionalização e estruturação dos grandes desfiles”, conta o museólogo Sérgio Burgi. Também estão na mostra gravações históricas que embalaram os chamados antigos carnavais, como A Jardineira, de 1938, de Benedito Lacerda e Humberto

Imagens inéditas da Família Imperial brasileira estão reunidas nesta mostra. São reveladas ao público 150 fotografias pertencentes ao acervo do Príncipe Dom João de Orleans e Bragança, curador da mostra ao lado de Sérgio Burgi. Compõem a exposição retratos da Família Imperial, muitos inéditos – em especial do período do exílio após a proclamação da República. Há registros de imagens de importantes eventos que marcaram o Império, como as comemorações do fim da guerra do Paraguai e a abolição da Escravatura. Os visitantes podem conferir registros de Marc Ferrez, agraciado pelo imperador com o título de Cavaleiro da Ordem da Rosa e fotógrafo da Marinha Imperial, e Revert Henry Klumb, professor de fotografia das Princesas Isabel e Leopoldina. Ambos mantiveram uma relação muito próxima com a Família Imperial – fotografaram momentos de maior privacidade no interior dos palácios, registrando imagens menos formais, em que os retratados se relacionam com a câmera de uma forma direta e


Trabalhos da década de 1950 de Carlos Moskovics (acima à esquerda) e José Medeiros (acima ao centro) estão na exposição sobre o Carnaval carioca. Do acervo de Dom João de Orleans e Bragança sob a guarda do Instituto Moreira Sales, pode-se apreciar a fotografia que Alfred Fillon fez do Imperador D. Pedro II em Lisboa por volta de 1876 (acima, à direita) e esta ao lado, do fotógrafo P. Gavelle, que esteve no Castelo d'Eu, na Normandia, França, para fotografar a Princesa Isabel e o Conde d'Eu no exílio, em 1919.

menos mediada pelas exigências do cargo e da vida pública. “Inicialmente, a fotografia basicamente fazia o mesmo papel daqueles quadros à óleo, com as figuras do Império sérias, colocadas em pose. Isso era mesmo uma tradição na época. Mas aos poucos a facilidade do registro fotográfico aumentou a possibilidade de a Família Imperial se retratar. Assim, esses profissionais captaram outras coisas mais corriqueiras, com

Na mostra Video Portraits de Robert Wilson, imagens como a da atriz Jeanne Moreau (à esquerda), do artista plástico Zhang Huan e do ator Johnny Depp (página oposta), são acompanhadas de músicas e textos narrados pelo autor.

maior naturalidade na expressão dos olhares, nos flagrantes do cotidiano. A fotografia começava a derrubar a imagem posada, que mais dissimulava o personagem retratado, e não o revelava ao natural, por inteiro. Com as fotos, passamos a ver mais as pessoas, e menos os personagens”, diz Sérgio Burgi. Também estão na mostra imagens de Alberto Henschel, Joaquim Insley Pacheco, Luiz Terragno, Otto Hess, entre os diversos fotógrafos atuantes no Brasil que integram o acervo, além de imagens dos fotógrafos retratistas europeus Félix Nadar e John Jabez Edwin Mayall, entre outros. O acervo de Dom João de Orleans e Bragança é composto por 781 itens, com fotografias originais de época e negativos em vidro reunidos por Dom Pedro II, pela Princesa Isabel e por seus descendentes. Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

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Livros

João, para sempre, do Rio Relançamento de biografia volta a chamar a atenção sobre a inigualável obra de João Paulo Barreto. Mais conhecido como João do Rio, este jornalista, cronista, escritor e teatrólogo foi um dos mais influentes brasileiros do início do século 20 e ajudou a estabelecer novas práticas e padrões no jornalismo. Nem por isso, ou talvez por isso mesmo, deixou de ser vítima de preconceitos e agressões. FOTOS: DIVULGAÇÃO

com personalidades. Desempenhou papel fundamental para o desenvolvimento da imprensa como um todo. Prova disso foi o empréstimo por ele concedido a Irineu Marinho, em 1911, que viabilizou o lançamento do jornal A Noite – embrião do que se transformaria nas Organizações Globo. Ainda foi fundador e primeiro diretor da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais-Sbat, em 1917. O mais espantoso na obra de João do Rio é o volume de produção, sendo este conciliado com qualidade primorosa do texto. Também é digna de nota a combinação exata do coloquial com o erudito, da reportagem com a literatura. “Seu melhor período, a meu ver, foi quando trabalhou na Gazeta de Notícias, de 1904 a 1915. É o tempo da juventude, das novidades, das inovações, da curiosidade. Foi ali que se tornou não apenas famoso, como popular. Nesse período foi eleito para a Academia Brasileira de Letras-ABL, tornou-se autor teatral de sucesso e lançou contos e novelas. Começou repórter e saiu como editor-geral”, conta João Carlos Rodrigues. Depois João do Rio foi para O Paiz, então o maior jornal da América do Sul. No último ano de vida, fundou seu próprio jornal, A Pátria, no Largo da Carioca. Morreu subitamente dentro de um táxi, em 1921, aos 39 anos. Teve um dos maiores enterros da História do Rio. Estima-se que cerca de 100 mil pessoas tenham comparecido à cerimônia, numa época em que o Rio contava, aproximadamente, um milhão de habitantes. Havia representantes de todas as camadas sociais – moradores de favelas e de palacetes. Uma prova da diversidade de ambientes pelos quais o cronista transitava livremente.

P OR P AULO C HICO “Ele foi um dos maiores jornalistas brasileiros de todos os tempos. Primeiro, pelas inovações que trouxe à imprensa, principalmente a reportagem e a entrevista, então novidades. E também pela dedicação à crônica, gênero ao qual renovou e deu formato definitivo”. A afirmação, longe de qualquer exagero, define com exatidão a importância de João Paulo Barreto – mais conhecido como João do Rio. A avaliação é feita por João Carlos Rodrigues, autor da mais festejada biografia do cronista carioca, que traduziu como ninguém as ruas do Rio de Janeiro do início do século 20. João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto nasceu em 5 de agosto de 1881, relativamente pobre, e acabou consideravelmente rico pelo próprio trabalho. Foi um dos poucos intelectuais brasileiros que nunca tiveram emprego público – fugindo do padrão da época, segundo o qual era comum que pessoas destacadas ocupassem cargos em governos e instituições estatais. Nasceu na Rua Buenos Aires, perto do Campo de Santana. Viveu e trabalhou no Centro, na região onde hoje é a Cinelândia, depois na esquina da Avenida Gomes Freire com a Avenida Mem de Sá, em plena Lapa. Em 1916 mudou-se para Ipanema, então pouco mais de um areal distante. Em todas essas andanças pela cidade, foi um pioneiro. Gostava de passear a pé pelas ruas sem direção, descobrindo coisas, endereços e personagens. Assim conheceu e escreveu sobre casas de ópio, centros de candomblé, cordões carnavalescos, favelas, prisões e outros locais pouco comuns. Gostava do povo, dessa mistura de raças e culturas que forma o Brasil. E do Rio de Janeiro em particular. A estréia, aos 18 anos

Em 1º de junho de 1899, com 18 anos incompletos, teve seu primeiro texto – uma crítica sobre a peça Casa de Bonecas, de Ibsen, em cartaz na cidade – publicado em A Tribuna. Entre 1900 e 1903 colaborou com vários órgãos da imprensa do Rio, como O Dia, Correio Mercantil, O Tagarela e O Coió, assinando seus textos com 40 Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

Preconceitos de toda ordem

mais de dez pseudônimos diferentes. Foi indicado por Nilo Peçanha para a Gazeta de Notícias, onde permaneceria por mais de uma década. E onde, finalmente, passou a assinar João do Rio, como passou a ser efetivamente conhecido. “Esse pseudônimo, que acabou ofuscando seu nome verdadeiro, foi criado em 1904 e é seguramente inspirado num jornalista francês do Le Figaro, NapoléonAdrian Marx, que usava o codinome de ‘Jean de Paris’ e escrevia sobre a capital francesa. Daí veio a inspiração para a inclusão do nome da cidade em sua assinatura”, conta João Carlos Rodrigues, autor de João do Rio – Vida, Paixão e Obra, biogra-

fia originalmente publicada em 1996, recentemente revista, ampliada e relançada pela editora Civilização Brasileira. Poucos sabem mas, ao profissionalizar-se, Paulo Barreto representou o surgimento de um novo tipo de jornalista na imprensa brasileira do início do século passado. Até então, o exercício do jornalismo e da literatura por intelectuais era encarado como uma espécie de “bico”, uma atividade menor para pessoas que possuíam muitas horas vagas. João do Rio, no entanto, construiu sólida carreira no meio e manteve-se somente com o que escrevia. Instituiu novas práticas nas Redações, como as grandes entrevistas

João do Rio ascendeu socialmente, conquistando a fama e o ódio de alguns inimigos. Sofreu preconceitos de ordem racial e sexual. Quando, por exemplo, tentou ingressar no Itamarati, teve sua recusa fundamentada pelo Barão do Rio Branco, que afirmou tratar-se de um ‘gordo, amulatado e homossexual’. O escritor Humberto de Campos fez campanhas agressivas na imprensa da época, focando a sua opção sexual –, o que provocou embates públicos entre os dois. Eleito para a ABL em sua terceira tentativa, em 1910, João do Rio foi o primeiro a tomar posse usando o hoje famoso ‘fardão dos imortais’. Anos depois, com a eleição de Humberto de Campos para a ABL, afastou-se da instituição.


“A ficção de João do Rio pode ser enquadrada na escola decadentista, que floresceu no final do século 19 e perdurou até os anos 1920. Ela se caracteriza pela ironia ferina e pelo estilo rebuscado do artnouveau. Oscar Wilde foi seu nome principal – e João do Rio era seu fã. Podemos perceber a homossexualidade através de seu texto, cheio de paradoxos. Isto é, mais pelo estilo do que pela temática. Quanto à descendência africana, vinda do lado materno, ela surge no jornalismo. Ele não se considerava negro, nem parecia ser pelas fotografias – era um mulato claro. Isso, porém, não o impediu de defender os direitos e a cultura afrobrasileira. As reportagens sobre o candomblé, feitas em 1904 na série sobre religiões do Rio, têm grande importância etnográfica, pois foram as primeiras descrições desses rituais publicadas na grande imprensa, fora das colunas policiais”, observa João Carlos. Também seu posicionamento político foi controvertido. No jornal A Pátria, buscou defender os interesses dos ‘poveiros’, pescadores lusos oriundos, em sua maioria, de Póvoa de Varzim, a terra de Eça de Queirós. Eles abasteciam de pescado a cidade do Rio de Janeiro, mas sua atividade estava ameaçada por uma lei de nacionalização do setor, e sua exploração passaria a ser exclusividade dos brasileiros. Ao defender os pescadores portugueses, João do Rio conquistou inimigos, ofensas e sofreu até agressões físicas, como no episódio em que, surpreendido enquanto almoçava sozinho num restaurante, foi espancado por nacionalistas representantes da extrema direita da época. O que começar a ler

O autor de João do Rio – Vida, Paixão e Obra, biografia de 308 páginas, indica, a pedido do Jornal da ABI, quais livros podem servir de introdução àqueles que não resistirem à curiosidade de mergulhar na obra desse jornalista, cronista e escritor. “Sugiro começar com A Alma Encantadora das Ruas, que são crônicas e reportagens interessantíssimas sobre o Rio e os cariocas. No que se refere à ficção, Dentro da Noite, uma coletânea de ótimos contos mórbidos, onde se destaca O Bebê de Tarlatana Rosa, hoje um clássico da literatura nacional. E também As Religiões no Rio, obra cuja leitura deveria ser obrigatória em todo os cursos de Jornalismo. Ninguém vai achar esse material chato ou pesado. Os textos são impressionantemente atuais. E deliciosos”, garante. A homossexualidade do biografado foi um fator que ajudou João Carlos quando da pesquisa para o livro. “Para sorte minha, João do Rio, como filho único e homossexual, não deixou herdeiros. Assim, escapei de ser enquadrado na abominável lei dos ‘direitos de imagem’. A obra dele estava em domínio público e boa parte inédita em livro. Ao consultar sua bibliografia, publicada

pelo Arquivo Geral da Cidade do Rio, descobri que a cronologia real não correspondia à da biografia existente, de Raimundo Magalhães Júnior (A Vida Vertiginosa de João do Rio). Resolvi, então, fazer uma nova biografia, com auxílio de uma Bolsa Vitae de Literatura. Foi publicada em 1996, pela Topbooks, e muito atacada por setores conservadores da crítica, mas tornou-se obra de referência. Essa nova edição é atualizada, corrigida, melhorada e modificada em 80% do texto. É realmente um novo livro, e bem melhor.” Qual seria, então, na visão de João Carlos Rodrigues, a grande herança deixada por João do Rio? “Ele nos deixou três legados: mostrar ser possível a ascensão social através do

trabalho honesto; renovar a imprensa brasileira do ponto de vista técnico e estilístico; ter a coragem de manter seus pontos de vista diante de grandes dificuldades, pagando isso com a própria vida”, resume. A crônica, agora

E por qual razão a crônica, principal trunfo de João do Rio, parece ter caído em desuso – ou em profundo empobrecimento? Por que não mais se fazem cronistas como antigamente? O que mudou mais: as cidades, os cronistas ou o próprio gênero entrou em colapso? “Ainda existem cronistas nos jornais de hoje, e os blogs da internet também são, de certa forma, crônicas. O que eu acho que mudou para pior não é a crônica como gênero, mas os cronistas. Antes eram intelectuais boêmios... Hoje pensam pequeno, são provincianos, pequeno-burgueses. Ou, então, modernosos. Querem ser modernos. Ou simplesmente chatos. Parece nhenhenhém de solteirona, tipo ‘ai, meus tempos’. E aí desfiam uma série de nomes de produ-

tos ou filmes ou músicas de antigamente, achando que estão fazendo crônica de época”, critica João Carlos Rodrigues, que segue em sua análise. “Os cronistas de hoje não criticam nada, não atacam nada e pouco observam ao seu redor, afora o próprio umbigo. Não andam de ônibus, nem de metrô, não entram em fila de banco, não freqüentam botequim de esquina. Parece uma ação entre amigos. Ou ficção científica. Eles parecem estar lá pelas amizades que têm e não pelo talento, que lhes falta. Puro desperdício de papel. Deve haver exceções, mas não me lembro de alguma. Os melhores cronistas cariocas continuam sendo João do Rio, Nélson Rodrigues e José Carlos de Oliveira. Ou seja, estamos atrasados décadas. Com a palavra os editores dos cadernos culturais. Só depende deles. E que o pagamento seja melhor, pois ninguém é de ferro. Para ter o melhor, é preciso pagar melhor. O público leitor merece.”

Muito além das tiras Com (Sic), Orlandeli cria pequenas crônicas gráficas com sensibilidade e olhar aguçado. P OR F RANCISCO UCHA

Lançado em setembro de 2010 pela Conrad Editora com incentivos do Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo-Proac, o álbum (Sic) de Orlandeli é uma coletânea da série homônima publicada aos domingos no Jornal da Região, de São José dos Campos, desde 2009. Vencedora na categoria Melhor Tira do Salão Internacional de Humor de Piracicaba em 2008, a série, na realidade, não é uma tira convencional, tanto no formato, bem maior que as tradicionais, parecendo uma página de história em quadrinhos, quanto no seu conteúdo. E é aí que ela faz toda a diferença: a obra de Orlandeli apresenta semanalmente pequenas crônicas ilustradas onde personagens comuns, alguns lou-

cos, muitos solitários, relatam suas próprias histórias, suas angústias e desejos. Poucas têm diálogos: a maioria é contada em primeira pessoa, num estilo que faz lembrar o dos filmes noir. Em muitas delas o leitor lê os pensamentos dos personagens e descobre situações inusitadas, irônicas, às vezes poéticas, como a do açougueiro sensível ou a do limpador de janelas que gosta de escrever poemas. Orlandeli desenvolve sua mini-graphic novel com sensibilidade aguda e senso de humor sutil. O autor explica que “a escolha por sair do ‘tradicional’ foi pela necessidade de trabalhar mais o aspecto narrativo, tanto do desenho como do texto. O espaço da tira tradicional é um pouco limitado para esse tipo de proposta, então optei por esse formato um

pouco maior e uma narrativa gráfica mais com cara de hq.” (Sic) começou a ser publicada em dois formatos, uma tira dupla semanal e também na versão de uma página de quadrinhos veiculada mensalmente. As tiras foram reunidas nesse álbum depois que o próprio autor inscreveu o projeto no Proac. “Fiquei sabendo do edital do Proac e resolvi inscrever uma coletânea do (Sic). O projeto foi contemplado e recebeu uma verba para a produção do livro. Poderia, inclusive, ter feito de forma independente, mas na intenção de ter uma melhor distribuição achei melhor lançar por uma editora. Ofereci o material para a Conrad e eles toparam.” Talvez tivesse sido melhor lançar de forma independente. Apesar de a Conrad ter bons lançamentos e ter experiência na distribuição, a editora não tem uma assessoria de imprensa eficiente. E (Sic) merecia um trabalho de divulgação de melhor qualidade.

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Vidas JOÃO ROBERTO RIPPER/AGÊNCIA O GLOBO

TALARICO 72 anos de lutas

J

osé Gomes Talarico teve sua trajetória marcada pela defesa das causas populares.Jornalista e ex-Deputado, ele morreu no dia 5 de dezembro, no Rio de Janeiro, aos 95 anos, de falência múltipla dos órgãos, após ser internado com uma isquemia. Talarico nasceu em São Paulo, em 11 de novembro de 1915, e se mudou em 1941 para o Rio, antigo Distrito Federal, para trabalhar no Ministério do Trabalho. Ele participou da regulamentação da profissão de jornalista e da consolidação do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio, fundado poucos anos antes. Com sua forte atuação política, ajudou a escrever a História do Brasil. Ele foi dos fundadores da União Nacional dos Estudantes-Une, em 1938, quando ainda era estudante da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. O País vivia então sob a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, Presidente ao qual ele depois se ligaria politicamente. Em 1945, participou da criação do Partido Trabalhista BrasileiroPTB e do Movimento Queremista, que defendia a continuidade do Governo Getúlio Vargas e a convocação da Assembléia Nacional Constituinte. Subchefe de Gabinete do Ministro do Trabalho em 1960, foi assessor técnico do Vice-Presidente João Goulart até 1961. Eleito Deputado Estadual na Guanabara pelo PTB em 1962, durante o Governo de Goulart (1961-1964) foi assessor sindical do Presidente e participou da comissão

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Orador conhecido por sua veemência, Talarico teve atuação destacada na tribuna da Assembléia Legislativa do Estado do Rio e nas reuniões do Conselho Deliberativo da ABI.

Com forte atuação nas Redações e na vida pública, José Gomes Talarico gravou seu nome na História das lutas pelas liberdades democráticas e pelos direitos sociais no Brasil ao longo de 72 anos de militância política e social. P OR P AULO CHICO

organizadora do famoso Comício das Reformas, em 13 de março de 1964, em favor das chamadas reformas de base. Talarico recordou esse episódio em depoimento ao Centro de Pesquisa e Documentação-CpDoc, da Fundação Getúlio Vargas. Posteriormente seu depoimento foi editado em livro pelo Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense da Assembléia Legislativa do Estado do Rio na série Conversando Sobre Política. “Foi um sucesso! Tivemos a presença de cerca de 200 mil pessoas naquela noite! Mas, antes, enfrentamos ainda uma série de ações desencadeadas com o objetivo de tumultuar o trabalho. Na madrugada anterior, promoveram um atentado em que quase incendiaram o palanque. Pouco antes do início da manifestação, surgiu também o boato de que, durante a tarde, haviam posto uma bomba sob o palanque. Correram rumores de que o Jango poderia ser assassinado por alguém que estaria escondido no prédio da Central do Brasil, de onde o alvejaria”, descreveu Talarico, relatando o clima de tensão política da época.

Talarico foi Líder do PTB na Assembléia Legislativa da Guanabara até 7 de abril de 1964, quando passou a ser perseguido por defender o Presidente João Goulart, deposto pelos militares em 31 de março. No dia 14, teve o mandato cassado e os direitos políticos suspensos por dez anos pelo Ato Institucional nº 1. Em 1966, colaborou na formação da Frente Ampla, movimento de oposição ao Governo do Marechal Humberto Castelo Branco, que reuniu correntes políticas ligadas a Carlos Lacerda, ao Presidente João Goulart e ao ex-Presidente Juscelino Kubitschek. Durante o regime militar, Talarico manteve contato permanente com Jango, apelido do ex-Presidente, exilado no Uruguai. Visitou companheiros no país vizinho nada menos que 22 vezes. Em todas, ao voltar ao Brasil foi preso e acabou submetido a interrogatórios pelo Dops. Foi beneficiado pela Lei da Anistia, editada em 28 de agosto de 1979. Com a extinção do bipartidarismo em novembro de 1979, apoiou Leonel Brizola na disputa com Ivete Vargas pela sigla do PTB. Com a vitória de Ivete, foi um

dos fundadores do Partido Democrático Trabalhista-PDT, em 1980. Elegeu-se Deputado Estadual pela sigla em 1982. Em 1984, foi designado para o Tribunal de Contas do Estado do Rio, no qual se aposentou em 1986. Na imprensa, Talarico teve atuação precursora como multimídia, pois trabalhou em jornais, emissoras de rádio, como a Rádio Mauá, e assessorias de imprensa. Ele começou a carreira jornalística em 1933, como repórter do Correio Paulistano, e trabalhou também na sucursal paulista do jornal A Noite, do Rio de Janeiro, além de ter atuado em sua sede, quando já residia no Rio. Também foi membro da Diretoria da ABI, na qual atuou durante mais de 40 anos na Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa, que teve papel fundamental na luta contra os abusos da ditadura militar. O corpo de Talarico foi velado na Assembléia Legislativa do Estado do Rio e enterrado no Cemitério São João Batista, na Zona Sul do Rio, no dia 7 de dezembro. Personalidades como o ex-Senador Saturnino Braga (PT), os Deputados Paulo Ramos, Líder do PDT na Alerj, e Paulo Melo (PMDB), Líder do Governo, assim como Celina Vargas, neta do Ex-Presidente, Getúlio Vargas, participaram do velório. Uma paixão: Getúlio “A paixão política de Talarico era Getúlio. Ele era um ser humano extraordinário, um político fantástico, correto, idealista, um exemplo de vida tanto


28 prisões, tortura “Minha vida foi uma luta permanente. Nos anos duros em que vivemos a partir de 1964, respondi a IPMs e CPIs, e fui submetido à investigação de interventores militares no Ministério do Trabalho, sem que me imputassem qualquer irregularidade administrativa ou atos indevidos. Foram 28 prisões – mais de 650 dias de cárcere – e sacrifícios de toda a ordem, tortura com danos físicos e perseguições, com reflexos na minha família. Tive a residência depredada, minha mulher afetada pelas violências que sofríamos, e minha filha, gestante, abortou. Carreguei as marcas da desumanidade, com os testículos rompidos por pancadas e a coluna afetada. Mas não corri. Enfrentei essas situações sem jamais ter fugido”, resumiu Talarico no depoimento ao CpDoc.

A tristeza da ABI, com respeito e emoção A ABI expressou seu pesar pelo falecimento de Talarico na seguinte declaração: “É com profundo pesar que a Associação Brasileira de Imprensa comunica o passamento, nesta segunda-feira, 6 de dezembro, do jornalista José Gomes Talarico, decano de seu Conselho Deliberativo e um dos mais destacados participantes da resistência à ditadura militar 1964-1985, período em que ele atuou com extrema coragem e repetidos sacrifícios de sua liberdade individual na luta pelo retorno do País ao Estado de Direito. Ele estava com 95 anos, completados em 11 de novembro passado, e era sócio da ABI desde 9 de março de 1951 — em 2011 completaria 60 anos de vinculação à Casa. Fundador em 1964 da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa da ABI, transformada em Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e dos Direitos Humanos após o assassinato do jornalista Vladimir Herzog numa prisão militar em São Paulo em 25 de outubro de 1975, Talarico foi incluído na primeira lista de cassações promovidas em abril de 1964 pelo regime militar, que o privou de seu mandato de Deputado Federal eleito para a Legislatura 1963-1967 pelo antigo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e cassou seus direitos políticos por dez anos. Mesmo proibido de exercer militância política pelo estatuto das cassações, Talarico não se submeteu à ditadura e continuou a atuar pela restauração da legalidade. Ele foi um dos articuladores da Frente Ampla, tentativa de aliança política nos anos 60 entre os antigos rivais Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda e João Goulart para a derrubada da ditadura, e também de outros movimentos de enfrentamento da ditadura, como as campanhas pela anistia, pelas diretas-já e pela Assembléia Nacional Constituinte de 1986-87. Solidário com os companheiros exilados no Uruguai, ele os visitou 22 vezes. Em todas,

ao voltar foi preso e submetido a severos interrogatórios pelo Dops. A longa trajetória política de Talarico tem início ainda sob a ditadura do Estado Novo, quando, como estudante da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde nasceu, participou da fundação da União Nacional dos Estudantes-Une e da Confederação Brasileira de Desportos Universitários, de que foi destacado atleta. Mereceu então homenagens do Presidente Getúlio Vargas, ao qual depois se ligaria partidariamente, ingressando em 1945 no nascente PTB, e afetivamente, cultuando-o pela vida toda. Na imprensa, Talarico teve atuação precursora no que se chamaria hoje de jornalista multimídia, pois trabalhou em jornais, como A Noite, emissoras de rádio, como a Rádio Mauá, e assessorias de imprensa. Com o restabelecimento da liberdade de organização partidária, Talarico ingressou no Partido Democrático Trabalhista-PDT de seu antigo companheiro Leonel Brizola e se elegeu deputado a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, na qual foi líder do Governo Leonel Brizola (1983-1986). Antes que pleiteasse novo mandato, a Assembléia elegeu-o Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, cargo que ocupou até ser alcançado pela aposentadoria compulsória por limite de idade. Afastado da política institucional, Talarico continuou a exercer intensa atividade na ABI, como membro do Conselho Deliberativo e destacado colaborador do Presidente Barbosa Lima Sobrinho. Reeleito para o Conselho Deliberativo para os mandatos 2007-2010 e 2010-2013, Talarico compareceu a inúmeras sessões com grande esforço, em razão de seu estado de saúde. Com respeito e emoção a ABI presta comovida homenagem a esse grande jornalista e homem público. (a) Maurício Azêdo, Presidente.”

FRANCISCO UCHA

no campo pessoal como profissional, Gostava de ajudar as pessoas e principalmente o País”, declarou sua viúva, advogada Francisca Talarico. Para Celina Vargas, Talarico reunia qualidades que serão transmitidas a várias gerações. “Ele tinha valores como coerência e patriotismo e uma visão de mundo fantástica”, afirmou. “Ele era um grande lutador social, pedetista histórico, que lutou pela democracia e a justiça social”, afirmou Paulo Ramos. Também o Ministro do Esporte, Orlando Silva, lamentou o falecimento de Talarico. “O País está consternado com a perda do jornalista e político que teve presença marcante nos momentos mais importantes da nossa História recente. Um dos fundadores da Une, Talarico dedicou os últimos 70 anos de sua vida à construção da democracia brasileira.”

Mesmo adoentado, Talarico (com Mauricio Azêdo e Francisca Talarico, sua mulher) participava dos atos da ABI, como o lançamento das publicações especiais do centenário.

Meu amigo Talarico POR PAULO CONSERVA

Vasculhando as veredas da memória reencontrei-me com Talarico, figura humana a quem muito admiro. Conheci-o em Havana quando ali eu carpia as doçuras e amarguras do exílio ao qual me socorri após um estágio no México de Benito Juarez, Pancho Villa e Zapata. Já em Cuba, berço heróico de José Martí e Carlos Manoel de Céspedes, pai da pátria cubana, estudava e trabalhava na Rádio Havana, no departamento de língua portuguesa, sob o codinome de Manoel Lopes. Eram tempos de repressão. Transmitia diariamente para o Brasil noticiando fatos que a Nação desconhecia dada a brutal censura estabelecida pelo regime de 64. Eis que ali se achega uma comitiva de jornalistas brasileiros enviada pela ABI-Associação Brasileira de Imprensa, a convite da Upec-Unión de Periodistas de Cuba. Roberto de Luna, meu diretor, indica-me para fazer a cobertura de tão importante evento, que concentrava dezenas e dezenas de jornalistas da América Latina. Até ali me dirigi – caneta, papel e gravador a tiracolo. Então fixei-me em Talarico, do grupo de colegas brasileiros. Exatamente arrumando a bagagem para a viagem de volta ao Brasil, no apartamento 102 do Hotel Vitória, trajando cuecas samba-canção, não entendia por que não ficara registrado na resolução final do encontro o seu pronunciamento contra a ditadura no Brasil. O fato é que, sob os bastidores diplomáticos, já se ventilava o restabelecimento de relações comerciais, primeiro passo para a efetivação de laços consulares entre ambos os países, uma vez violentados em abril de 1964 pelo Governo dos generais golpistas. Vim reencontrá-lo no Rio de Janeiro, anos depois, como Líder da banca-

da pedetista sob a orientação do hoje saudoso Governador Leonel Brizola. Convidado, fiz-me Chefe do seu Gabinete. E ali reencontrei Fernando Bandeira, conterrâneo de Santa Rita, exmarinheiro, agora líder sindical dos policiais civis e Deputado Estadual. Sentime em casa!... José Gomes Talarico, verbo inflamado, agora nonagenário, nasceu em São Paulo e já aos nove anos de idade seria estafeta dos revolucionários na epopéia constitucional de 32. Filho de pai italiano e mãe portuguesa de Trás-os-Montes, trouxe nas veias o sangue anarquista do patriarca emigrado ao Brasil quando do holocausto nazifascista na Europa de Hitler e Mussolini. Com a derrota do Professor Darci Ribeiro (PDT) para o sociólogo Moreira Franco (PMDB), Talarico já no Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, fico no Gabinete do Deputado Amadeu Rocha, ex-guerrilheiro do Caparaó, outro grande companheiro falecido há poucos anos. Decidi regressar à Paraíba e encontrei um PDT em frangalhos. E por aqui fui ficando ao lado de Dona Branca, agora na lucidez dos seus 91 anos. Para Talarico, que jamais odiou a violência sobre ele cometida no buraco do rato nas tenebrosas instalações do Dops - Departamento de Ordem Política e Social, na Rua da Relação, no Rio de Janeiro, sob orientações do famoso General Newton Cruz e que sofreu maior violência com a invasão do seu domicílio a traumatizar a sua esposa para o resto da vida, jamais se recuperando de tamanho golpe, este breve relato de respeito e admiração do seu discípulo. Paulo Conserva é jornalista e sócio da ABI e mantém uma coluna no jornal Folha do Vale, de Itaporanga, Paraíba, na qual este artigo foi publicado.

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ZEKA ARAÚJO/DIVULGAÇÃO O SOL

Vidas

Reynaldo Jardim UM CRIADOR ABERTO PARA O NOVO Idealizador do famoso Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, que circulava aos sábados, ele detonou a reforma do JB nos anos 1950, transformando um diário de anúncios classificados no mais importante órgão da imprensa brasileira por quase meio século. P OR J OSÉ R EINALDO M ARQUES Os meios jornalísticos e culturais do Rio, São Paulo e Brasília lamentaram a morte do poeta e jornalista Reynaldo Jardim. um dos personagens mais criativos da imprensa brasileira. Esta opinião foi expressada pela ABI e também pelo poeta e jornalista Ferreira Gullar, um dos integrantes da brilhante equipe do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, lançado por Jardim no final dos anos 1950, ao lado de Lygia Pape, Franz Waissman, Lygia Clark, Amílcar de Castro e Jânio de Freitas. Gullar revelou que a morte do amigo o pegou de surpresa e o deixou muito chocado, mas ao mesmo tempo confortado, porque a morte súbita, sem sofrimento, ao contrário de uma doença com graves seqüelas, tem mais a ver com o espírito livre de Reynaldo Jardim, que era “uma pessoa alegre, aberta para o novo, voltado para a criação”. “Essa morte é mais parecida com ele do que se ele tivesse, por causa de alguma doença, ficado paralisado em cima de uma cama”, disse Gullar referindo-se ao aneurisma na artéria da aorta que matou Reynaldo Jardim no dia, 1º de fevereiro, em Brasília.Com uma carreira jornalística repleta de sucessos, Reynaldo Jardim criou no final dos anos 50 o Suplemento Dominical do JB (SDJB), que na opinião de Gullar foi realmente a grande novidade da imprensa da época, que deu origem mais tarde ao Caderno B e marcou o início da consagrada reforma do jornal na década seguinte: 44 Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

“O lançamento do Suplemento foi a renovação. A reforma do jornal começa de fato com o Suplemento, que se tornou uma espécie de porta-voz das mais avançadas experiências jornalísticas do País”, disse Gullar. Até então o Jornal do Brasil era um impresso que do ponto de vista gráfico e editorial não tinha boa apresentação, com suas páginas tomadas por anúncios classificados. O Suplemento Dominical acabou se transformando em um dos mais respeitáveis espaços da imprensa brasileira sobre arte e cultura e do qual foram colaboradores Mário Pedrosa e Antônio Houaiss. Para Reynaldo Jardim tratava-se de um “caderno de vanguarda inserido num mar de anúncios classificados”, que acabou incentivando a Condessa Pereira Carneiro a pensar em um conteúdo novo para o seu jornal. Para cuidar da reforma ela contratou uma equipe de jornalistas egressa do Diário Carioca encabeçada por Jânio de Freitas. O ingresso de Reynaldo Jardim na empresa da família Pereira Carneiro teve início na Rádio JB, onde ele criou e dirigiu o “sistema música e informação”. Em 1964 ele se transferiu para a revista Senhor e mais tarde criou o jornal O Sol. Ainda nos anos 1960 foi Diretor de Telejornalismo da Rede Globo, criada em 1965. Evocações de Heliodora A crítica de teatro Bárbara Heliodora conheceu Reynaldo Jardim quando se transferiu da Tribuna da Imprensa para o

JB, em 1959, para assumir a vaga do colunista Geraldo Queirós. Na época, o jornalista Mário Nunes escrevia críticas teatrais para o noticiário diário do jornal e reclamou com a Condessa Pereira Carneiro sobre a contratação de Bárbara. Bárbara Heliodora chegou a pensar em parar, mas foi surpreendida com uma nota de Reynaldo Jardim no Caderno B dizendo que enquanto ela não voltasse não haveria coluna de teatro no jornal. O episódio acabou com Mário Nunes concordando em que ela fizesse a crítica para o Suplemento Dominical até ser convidada para assumir a direção do Serviço Nacional de Teatro-SNT. Ao recordar essa passagem, Heliodora revela que Reynaldo Jardim foi uma pessoa muito importante no início da sua vida profissional: “A lembrança que tenho dele é de uma intensidade estimulante, do apoio que me deu no princípio da minha carreira como crítica teatral”, disse Bárbara Heliodora. 64 anos de poemas Reynaldo Jardim nasceu em São Paulo em 13 de dezembro de 1926. Morreu aos 84 anos, no Hospital do Coração de Brasília, onde estava internado. Como poeta escreveu os livros Paixão Segundo Barrabás, Maria Bethânia Guerreira Guer-

rilha, Joana em Flor, Viva o Dia, Cantares Prazeres. Seu último livro de poesias foi Sangradas Escrituras, lançado em 2010, segundo lugar na categoria Poesia da 52ª edição do Prêmio Jabuti. O livro tem 1.200 páginas de poemas escritos ao longo dos 64 anos em que se dedicou a escrever poesias. Anistiado, na ABI Em 4 de abril de 2008, Reynaldo Jardim participou no Auditório Oscar Guanabarino da ABI da sessão promovida pelo Ministério da Justiça, então dirigido pelo hoje Governador Tarso Genro, em que foram homenageados e anistiados o jornalista e ex-Deputado David Capistrano e o jornalista Vladimir Herzog, representados pela viúva de Capistrano, Maria Augusta, e por Ivo Herzog, filho de Vladimir. O ato, realizado pela manhã, inaugurava a la Caravana da Anistia criada pelo Ministro Tarso Genro e foi seguido, à tarde, de sessão de julgamento de processos de anistia. Com seu processo incluído na pauta da sessão por pedido da ABI deferido pelo Presidente da Comiss;ão de Anistia, Paulo Abrão, Reynaldo Jardim foi um dos anistiados. Ele já estava doente e não sobreviveria mais três anos.


REYNALDO JARDIM, O INVENTOR

“Foi-se o nosso querido clown”

ANA ARRUDA CALLADO DIVULGAÇÃO O SOL, FILME

Reynaldo Jardim foi, antes de tudo, um inventor. Foi poeta, professor primário, jornalista, radialista, escultor, arquiteto. Mas em todas essas atividades, estava sempre criando, inventando, inovando. Acompanhei suas invenções desde o SDJB, isto é, o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (que, aliás, saía aos sábados), e a reforma da programação da Rádio Jornal do Brasil. Nesta, além de limpar as falas dos locutores, que passaram a dizer apenas o essencial, abandonando os excessos de retórica e de impostação de voz tão comuns naquele final da década de 1950, ele inventou uma porção de programas, como o “Pergunte ao João”. Tanto o estilo novo quando os programas foram copiados por quase todas as emissoras do País. A experiência bem sucedida na Rádio JB fez com que recebesse um pedido de ajuda da Professora Maria Yeda Linhares, quando esta foi nomeada diretora da Rádio Ministério da Educação, no início de 1964. Cheguei uma noite ao apartamento de Reynaldo e Edelweiss, na Rua Santa Clara, em Copacabana, um ponto de reunião certo de gente interessante, e encontrei um caos. Todo o chão da sala estava tomado por folhas de papel do tamanho de páginas de jornal, com horários e nomes de compositores eruditos e populares escritos, Reynaldo caminhando de joelhos entre elas e explicando a Maria Yeda como tinha imaginado uma programação que servisse à pobreza então reinante na discoteca da emissora oficial, simples e que atendesse aos ouvintes mais exigentes. Na realidade, era uma programação que se repetia, mas em horários diversos. “As pessoas ouvem rádio em determinados horários; é só variar a música naquelas determinadas horas, mantendo o mesmo elenco a cada semana, facilitando o trabalho dos programadores”, explicou. Esta programação de grande simplicidade e inovação, não foi testada. Veio o golpe militar de 1º de abril e Maria Yeda foi demitida e processada. Sobre o SDJB e a grande influência que sua programação gráfica teve na famosa reforma do próprio Jornal do Brasil já muito se disse. Quero lembrar aqui o prazer que era ver Reynaldo riscando uma página do suplemento, fazendo toda a diagramação do caderno em minutos. Ele tinha livros lindos com gravuras antigas ou modernas, e cortava sem dó as que queria para ilustrar cada matéria. Quando inventou o suplemento cultural do Jornal dos Sports, o Cultura JS, que, em si, já era uma audácia, recrutou Ferreira Gullar, Oliveira Bastos, Vera Pedrosa e uma novata, eu. Nossas reuniões de pauta – em casa dele, claro – eram deliciosas.

Ele fazia o café, Edelweiss dava opiniões inteligentíssimas e as maiores maluquices eram ali tramadas. No fim, dava tudo certo e o suplemento saía bem bom – e bonito, que o visual era a tarefa dele. Todo o projeto de O Sol, invenção total dele, foi desenvolvido em um fim de semana no sítio de Reynaldo em Friburgo. Onde havia um riacho que ele desviou de curso, mudando de lugar dezenas de pedras, só para fazer exercício. Neste fim de semana, acertamos, editores e estagiários, o estilo da linguagem “como história de quadrinho”, dizia ele, “nada de lide e sublide” – do jornal, os tamanhos dos títulos, o objetivo de cada editoria. Depois das discussões, Zuenir Ventura ia para a máquina de escrever e transformava as notícias do dia do jornal comum em notícias para O Sol. Esse tempo todos juntos, sob a regência de Reynaldo, criou um clima de amizade que garantiu o funcionamento do jornal e que perdura até hoje, como se pode ver no filme da Tetê Moraes, O Sol, Caminhando Contra o Vento. Não posso deixar de fora das invenções notáveis o Caderno B do Jornal do Brasil, com tantas sessões maravilhosas, a exemplo de “Onde o Rio é mais carioca”, nem o Cartum JS, um suplemento do Jornal dos Sports só para os humoristas do traço, e tudo o mais que Reynaldo fez pelo Brasil afora. Mas o espaço é limitado. Concluo contando uma historinha. Reynaldo tinha a grande qualidade do bom poeta que é o poder de síntese. Um dia, estava eu na revista Senhor, dirigida então por ele, tentando compor um texto que não saía satisfatoriamente. Ele estava passando e eu pedi: “Reynaldo, dá uma olhada aqui. O que preciso fazer para este texto não ficar tão duro, tão artificial?” Ele nem parou; olhou rápido para mim e disse: “Tira os que”. Como me lembro sempre disso quando escrevo! São os que, são os mas, são os e e os portanto inúteis dando mais peso e dureza ao texto. Quantos eu terei usado aqui? Me ajuda, Reynaldo.

Em artigo publicado no site do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro, o jornalista Álvaro Caldas fez comovida evocação de seu companheiro Oderfla Almeida, falecido em 22 de janeiro passado, após longa internação motivada por um acidente vascular cerebral. Dias antes de seu passamento, Oderfla completara 75 anos. Sócio da ABI desde 28 de novembro de 1972, Oderfla, nome Alfredo ao contrário, trabalhou nas revistas técnicas da Editora Abril nos anos 70, na Última Hora, no Correio da Manhã e no Jornal do Brasil. Ele se desligou da imprensa diá-

ria para trabalhar na Assessoria de Imprensa do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social-BNDES, ao qual permaneceu vinculado. Seu companheiro desde os tempos em que estudaram na antiga Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro, o jornalista Álvaro Caldas prestou a Oderfla a homenagem deste artigo, intitulado Morreu o nosso querido clown, alterado pela Redação do Jornal da ABI porque a seção Vidas não gosta de falar de morte e dos diferentes tempos do verbo morrer.

A saudade de Álvaro Caldas A notícia da morte me pegou fora do Rio, chegou pelo celular, sábado mesmo de manhã, através do Sérgio Campos, um destes que gostava muito do Fla, Fifa, OSA, entre os vários apelidos ou codinomes que usou ou lhe foram atribuídos. Com o Sérgio estive com ele a última vez, no hospital, no Barreto. Já não nos reconheceu, não conseguia falar, sorrir, atado a fios e engrenagens que sustentam uma vida absurda e impossível. Por que amávamos tanto o Oderfla? Esta é uma questão que sua morte repõe. Vivi com ele várias experiências gratificantes e marcantes, tanto na faculdade quanto fora dela. Aprendi muito com o Oderfla, e não foi apenas aquela história contada pelo Vivaldo de que ele me introduziu no mundo da música clássica. Foi meu paciente professsor e de outros, ele que era impaciente, queria tudo muito rápido, mas sobretudo um apaixonado pelo mundo dos compositores clássicos. Chegou a estudar para ser maestro, possuía um ouvido soberbo, para meu espanto reconhecia melodias de sinfonias e sonatas ao primeiro toque, e conhecia a vida e as paixões de cada um dos seus eleitos. Falava de Bach, de Beethoven, de Korsakov, de Mendelsohn como se fossem nossos companheiros de mesa de bar. Ele, Arquimedes e eu certa noite fenefiana, passada na areia da praia Vermelha, namoramos a mesma musa, Mariuza, que nos chamava de “estetinhas”. Depois cada um escreveu um texto surrealista sobre aquela

reveladora experiência, em que inocentemente acrescentamos um personagem ao Jules e Jim do Truffaut. Creio que todos temos alguma coisa para contar, em todos ele deixou sua marca.E que marca era esta? Antes de tudo o humor, a simplicidade, a irreverência, o desprendimento, a alegria e uma certa e sábia porralouquice que a todos contagiava. Uma espécie de clown que não queríamos perder, precisávamos ter sempre do nosso lado. Era a nossa porta de saída da caretice, do bom-mocismo, a nossa porta para uma outra percepção. Ele era mais livre, mais destemido, mais anárquico, como que desafiando nossa pretensa “sabedoria e seriedade”. Mas com toda humildade, nunca quis se impor, não gostava de desavenças, detestava discussões cerradas. E falava paca, soltava a emoção sem censura. Ás vezes era difícil de ouvir, eu tinha que gritar “porra, Oderfla, dá um tempo, ouça”. Quantas vezes enchemos a cara naquelas tardes, final de expediente, ali no bar nos fundos da Lidador da Sete de Setembro, com Ernesto, Nacif e tantos outros. Foi fundo em tudo, no álcool, na sua maconha, companheira diária de uma viagem que só a muito custo e sofrimento largou. Mas aí já foi o início do fim. Quiseram enquadrálo, matar o belo e inquieto clown que havia nele, e, claro, ele não suportou. Foi definhando até apagar. A ele, portanto, nossa homenagem, que o Fifa merece. Beijos e abraços, (a) Álvaro Caldas.”

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Vidas

Jorge Nunes, fotógrafo e agitador Militante sindical nos chamados anos de chumbo, ele foi demitido do jornal O Dia sob uma acusação então comum: era um subversivo.

Um dos mais importantes repórteresfotográficos da imprensa brasileira, o jornalista Jorge Nunes de Freitas faleceu no dia 1º de fevereiro numa unidade do Instituto Nacional do Câncer-Inca, o Hospital do Câncer II, em Vila Isabel, Zona Norte do Rio, no qual se internara com diagnóstico de câncer no intestino. Ele foi sepultado no dia seguinte no Cemitério Jardim da Saudade, em Paciência, Zona Norte da Cidade, onde seu corpo foi velado na Capela 8. Ele deixa a mulher Edna Gonçalves e os filhos Fabíola, Igor, Rafael e André. Jorge Nunes era membro suplente do Conselho Deliberativo da ABI (mandato 2009-2012), de cuja Diretoria fez parte. Era membro da Comissão Diretora da Diretoria de Assistência Social da Casa, à qual se associou em 30 de junho de 1987, tendo como proponente Nilson Ferreira de Azevedo, também já falecido. Nascido em 22 de julho de 1949, em Campos, no Norte do Estado do Rio, Jorge Nunes iniciou a carreira de fotógrafo aos 16 anos, quando trabalhava na Rio Gráfica Editora, do Grupo Roberto Marinho. Ao longo de mais de quatro décadas, trabalhou na revista Manchete, Editora Vecchi, O Dia, Tribuna da Imprensa. Foi Diretor do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro e da Associação Profissional dos Repórteres-Fotográficos do Rio de Janeiro-Arfoc e teve destacada atuação na imprensa sindicalista ou vinculada a partidos políticos, sindicatos, organizações nãogovernamentais e movimentos sociais. Foi proprietário da Prisma, agência de fotografia que durante algum tempo teve sede na ABI. Durante a ditadura, Jorge Nunes atuou na militância política e interrompeu o trabalho em Redação, ao qual só retornou em 1986 pelas mãos do fotógrafo Alcyr Cavalcânti, Conselheiro da ABI e Diretor da Arfoc. Em 1994, Jorge Nunes foi afastado do jornal O Dia acusado de promover agitação em suas atividades sindicais, o que determinou a sua opção pela atividade de freelancer. Em dezembro passado Jorge Nunes esteve em Brasília para passar as festas de fim de ano com a família. Dias depois, sentiu-se mal e se submeteu a uma série de exames que revelaram o câncer no intestino em processo de metástase. Estudioso das questões urbanas e militante dos movimentos pela melhoria da qualidade de vida da população carioca, sobretudo a dos subúrbios, Jorge Nunes foi convidado no começo da gestão Eduardo Paes na Prefeitura do Rio a assumir a 46 Jornal da ABI 363 Fevereiro de 2011

RAFAEL GONZAGA

POR CLÁUDIA S OUZA

direção da Administração Regional da Vila Kennedy, na Zona Oeste da Cidade, cargo que vinha exercendo. Alcyr Cavalcanti recordou os longos anos de convivência com o amigo: “Na época em que o conheci, eu trabalhava no jornal O Globo, e ele em O Dia. Nós conversávamos muito. Ele tentou me levar para O Dia, mas acabei indo trabalhar lá tempos depois. Em 1986, eu era chefe na Tribuna da Imprensa e o convidei para retornar às Redações. Depois disto, ele chegou a trabalhar novamente em O Dia e percorreu uma trajetória marcante, como autônomo, na imprensa sindicalista. Na semana anteior à sua morte eu e o jornalista Mário Augusto Jakobskind o visitamos no hospital. Ele estava muito abatido e debilitado pela doença. Lamento demais a perda dele”. Em março de 2006, a ABI publicou entrevista de Jorge Nunes concedida ao jornalista José Reinaldo Marques, na qual ele relatava os principais momentos de sua carreira na imprensa. Uma suma dessa reportagem é publicada a seguir.

“Nosso fotojornalismo é de vanguarda” P OR J OSÉ R EINALDO M ARQUES O repórter-fotográfico Jorge Nunes vive um momento especial em seus 40 anos de carreira: prepara-se para lançar o site da Agência Prisma de Fotojornalismo, que criou há 13 anos. Jorge estreou na fotografia aos 16 anos, quando era office-boy da Rio Gráfica Editora e queria conseguir outro trabalho: “Precisava complementar meu salário, perguntaram o que eu queria fazer e escolhi a fotografia, mas não tinha noção do que poderia acontecer”. Com uma Rolleiflex, Jorge deu seus primeiros cliques profissionais: “Foi para as revistas da Rio Gráfica Garotas e Destino, que à época se

dedicavam às fotonovelas, mas publicavam também contos e algumas matérias”. De lá, Jorge foi sucessivamente para a Manchete, a Editora Vecchi e os jornais Tribuna da Imprensa e O Dia. Com o golpe militar, abandonou temporariamente o trabalho em Redação: “Era duro ser pautado para uma cobertura, chegar ao local e acabar sendo impedido de registrar o assunto por intervenção de agentes do regime ditatorial. Isso me incomodava tanto que eu resolvi trabalhar em estúdio, fazendo fotografia comercial. Só retomei ao fotojornalismo em 1986, convidado pelo Alcyr Cavalcanti para voltar para a Tribuna”. No ano seguinte, Jorge retornou também a O Dia, até ser afastado em 1994, acusado de promover agitação em suas atividades sindicais, e se tornou freelancer. Para ele, o padrão de qualidade dos repórteres-fotográficos brasileiros é um dos melhores do mundo, “com profissionais históricos como Nicolau Drey, Juvenil de Souza, Indalécio Vanderley, Walter Fimo, Evandro Teixeira e Sebastião Salgado”: “Nosso fotojornalismo é de vanguarda, apesar do difícil acesso à tecnologia que já tivemos que enfrentar. Houve um tempo em que era impensável o aproveitamento de muitas fotos que hoje são consideradas obras-primas. O profissional tinha que dominar o processo de produção em todas as suas etapas. A menor abertura de diafragma tinha que ser 8 e a menor velocidade, 125; os filmes eram de baixa sensibilidade e os fotógrafos precisavam usar tripé e muita luz, cuja intensidade era medida com o velho fotômetro Weston Master II..” Ex-Diretor da ABI e do Sindicato dos Jornalistas, Jorge destaca também colegas especialistas na operação de filmes coloridos, como Fernando Seixas, Gervásio Batista, Sebastião Barbosa, Antônio Rudge, Nilton Ricardo, Luiz Garrido, Fernando Abrunhosa, Adir Mera, Hugo de Góes, Klaus Meyer, Jáder Neves, Gil Pinheiro e muitos outros da Manchete e de O Cruzeiro: “Havia também o Joel Maia e o velho Ademar Veneziano, da Abril no Rio. Tínhamos o privilégio de trabalhar sem temer o desemprego. As demissões eram raras. Geralmente, só se deixava uma empresa a convite de outra.”


“É difícil fotografar crianças em situação de miséria. Foi muito triste ver esse menino de 4 anos no meio do lixão, brincando com uma lata vazia de leite em pó, produto que, segundo seus pais, ele não via há muito tempo.”

“Em 1988, Barbosa Lima Sobrinho me enviou a Cuba como representante da ABI num curso oferecido a jornalistas. Esta foto do lindo pôr-do-sol no Caribe eu fiz do bairro de Casa Blanca, quando voltava de uma viagem à província de Matanzas. Foi publicada na revista Visão e no Globo.”

“Crianças dormem numa calçada da Praça Mauá, no Centro do Rio. Foi publicada na Tribuna da Imprensa em 1986. A pauta era do jornalista Geraldo Lopes, com quem fui ao local para registrar a situação dos menores.”

“Fotógrafos são bons observadores. Foi assim que, ao correr com minha lente sobre a mesa principal do almoço de Lula com sindicalistas em 94, vi esta composição de sua mão, um copo de cerveja e um charuto.”

“Este registro foi feito para uma matéria da Tribuna da Imprensa, sobre o despejo de posseiros na Fazenda São Bernardino, localizada em Vila de Cava, distrito de Nova Iguaçu.”

“Estava em Brasília, cobrindo uma recepção. Percebi quando o Senador Bernardo Cabral se aproximou da Ministra Zélia Cardoso de Mello, que havia caminhado até uma das mesas abandonadas na outra extremidade do salão. Fotografei a cena automaticamente.”

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